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Ovelhas voadoras
Foi em 1985/1986 mais ano menos ano que teve início a atribuição
de subsídios para os gados dos agricultores portugueses. Por cada cabeça manifestada recebiam anualmente determinada quantia, tal como
acontece desde então até hoje, pese embora actualmente já seja tudo de tal maneira
controlado que quando morre uma rês manifestada é um pincel de todo o tamanho
para qualquer agricultor que tem que justificar mais que justificada a falta do animal
no dia do controlo sanitário.
Porém
no início foi um autêntico regabofe pois o controlo era pouco eficaz e susceptível de ser facilmente
viciado.
Chegavam
ao meu conhecimento em jeito de rumores públicos os relatos mais recambolescos que nunca consegui confirmar. Estratagemas tais que, por exemplo, não havendo
ainda a obrigatoriedade do uso dos brincos com os respectivos números de
registo nos animais, o controlo era essencialmente feito apenas por contagem das
cabeças de gado declaradas. Conferiam os técnicos somente se o número de
cabeças presente no curral condizia com o número declarado para efeitos da
atribuição do subsídio.
Havia - dizia-se - muitas reses que, sendo sempre as mesmas, eram contadas cinco ou seis vezes, porque eram emprestadas de vizinho para vizinho. Muitos deles tinham apenas 40 cabeças mas declararem 70
ou 80. Havia então que pedir emprestadas as que eram
necessárias no dia da fiscalização para a contagem bater certo. E assim os dados eram viciados e completamente falsos. Constavam por exemplo 5000 ovinos num concelho
onde na realidade só havia 3000.
Para
cúmulo da facilidade as visitas dos técnicos para a conferência das existências
declaradas por cada ganadeiro eram sempre previamente avisadas com dias
de antecedência, com o único propósito de os proprietários manterem os gados nos currais
no dia e hora marcados, mas que dava azo a todas essas falcatruas para
as quais sempre tivemos, enquanto povo português e infelizmente, a maior
apetência e leviandade.
O
que hoje vos vou contar foi um episódio em que fui interveniente directo.
E que tem tudo a ver com essa situação.
Certa
manhã ainda mal tinha posto os pés no meu gabinete e já o plantão me estava a
informar que estava ali um senhor que vinha denunciar um avultado roubo de que havia sido vítima essa noite.
Alguém tinha ido à cabana onde pernoitava o seu rebanho e lhe
tinha roubado nada mais, nada menos do que trinta ovelhas!
-
Ó diabo! Trinta ovelhas? Tiveram que as levar num camião! Pensei eu.
Um
cabrito aqui, um borrego ali, até mesmo um bezerro acolá, de vez em quando já
acontecia por aqueles arredores tendo em conta que em todo o concelho de Nisa desde Vila Velha de Ródão, Arneiro, Pé da Serra, Monte Claro, Amieira e Arez, até quase à Comenda, tudo era cabanas de gado bovino, caprino e ovino. Esses pequenos delitos na maior parte das vezes eram feitos para consumo de
casa de quem gostava de ter nas arcas congeladoras carnes de boa qualidade mas não as queria comprar.
Mas, ó diacho...
Trinta ovelhas era quase o rebanho inteiro e isso exigia um grande transporte para as carregar e levar! Teria que ter havido um chavascal imenso para agarrar uma
a uma e um trabalhão que inevitavelmente teria que ter deixado muitos vestígios no
local.
Sem
pensar duas vezes meti-me no jipe com o motorista e o queixoso atrás de nós e lá fomos de
imediato ao local do crime.
Lá
chegados, para enorme surpresa minha, não havia qualquer rasto visível. Nem de rodados de veículo, nem pegadas de calçado, nem qualquer vestígio de luta com as
ovelhas que decerto não se deixariam agarrar de mão beijada e sem correrias mesmo durante a
noite. Nem sequer a fechadura da cabana tinha sido forçada.
Deduzi
imediatamente que o queixoso não estava a falar verdade. Até pela sua falta de à vontade,
pelas respostas evasivas, enfim, por todo o seu ar meio
atarantado.
E comentei:
-
Ó senhor João as suas ovelhas não devem ter sido roubadas, não senhor. Devem é ter levantado voo, porque, como vê, aqui não há sinais de nada. Ninguém aqui
chegou, nem de camioneta nem a pé, senão teriam deixado rastos. Por isso com certeza foi
a voar que as suas badanas fugiram…
-
Pois! Respondeu ele.
E manifestamente mais preocupado com as consequências do que com o “roubo”
das ovelhas, desabafou ingenuamente:
-
O pior é que vem cá hoje a fiscalização contá-las para o "subsílio". E agora faltam trinta! O
senhor sargento tem que me passar um papel “in conforme” mas roubaram esta noite!
-
Bingo! Pensei eu:
-
Cá está a explicação!
Voltámos
para o posto os três.
Com a maior diplomacia que fui capaz, disse-lhe que era óbvio ele
não estava a falar verdade e que aquilo podia ser complicado porque estava a
causar falso alarme social e a cometer uma série de infracções graves. Por isso o
melhor era pensar bem no que estava a fazer pois para poder receber uma dúzia de contos de reis
indevidos estava a denunciar um crime inexistente que até um cego via
que não tinha acontecido e lhe podia dar sérias chatices.
O
homem pensou, ponderou melhor e a seguir disse-me que sim senhor, era mentira.
Não lhe tinham roubado nada. Ele é que tinha declarado 30 ovelhas a mais. Nunca pensou que eu ia lá "précurar" o rasto dos ladrões e que a única coisa que queria era o papel da queixa para poder mostrar aos fiscais “in conforme” tinha ido ao posto denunciar a falta do gado.
Entretanto e porque a situação fora formalmente apresentada e tinha já sido devidamente
registada pelo plantão em livro próprio do posto, assim como também já fora mencionada no
Sitrep diário, não podia a Guarda fazer outra coisa senão enviar o
auto de denúncia para o magistrado do ministério público do tribunal de Nisa
com a descrição dos factos. Consequentemente, após instrução do processo promovida por aquela entidade judicial, o referido senhor, entre outros
incómodos, perdeu o direito ao subsídio por falsas declarações.
Daí
em diante quem tinha gado para declarar começou a ter mais cuidado na sua contagem
para receber apenas o montante devido, pois aquela xico-espertice do ti João começou a passar de boca em boca e em pouco tempo ficou conhecida
de toda a gente, ainda mais por ter originado a perda também do subsídio das 50 ovelhas que de facto lá estavam.
Como diz o povo:
Quando vires as barbas do teu vizinho a
arder, mete as tuas de molho…
José
Coelho in Histórias do Cota
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