sexta-feira, 2 de junho de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem retirada do Google


Trabalhem malandros …
(para isso vos pagam)


Nos primeiros dois anos da minha nova função decidi conhecer palmo a palmo toda a área cuja ordem e tranquilidade públicas estavam confiadas à responsabilidade do “meu” posto para poder coordenar melhor o policiamento e vigilância de tão grande extensão territorial.

Foram precisas muitas horas a calcorrear de jipe e a pé as povoações e os seus acessos para perceber a intrincada teia de estradas e caminhos rurais pelas encostas e pinhais da serra de S. Simão a norte e nascente, depois pelas densas matas de eucaliptos a sul e poente de Nisa.

Apesar de todo o meu empenho as queixas dos mais diversos furtos sucediam-se diariamente no posto, com prevalência para o desaparecimento dos gados que enxameiam por toda a área daquele concelho eminentemente produtor do leite que dá origem ao "Queijo de Nisa DOP" cuja fama há muito cruzou fronteiras.

Vi-me por isso na necessidade de, muito em segredo como convinha e para não espantar os ladrões antes de os conseguirmos apanhar, pedir ajuda à Polícia Judiciária de Tomar que tal como nós tinha também a seu cargo a àrea de Nisa para investigação de crimes da sua exclusiva competência.

Assim começámos um trabalho conjunto cada um na sua esfera de competências comando e chefia mas orientado todo ele para um só objectivo. Travar a onda de roubos e apanhar os ladrões. Levou meses. Muitas vezes as equipas da PJ foram recebidas na minha casa sem ninguém imaginar sequer quem seriam aqueles senhores. E muitas merendas a minha esposa preparou para eles petiscarem depois de calcorrearem horas a fio os agrestes caminhos de acesso aos currais na procura de pistas junto dos pastores ou mesmo no próprio terreno.

Em consequência dessa estreita colaboração que apenas era do meu conhecimento e do senhor oficial comandante da Secção como não podia deixar de ser, estabeleceu-se pouco a pouco uma amizade institucional entre mim e as equipas daquele brilhante e eficaz organismo. De tal modo que mais tarde resultou mesmo na sua extensão aos familiares de alguns deles, como foi o caso da esposa e filhos de um dos subinspectores que passaram a visitar-nos e que nós visitávamos também, amizade que se mantém até hoje.

Só muitas semanas mais tarde quando por fim se conseguiu referenciar o bando de ladrões e recuperar algum do gado roubado é que o efectivo do posto percebeu quem eram aquelas equipas de gente estranha que frequentavam a minha casa, porque houve muitas diligências a ser realizadas já no posto, como por exemplo a audição de alguns suspeitos, a recolha de impressões digitais dos mesmos, enfim, toda a panóplia de inquirições e démarches necessárias à instrução do processo-crime entretanto aberto.

Na sua maioria os roubos eram levados a cabo por um bando de ladrões devidamente chefiados por um Ali Bábá das bandas de Belmonte, que, organizadamente, vinham durante o dia marcar o terreno uns, para durante a noite efectuarem os assaltos, outros. Transportavam imediatamente os gados roubados para o interior da Beira Baixa de onde os encaminhavam a seguir para alguns matadouros mais a norte numa acção perfeitamente concertada e certinha que seria impossível descobrir se não tivéssemos a excelente e competentíssima PJ neste país de xicos-espertos onde só não consegue enriquecer e singrar na vida quem trabalha honestamente.

Foram meses de muito trabalho e secretismo. Foram também meses de cenas caricatas e divertidas que aconteciam e nos ajudavam a descontrair, esquecendo um pouco as frustrações imensas que qualquer investigação criminal inesperadamente proporciona, quando, por exemplo, nos parece que estamos mesmo quase, quase, a atingir um alvo, e, de repente, verificamos que todas as pistas que vínhamos a seguir eram falsas.

A investigação criminal que sempre me fascinou e proporcionou saborosos êxitos no combate ao crime, também muitas vezes teve o efeito devastador de me fazer chegar à conclusão que todo o meu trabalho e esforço tinham sido inúteis. Ainda assim, sem dúvida que valeu sempre a pena. Hoje temos os NICs. Se eu voltasse para o serviço gostaria de ser um desses elementos. Porque é fascinante o seu trabalho de pesquisa e investigação. Que o diga o meu caçula que enveredou por esse caminho.

Uma situação caricata que vivemos, foi quando, depois de muito trabalho de investigação, se conseguiu localizar e recuperar uma dúzia de cabras com os seus cabritos que tinham sido roubadas a um casal de idosos no Monte do Pardo.

Quisémos eu e o subinspector da PJ estar presentes no momento da descarga do gado e respectiva devolução aos donos. Por um lado por nos sentirmos realizados com tal resultado, por outro lado para transmitirmos também alguma confiança às populações que andavam inquietas e com receios permanentes de verem uma noite qualquer desaparecer também o seu gado.

A nossa presença naquele acto simbólico queria no fundo incutir algum sossego e mostrar que estávamos no terreno e perto deles a tentar cumprir o nosso dever. Assim que as cabras lhe foram entregues e verificado que nenhuma faltava, veio o dono, de boné na mão, muito reconhecido, agradecer por terem conseguido recuperar as suas cabrinhas e chibos. Porém, muito dona do seu nariz e muito mal-encarada, a mulher do pastor sentenciou inclemente:

- Ora essa! Qual obrigado, qual quê? Só fizeram a sua obrigação! É para isto que o estado lhes paga!

E abalou a resmungar tocando as cabras, deixando atónito o seu homem, mais ainda do que a nós. Envergonhado pediu desculpa, agradeceu de novo e lá foi também atrás da mulher mais do seu rebanho. 

E nós ficávamos a vê-los ir rindo a bandeiras despregadas e a assimilar o veredicto da despachada velhota.

- Toma lá que já almoçaste! Retorquiu, olhando para mim bastante divertido, o amigo Manel, o subinspector…


José Coelho in Histórias do Cota