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O primo do doutor juiz
É
da maior justiça referir que o meu desempenho como comandante do posto de Nisa,
naquele já distante intervalo temporal entre Agosto de 1985 e Outubro de 1992, não
teria tido o êxito que teve se não fosse, como já aqui referi, a preciosa
colaboração do pessoal da Polícia Judiciária da Delegação de Tomar que
prontamente “acudiam” aos meus pedidos de ajuda nas mais diversas situações quando tínhamos imensos indícios deixados pelos ladrões mas não tínhamos depois os
meios técnicos e científicos para os analisar e com eles conseguir
posteriormente incriminar os culpados para os apresentar em tribunal.
Por
outro lado e tão importante como a colaboração da PJ era também a dos altos
responsáveis pela administração da justiça na comarca, fossem eles os
meritíssimos juízes, ou os excelentíssimos delegados do procurador da República
junto daquele tribunal que normalmente aplicavam a Lei de uma forma
particularmente eficaz.
Muitos
desses ilustríssimos magistrados cujos nomes não posso por razões óbvias referir,
faziam o favor de me dispensarem a sua estima e consideração que eu fazia por
merecer actuando sempre com dignidade em todas as situações e no uso do melhor
que sabia, de forma legítima e isenta, esforçando-me por não exceder
nunca as minhas competências no cumprimento dos preceitos previstos e
prescritos na Lei.
Nem
sempre consegui em boa verdade. Cometi alguns erros, porém nunca deliberados e
muito menos por excesso de zelo ou má fé. Exemplo disso, uma peripécia que vos
vou contar hoje, não porque considere que agi da forma mais correcta, mas
porque, humano que sou, me faltou mesmo a paciência e a serenidade que
qualquer agente da autoridade nunca deveria perder.
Havia
em Arêz um indivíduo ruinzinho, muito conflituoso e agressivo com quase toda a
gente. Era meio corcunda. Não sei se por ter aquela deformidade física, era de
facto mau como só ele mesmo e não se dava com quase ninguém. Criava conflitos
com toda a vizinhança por tudo e por nada e se algumas vezes as patrulhas
tinham que intervir era certo e sabido que tinha que haver sempre chatices porque ele
não se coibia de responder mal e agressivamente fosse a quem fosse.
Tinha
este indivíduo uma meia dúzia de vacas de raça turina que explorava como modo
de vida, pastoreando-as por ali e vendendo depois o leite que lhe rendia algum
dinheiro como é natural. Até aqui tudo bem, era uma forma de subsistência como outra qualquer. O grande e principal problema porém era que ele não tinha
terrenos nem pastos suficientes para pastorear as vacas o ano inteiro e invadia as propriedades dos vizinhos a torto e a direito indiferente aos
protestos deles, maltratando-os e ameaçando-os verbalmente sempre que estes
reclamavam e tendo mesmo chegado a agredir fisicamente alguns mais idosos com
quem ele se atrevia melhor.
Foi a sua apetência de transgredir os preceitos de boa vizinhança e por achar
seus, os pastos dos outros, que me levou ao confronto com ele. Após a enésima
queixa de mais um vizinho, mandei, pela enésima vez também, a patrulha de
intervenção ir avisá-lo que não podia invadir aquele terreno com as vacas. Como
já se previa, o indivíduo para além de receber a patrulha com a maior
insolência como era seu uso e costume, retrucou que “aquilo não eram terrenos
da guarda nem do Estado e quer por isso nós não tínhamos nada com isso...”
Em
acto contínuo a patrulha contactou-me via rádio a dar conta da situação mas
como não achei que aquela manifestação de pura ruindade pudesse conformar um
crime de desobediência passível de detenção assim à priori, ordenei-lhes pela
mesma via que o notificassem oficialmente e por escrito para comparecer no
dia seguinte a determinada hora no posto para eu tentar de uma vez por todas elucidar o indivíduo que tinha que respeitar a lei e a ordem como qualquer
outro cidadão. Mais lhes dei ainda indicações que o avisassem, para que ficasse
ciente, que a sua não comparência depois de devidamente notificado, implicaria outras
medidas legais mais gravosas.
O
“gajo” era bruto de facto mas de parvo não tinha nada e no dia seguinte à hora
que lhe tinha sido indicada lá estava o corcundinha a deitar fumo pelas ventas
à minha frente e no meu gabinete. Nem me deu tempo de lhe explicar nada.
Começou logo por me “avisar” que era primo direito do doutor juiz – um dos tais
de quem eu era bastante amigo por sinal – e que me pusesse a pau que ele (corcunda)
“tirava-me a farda”. Depois, nos mesmos modos irados, fez-me notar, como se
isso não fosse visível, que era deficiente e que por isso tinha mais direitos
do que as pessoas perfeitas porque essas podiam “fazer pela vida” melhor do que
ele.
Ia continuar a sua verborreia verbal mas teve azar porque eu tinha já
perdido a paciência e dei-lhe um berro:
- CALE-SE…
O meu tom de voz não augurava já nada de pacífico.
Mas, velhaco como as cobras, o indivíduo não se intimidou. Qual quê! Cresceu para mim, encostou quase o seu nariz ao meu. E provocantemente, perguntou-me num tom zombeteiro:
-
Quer bater-me?
- Quer?
-
Vá! Bata-me…
-
Ande lá, bata-me…
Záááás…
Nem é tarde, nem é cedo!
Afifei-lhe
um bofetão de mão aberta com tanta
genica que o infeliz balançou e ia caindo desamparado para cima da outra secretária onde
estava um dos Cabos a dactilografar ofícios.
Em
seguida respondi-lhe, no mesmo tom que ele utilizara:
-
Não, por acaso não queria bater-lhe. Isso não estava nos meus planos. Mas como insistiu
tanto não pude deixar de lhe fazer a vontade… Ou o senhor cuida que por ser
deficiente físico pode fazer e dizer tudo quanto lhe dá na gana e que nós
somos todos obrigados a ter muita pena do coitadinho do corcundinha? Como
vê, comigo pia fininho e sairam-lhe as contas furadas...
O
energúmeno empalideceu primeiro, depois ficou vermelho e a seguir ameaçou:
-
Vou agora mesmo fazer queixa de si ao meu primo juiz que ele já lhe faz a cama…
Você está lixado!
E
saiu porta fora de estantilhão dirigindo-se mesmo para o tribunal de Nisa. Não
fiquei minimamente preocupado. Não devia ter-lhe batido, é certo. Não foi um
comportamento correcto da minha parte, também é verdade, mas não consegui
conter-me. No entanto conhecia suficientemente bem o senhor doutor juiz e ele
conhecia-me também a mim de igual modo. Não era meu hábito negar fosse que
episódio fosse. E se ele me tivesse chamado ter-lhe-ia dito toda a verdade sem
omitir nada e sem qualquer hesitação.
Porém,
tal não foi necessário, muito pelo contrário.
Passada
mais de uma hora o corcundinha compareceu de novo no posto muito mais
calminho, rabinho entre as pernas como costuma dizer-se, mandado
pelo seu primo juiz, o qual, ao contrário do que ele esperava, lhe terá respondido:
-
Se o sargento Coelho te deu uma bofetada é porque de certeza tu já merecias
duas, pois eu conheço muito bem o homem. Vai lá e pede-lhe desculpa, escuta o
que ele tem para te dizer que deve ser para teu bem, antes que tenhas problemas
maiores e mais sérios…
Não
tenho qualquer dúvida. Se não fosse a excelente colaboração entre a instituição
que eu servia e todas as outras instituições públicas de Nisa, que, antes de eu
ali chegar, era pura e simplesmente inexistente, todo o meu trabalho e
empenho, bem como o de todos os militares que comigo se empenhavam dia e
noite, nunca teria alcançado tais resultados. E o desfecho deste episódio revela a confiança absoluta que existia entre nós, neste caso
concreto, entre o tribunal e a guarda.
Para
terminar por hoje só mais uma atitude normalíssima deste extraordinário
magistrado, quando certa vez lhe apresentei um indivíduo que tinha detido em
flagrante delito a roubar, e que ele, após os trâmites legais cumpridos, de imediato o mandou conduzir ao Estabelecimento Prisional de Castelo
Branco como medida cautelar. Mais tarde comentou comigo: -
Sargento Coelho este já foi lá para dentro. E enquanto o advogado o tira
ou não tira de lá, passam umas semanitas sem ele andar aí fora a
roubar mais…
Outros
tempos... Que bons e velhos tempos esses! E que falta fazia que se fizesse
sempre assim.
José
Coelho in Histórias do Cota