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Esta “nôte” ninguém “drome”
Um flagelo que atormentava as populações dos povoados mais afastados de Nisa era o
roubo frequente dos fios de cobre das linhas telefónicas que cruzavam o
interior das matas para levarem as comunicações aos seus habitantes. Rara era a semana em que não desapareciam misteriosamente algumas centenas de
metros dessas linhas deixando incomunicáveis as aldeias e causando toda a
uma série de transtornos para além de nos deixar a nós,
autoridades locais, num embaraço que muito me confrangia. Cada vez
que aquilo acontecia sentia como se fosse algo de minha propriedade que havia
sido vandalizado.
Passei
por isso mesmo a nomear mais patrulhas nocturnas em substituição das diárias, algumas noites até mais do que uma e onde me incluía obviamente também, tal era a vontade de deitar a mão ao/s salteador/es. Andámos nisso mais de três
meses e nada de resultados. Na verdade conseguimos apenas que a frequência
desses roubos diminuísse um pouco, mas, daqui que dali e quando menos
esperávamos, zás… Mais um! Apenas uma particularidade. A de os roubos passarem
a acontecer e as aldeias ficarem de repente sem comunicações já ao amanhecer quando as patrulhas recolhiam depois de noites inteiras de vigilância.
Deduzi facilmente que o gatuno ou gatunos seriam de Nisa e vigiavam a saída das
patrulhas, coisa assaz muito fácil, dada a localização do posto bem no centro da vila nesse tempo, assim como a saída do pessoal, cavalos e viaturas que era visível de qualquer ângulo da extensa Praça da República adjacente. Não seria nada complicado para quem quisesse fazer tal controlo conseguir levá-lo a cabo tranquilamente e sem ser visto. Tive que adoptar assim outra estratégia recusando
resignar-me àquele estado de coisas e mais empenhado que nunca em capturar, se
possível em flagrante delito, o, ou os energúmenos.
Pedi, muito em segredo, a dois ou três militares se queriam colaborar no meu plano que
consistia em eles não entrarem sequer no posto e não se fardarem. Aguardariam a minha
chegada trajando à civil em locais pré-combinados nos seus carros
particulares. Pedi, porque eles não eram obrigados a ceder os seus
veículos, mas eles aceitaram sem qualquer reserva. Assim, eu saía do posto à civil como quem vai passear e ia ter às proximidades onde estava já o outro militar no seu carro à minha espera para circularmos depois toda a noite pelas zonas onde se situavam as linhas telefónicas mais sensíveis sem levantar suspeitas, enquanto os jipes continuavam a sair e a circular com as patrulhas do costume e a maior
naturalidade.
Não
foi preciso muito tempo nem perder muitas noites. Certa madrugada ao
transitarmos na estrada que vai para Tolosa quase à saída de Nisa vimos um
indivíduo em absoluto silêncio a rolar um rolo de fio de cobre como se fosse um
daqueles arcos de ferro com que nós brincávamos quando éramos gaiatos. Conheci imediatamente o indivíduo. Nada mais nada menos que um velho cadastrado por uma
panóplia de furtos domésticos, roubos de cabritos, borregos, frutas e legumes
das hortas, mas não só. Como não conheceu o carro nem imaginava que fôssemos
nós, não tomou quaisquer precauções.
Parámos
por isso mesmo ao lado dele e eu saí de imediato identificando-me e dando-lhe ordem para parar. Quando me reconheceu o indivíduo nem tugiu nem mugiu na mais absoluta surpresa. Só
passados uns instantes sibilou entre dentes:
- Se viesses no jipe não me tinhas apanhado, não…
Verificados os pressupostos de crime em flagrante delito dei-lhe voz de detenção e constituí-o arguido segundo as normas legais em
vigor e a seguir chamei pelo rádio a patrulha que
circulava por outras bandas para vir recolher o rolo de cobre e o arguido e
transportar tudo para o posto.
Foi fácil conseguir depois a confissão de todas as tropelias daquele meliante que
tantas dores de cabeça nos vinha causando há uma série de meses sem contar com
o transtorno de as populações afectadas ficarem depois vários dias
incomunicáveis enquanto a PT não restabelecia as linhas vandalizadas.
E
foi mais fácil ainda porque ao ver-se encarcerado o arguido se dispôs a contar tudo na condição de eu o deixar depois ir para casa passar o resto da noite, comprometendo-se ele a comparecer no tribunal à hora que eu indicasse. Não lhe
disse logo que depois de lhe ter dado voz de prisão só o juiz o podia já
libertar porque não me convinha afugentar a sua aparente cooperação. Por isso, disse-lhe apenas:
-
Primeiro o senhor fala e eu escrevo. Depois resolvemos o resto.
E
assim fiquei a saber que era mesmo ele que roubava as linhas telefónicas.
Aquele rolo com que eu o apanhei em flagrante era o produto do seu último
assalto que ele cortara, enrolara e escondera para o ir buscar naquela madrugada.
-
Mas se você não viesse naquele carro preto, nunca me ganfava… Frisou de novo com veemência.
Contou-me que possuía um par de garras dentadas daquelas que os eletricistas aplicam nos pés para subir
aos postes, cortava duas ou três linhas entre 3 ou 4 postes, fazia aqueles
rolos que escondia nas proximidades e levava-os para casa mais tarde para os cortar em bocados de 40 cm que acondicionava numa mala de viagem. Ia depois no expresso a
Lisboa vendê-lo a determinado sucateiro na zona de Sacavém, ao preço de trezentos escudos o quilo.
Como
a mala de viagem levava cerca de 40 Kg, rendia-lhe doze contos. E como fazia essa viagem duas vezes por semana, tinha um ordenado maior que o do presidente da câmara! E gabou-se, orgulhoso:
- Como é que você acha que eu governo a minha casa?
- Como é que você acha que eu governo a minha casa?
A
máquina de escrever até deitava fumo. Ele ia falando, falando, e eu dactilografando, inquirindo mais e mais coisas, numa afabilidade tal que parecia que tínhamos
andado juntos à escola. Criei propositadamente um clima de admiração
pelos seus gloriosos feitos e dotes de esperteza. De tal modo o indivíduo se envaideceu que até confessou onde tinha mais cobre escondido. E que em casa havia mais, já pronto a emalar.
A
patrulha do jipe passou por isso o resto da noite a acarretar cobre dos esconderijos
para o posto afim de ser entregue no tribunal no dia seguinte junto com o
detido. Era já quase dia quando tudo ficou pronto. Só depois disse ao indivíduo
que não o poderia libertar porque uma vez constituído arguido só mesmo o senhor
doutor juiz determinaria o procedimento seguinte.
Furioso começou aos pontapés na porta da cela, ameaçando aos berros:
-
Se eu não for “dromir” a casa aqui "tamém" ninguém “dróme”!
E
vá de pontapear a porta da cela fazendo um estrondo ensurdecedor.
Habituado
ao comportamento imprevisível destes energúmenos disse ao plantão que abrisse a
porta do cárcere para ordenar ao detido que tirasse dos pés as botas que tinha
calçadas.
Não
queria!
Mas
tirou.
Que remédio.
Que remédio.
Enfrentei o seu olhar furibundo e sem pestanejar retorqui-lhe antes de me retirar:
-
Agora já pode dar pontapés na porta com toda a sua força. E se achar que ainda não
faz barulho suficiente, bata-lhe também com a cabeça!
Vai lá vai…
Nem mais um pontapé se ouviu.
O gajo aquietou-se e não chateou mais ninguém até ser presente no tribunal juntamente com duas carradas de jipe repletas de rolos de fio de cobre roubado …
José
Coelho in Histórias do Cota