sexta-feira, 16 de junho de 2017

Coisas q'escrevi...

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O primo do doutor juiz


É da maior justiça referir que o meu desempenho como comandante do posto de Nisa, naquele já distante intervalo temporal entre Agosto de 1985 e Outubro de 1992, não teria tido o êxito que teve se não fosse, como já aqui referi, a preciosa colaboração do pessoal da Polícia Judiciária da Delegação de Tomar que prontamente “acudiam” aos meus pedidos de ajuda nas mais diversas situações quando tínhamos imensos indícios deixados pelos ladrões mas não tínhamos depois os meios técnicos e científicos para os analisar e com eles conseguir posteriormente incriminar os culpados para os apresentar em tribunal.

Por outro lado e tão importante como a colaboração da PJ era também a dos altos responsáveis pela administração da justiça na comarca, fossem eles os meritíssimos juízes, ou os excelentíssimos delegados do procurador da República junto daquele tribunal que normalmente aplicavam a Lei de uma forma particularmente eficaz.

Muitos desses ilustríssimos magistrados cujos nomes não posso por razões óbvias referir, faziam o favor de me dispensarem a sua estima e consideração que eu fazia por merecer actuando sempre com dignidade em todas as situações e no uso do melhor que sabia, de forma legítima e isenta, esforçando-me por não exceder nunca as minhas competências no cumprimento dos preceitos previstos e prescritos na Lei.

Nem sempre consegui em boa verdade. Cometi alguns erros, porém nunca deliberados e muito menos por excesso de zelo ou má fé. Exemplo disso, uma peripécia que vos vou contar hoje, não porque considere que agi da forma mais correcta, mas porque, humano que sou, me faltou mesmo a paciência e a serenidade que qualquer agente da autoridade nunca deveria perder.

Havia em Arêz um indivíduo ruinzinho, muito conflituoso e agressivo com quase toda a gente. Era meio corcunda. Não sei se por ter aquela deformidade física, era de facto mau como só ele mesmo e não se dava com quase ninguém. Criava conflitos com toda a vizinhança por tudo e por nada e se algumas vezes as patrulhas tinham que intervir era certo e sabido que tinha que haver sempre chatices porque ele não se coibia de responder mal e agressivamente fosse a quem fosse.

Tinha este indivíduo uma meia dúzia de vacas de raça turina que explorava como modo de vida, pastoreando-as por ali e vendendo depois o leite que lhe rendia algum dinheiro como é natural. Até aqui tudo bem, era uma forma de subsistência como outra qualquer. O grande e principal problema porém era que ele não tinha terrenos nem pastos suficientes para pastorear as vacas o ano inteiro e invadia as propriedades dos vizinhos a torto e a direito indiferente aos protestos deles, maltratando-os e ameaçando-os verbalmente sempre que estes reclamavam e tendo mesmo chegado a agredir fisicamente alguns mais idosos com quem ele se atrevia melhor.

Foi a sua apetência de transgredir os preceitos de boa vizinhança e por achar seus, os pastos dos outros, que me levou ao confronto com ele. Após a enésima queixa de mais um vizinho, mandei, pela enésima vez também, a patrulha de intervenção ir avisá-lo que não podia invadir aquele terreno com as vacas. Como já se previa, o indivíduo para além de receber a patrulha com a maior insolência como era seu uso e costume, retrucou que “aquilo não eram terrenos da guarda nem do Estado e quer por isso nós não tínhamos nada com isso...”

Em acto contínuo a patrulha contactou-me via rádio a dar conta da situação mas como não achei que aquela manifestação de pura ruindade pudesse conformar um crime de desobediência passível de detenção assim à priori, ordenei-lhes pela mesma via que o notificassem oficialmente e por escrito para comparecer no dia seguinte a determinada hora no posto para eu tentar de uma vez por todas elucidar o indivíduo que tinha que respeitar a lei e a ordem como qualquer outro cidadão. Mais lhes dei ainda indicações que o avisassem, para que ficasse ciente, que a sua não comparência depois de devidamente notificado, implicaria outras medidas legais mais gravosas.

O “gajo” era bruto de facto mas de parvo não tinha nada e no dia seguinte à hora que lhe tinha sido indicada lá estava o corcundinha a deitar fumo pelas ventas à minha frente e no meu gabinete. Nem me deu tempo de lhe explicar nada. Começou logo por me “avisar” que era primo direito do doutor juiz – um dos tais de quem eu era bastante amigo por sinal – e que me pusesse a pau que ele (corcunda) “tirava-me a farda”. Depois, nos mesmos modos irados, fez-me notar, como se isso não fosse visível, que era deficiente e que por isso tinha mais direitos do que as pessoas perfeitas porque essas podiam “fazer pela vida” melhor do que ele. 

Ia continuar a sua verborreia verbal mas teve azar porque eu tinha já perdido a paciência e dei-lhe um berro:

- CALE-SE…

O meu tom de voz não augurava já nada de pacífico.

Mas, velhaco como as cobras, o indivíduo não se intimidou. Qual quê! Cresceu para mim, encostou quase o seu nariz ao meu. E provocantemente, perguntou-me num tom zombeteiro:

- Quer bater-me?

- Quer?

- Vá! Bata-me…  

- Ande lá, bata-me…

Záááás… Nem é tarde, nem é cedo!

Afifei-lhe um bofetão de mão aberta  com tanta genica que o infeliz balançou e ia caindo desamparado para cima da outra secretária onde estava um dos Cabos a dactilografar ofícios.

Em seguida respondi-lhe, no mesmo tom que ele utilizara:

- Não, por acaso não queria bater-lhe. Isso não estava nos meus planos. Mas como insistiu tanto não pude deixar de lhe fazer a vontade… Ou o senhor cuida que por ser deficiente físico pode fazer e dizer tudo quanto lhe dá na gana e que nós somos todos obrigados a ter muita pena do coitadinho do corcundinha? Como vê, comigo pia fininho e sairam-lhe as contas furadas...

O energúmeno empalideceu primeiro, depois ficou vermelho e a seguir ameaçou:

- Vou agora mesmo fazer queixa de si ao meu primo juiz que ele já lhe faz a cama… Você está lixado!

E saiu porta fora de estantilhão dirigindo-se mesmo para o tribunal de Nisa. Não fiquei minimamente preocupado. Não devia ter-lhe batido, é certo. Não foi um comportamento correcto da minha parte, também é verdade, mas não consegui conter-me. No entanto conhecia suficientemente bem o senhor doutor juiz e ele conhecia-me também a mim de igual modo. Não era meu hábito negar fosse que episódio fosse. E se ele me tivesse chamado ter-lhe-ia dito toda a verdade sem omitir nada e sem qualquer hesitação.

Porém, tal não foi necessário, muito pelo contrário.

Passada mais de uma hora o corcundinha compareceu de novo no posto muito mais calminho, rabinho entre as pernas como costuma dizer-se, mandado pelo seu primo juiz, o qual, ao contrário do que ele esperava, lhe terá respondido:

- Se o sargento Coelho te deu uma bofetada é porque de certeza tu já merecias duas, pois eu conheço muito bem o homem. Vai lá e pede-lhe desculpa, escuta o que ele tem para te dizer que deve ser para teu bem, antes que tenhas problemas maiores e mais sérios…

Não tenho qualquer dúvida. Se não fosse a excelente colaboração entre a instituição que eu servia e todas as outras instituições públicas de Nisa, que, antes de eu ali chegar, era pura e simplesmente inexistente, todo o meu trabalho e empenho, bem como o de todos os militares que comigo se empenhavam dia e noite, nunca teria alcançado tais resultados. E o desfecho deste episódio revela a confiança absoluta que existia entre nós, neste caso concreto, entre o tribunal e a guarda.

Para terminar por hoje só mais uma atitude normalíssima deste extraordinário magistrado, quando certa vez lhe apresentei um indivíduo que tinha detido em flagrante delito a roubar, e que ele, após os trâmites legais cumpridos, de imediato o mandou conduzir ao Estabelecimento Prisional de Castelo Branco como medida cautelar. Mais tarde comentou comigo: - Sargento Coelho este já foi lá para dentro. E enquanto o advogado o tira ou não tira de lá, passam umas semanitas sem ele andar aí fora a roubar mais…

Outros tempos... Que bons e velhos tempos esses! E que falta fazia que se fizesse sempre assim.


José Coelho in Histórias do Cota