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O porta-moedas
Não
há bela sem senão, diz o ditado. A pacata normalidade em que a minha vida se
transformara desde a colocação em Castelo de Vide foi de repente sacudida por
um desagradável incidente, talvez mais fruto daquele espírito de mal
dizer que todos nós praticamos um pouco de vez em quando, do que de verdadeira
intenção de me caluniarem. Mas eu não gostei nem um pouco e caiu-me tão mal e
tão fundo que a coisa esteve mesmo muito feia.
Mas
é melhor começar pelo princípio.
Foi
numa sexta-feira de mercado franco que se estendia por toda a Carreira de Baixo
e Praça D. Pedro V. De patrulha pelo recinto, cirandava despreocupadamente por
entre as bancadas daquele de-tudo-um-pouco quando um tendeiro me chamou para me
entregar um porta-moedas que alguma freguesa deixara esquecido sobre a sua
bancada repleta de tecidos.
Dizia-se
(e continua a dizer-se) tão mal dos ciganos e tendeiros que a atitude honesta
do homem nos surpreendeu e mostrou que afinal eles são, como toda a gente
e como eu sempre pensei também, bons e maus, melhores ou piores, exactamente
como o resto das pessoas. Logo
ali abrimos o dito cujo porta-moedas. Continha uma nota de mil escudos, alguns
trocos em moedas e um papel onde estava escrito:
“
Saia de camilha medida de 1,80 m - Fernanda Maniés.”
Mal
vi o nome disse logo ao senhor que já imaginava de quem poderia ser aquele
porta-moedas. Mas, pelo sim, pelo não, nada mais adiantei.
A
tal Fernanda Maniés mencionada no papel que estava dentro do porta-moedas era a
esposa meu primo-irmão Augusto Maniés que morava na Travessa do Forno muito
perto da minha casa.
Porém
e como era meu dever levei o porta-moedas para o posto no final da patrulha,
registei a ocorrência no livro próprio para os achados e deixei-o
ao cuidado do plantão como era uso e costume. Mil escudos no início da década
de oitenta eram ainda uma mão cheia de dinheiro. Imaginei a aflição da prima e
a falta que lhe deveriam fazer, por isso quando fui almoçar bati-lhe à porta e
perguntei-lhe apenas:
-
Fernanda, falta-te alguma coisa?
Com
ar preocupado ela respondeu-me:
-
Sabes lá Zé Manel! Perdi o meu porta-moedas no mercado e não há quem ature o
teu primo. Até já brigámos por causa disso…
Eu
poderia ter-lhe dito logo ali que devia ser aquele que o tendeiro me tinha entregue
e eu deixara no posto. Mas pelo brio profissional que sempre me prezei de ter e
para evidenciar o quanto era isento no desempenho das minhas funções, apenas disse:
-
Está um porta-moedas no posto que um tendeiro entregou. Passa por
lá, indica os sinais que identifiquem como era o que tu perdeste, porque, se
for aquele, o plantão devolve-to imediatamente.
Curiosamente
e porque essas coisas nos marcam profundamente, passados todos estes
anos ainda me lembro que o plantão era o camarada que me tinha dado boleia a
Portalegre às escondidas, para ir ver o meu filho Pedro recém-nascido.
Entretanto
fui almoçar e voltei a seguir para o posto. Naquele tempo não era como é hoje.
Se estivéssemos escalados para sair de patrulha às sete ou oito da tarde,
tínhamos que ir para o posto a partir das nove da manhã e lá permanecer até às
cinco da tarde. Depois íamos fazer a respectiva patrulha de oito horas, contínuas ou repartidas, conforme o caso.
Se
pelo contrário estivéssemos a sair de madrugada e a regressar até ao meio-dia,
às duas da tarde tínhamos que nos apresentar no posto à mesma e ali permanecer
até às cinco. Só as patrulhas de oito horas nocturnas consecutivas davam o dia
seguinte de folga porque eram quase sempre da meia-noite às oito da manhã. Porém muitas
vezes acontecia por exemplo estar-se de patrulha à vila até à meia-noite, e, à
meia noite e um minuto entrar novamente de patrulha nocturna até às oito do dia
seguinte. Ainda assim estávamos sempre desejando fazer essas nocturnas para
ficarmos em casa no dia seguinte com a família.
Era
uma quase escravidão. Muitos, mas muitos dias mesmo, fazíamos dezasseis ou mais
horas diárias por causa dessa permanência obrigatória no posto, fosse qual
fosse o horário da patrulha em escala de serviço. Sábados, domingos e dias
santos incluídos, com direito apenas a um dia de folga semanal. Por
isso, estávamos no posto durante as horas do dia, nove ou dez guardas, entre plantão, apoio e piquete, para além dos que iriam patrulhar ao fim do dia,
nunca sendo escaladas simultaneamente mais do que duas patrulhas. Uma à vila,
outra à estrada ou aos campos. E quando aquelas regressavam saíam outras duas cobrindo-se assim normalmente as 24 horas de cada dia com pessoal sempre na rua
pronto para qualquer ocorrência.
Apenas
o comandante de posto era um lorde que não fazia nada. Vinha de casa às nove,
dizia umas lampanas, desenrolava as cusquices que pairavam pela vila e ao meio
dia ia almoçar. Depois às duas ia tomar café e saber mais umas novidades e
vinha fazer a escala para o dia seguinte. E às dezassete voltava para sua casa
dizendo “até amanhã, meus senhores”, voltando por ali a aparecer de vez em
quando já de traje civil originando que todos nós murmurássemos em surdina:
-
Quando eu for grande quero ser cabo e comandante de posto…
Mas
voltando à narrativa daquela sexta feira e ao porta moedas da Fernanda Maniés, sendo o meu serviço o de patrulha à vila e, simultaneamente ao mercado, fiz
quatro horas na parte da manhã e fui fazer outras quatro da parte da tarde.
Entretanto a prima já tinha ido ao posto, já lhe tinha sido entregue o
porta-moedas pelo plantão porque facilmente se provou que era mesmo o dela, a
qual, por sua vez, já tinha ido agradecer e gratificar o tendeiro que
tivera a honestidade de o entregar.
Por isso, quando por lá passei de novo, o homem veio logo dizer-me tudo isso sem saber que
a Fernanda ainda era minha parente. Nem eu lho adiantei, por o achar desnecessário.Terminei
pacificamente o meu horário de patrulha e regressei ao posto sem mais novidade.
Quando entrei estava o cabo comandante a rir-se muito e verifiquei que o tema da conversa era o porta moedas perdido e depois
recuperado, mas não liguei.
Fiz
a respectiva apresentação e o relatório verbal do costume indo em seguida arrumar a arma e
o bastão. Mantive-me depois por ali mais um bocado até se fazerem horas de jantar.
Entretanto a tal conversa já tinha mudado de rumo e alguns dos camaradas que
nela eram intervenientes já tinham ido embora também.
Decidi
por fim ir para casa acompanhado de outro camarada meu vizinho, aquele que era
de Alegrete e morava na Rua Nova muito perto do "meu" Cipresteiro. Para
além de ser um excelente camarada, estabelecera-se já entre nós e as nossas
famílias uma boa amizade. Talvez mais por isso do que por tendência em fomentar
intrigas, assim que nos afastámos um pouco do posto, começou por me dizer:
-
Amigo Coelho vou-lhe contar uma coisa mas você faça de conta que não sabe. É
mesmo só para você se por a pau com algumas pessoas que se fazem muito suas
amigas lá dentro do posto mas depois nas suas costas…
Esperei
que ele continuasse sem dar grande importância porque, de consciência tranquila em relação a tudo o que fazia e dizia no meu dia-a-dia não temia nada que pudesse perturbar esse meu sossego de espírito.
-
É sobre a carteira que você hoje levou para o posto. Continuou ele.
-
Quando você chegou não se apercebeu da conversa? Inquiriu.
-
Sim! Respondi. Apercebi-me que estavam a falar nisso mas não prestei atenção.
-
Pois! O nosso camarada (…) estava a dizer que se calhar você combinou o jogo
com a sua prima Fernanda para ela ir lá buscar a carteira e depois dividirem o
dinheiro a meias. Mas você não diga nada…
Foi
como se um raio me atingisse de súbito.
Não
era possível que um energúmeno daqueles fosse capaz de descer tão baixo e
acusar-me de uma coisa tão suja, achando-me capaz de algo tão desprezível.
Logo um conterrâneo meu, cujo pai fora, segundo ele mesmo contava, o mestre
pedreiro construtor da casa do meu pai e que se gabava até de a ter ajudado a
construir por ter também lá trabalhado em 1950. E,
como se isso não bastasse, era ainda um dos camaradas que eu mais admirava e
respeitava pela sua impecável postura, pelo seu profissionalismo, pelo seu
porte irrepreensível de agente da autoridade o qual me esforçava por imitar na medida do que era capaz, tendo-o mesmo eleito como o modelo de guarda
perfeito que eu tencionava seguir.
Hoje à luz da maturidade e da reflexão que o tempo sempre nos traz, reconheço que
aquilo foi apenas e só uma “boca” infeliz dele, um mero palpite mordaz, uma
cusquice bacoca e sem qualquer fundamento, enfim, uma parvoíce daquelas que todos
nós humanos pronunciamos de vez em quando em momentos menos ponderados da
nossa complexa existência.
Mas
naquele dia e naquele contexto, tal acusação foi para mim um poderoso veneno altamente
tóxico e absolutamente impossível de digerir e ficar calado..
José
Coelho in Histórias do Cota