quarta-feira, 12 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

O Pedro já com 3 meses e o Manel amuado porque queria
a bicicleta que estava no estúdio do fotógrafo



A família cresceu


O melhor desse ano de 1980 que começara para nós tão bem estava ainda para vir. Pouco tempo depois, aquele que viria a ser o quarto elemento da nossa família, anunciou que vinha a caminho. Que coisa melhor pode acontecer a um casal do que essa verdadeira bênção? Mais um filho. Que maravilha! Menino ou menina, não fizemos nunca escolhas antecipadas. Viesse o que viesse seria muito bem-vindo. Que tivesse perfeição e saúde, era a única coisa que nós pedíamos a Deus.

Foi aquele um tempo muito duro para todos os gnr’s. A reforma agrária continuava pelas herdades do distrito com as habituais tensões e conflitos a originarem inimizades com tudo o que era guarda. Curiosamente, tal facto era gerador de uma unidade interna e familiar muito forte. Confiávamos uns nos outros, sentíamo-nos seguros uns com os outros, éramos unidos como uma grande família. Por sua vez as nossas famílias davam-se também muito bem, o que gerava de facto um ambiente muito íntimo, muito nosso e muito acolhedor.

O serviço era exigente e rigorosíssimo. Não havia facilidades para ninguém. Casa, posto, e posto, casa. Nem vagar havia para se estar doente. Uma folga por semana e se pudesse ser, porque o serviço tinha prioridade. Quem lhe calhasse a folga à terça ficava “ad-eternum” a folgar às terças, enquanto os sortudos que lhes calhava o domingo, idem, idem, aspas, aspas.

Tínhamos que fazer 72 horas consecutivas duas a três vezes por mês, porquanto o plantão era 24 horas de permanência no posto, seguido do apoio ao plantão, com outras 24. Para rematar entrava-se de piquete com outras 24 horas de serviço mas já com a benesse de se poder ir dormir para casa, mantendo-se no entanto atento e sempre pronto para resolver qualquer ocorrência até ao dia seguinte quando os outros camaradas nos substituíam.

A escala era por isso muito exigente. Mas era assim em todo o lado. O serviço era o dono e senhor da vida de cada guarda. A família tinha que se contentar com as sobras de Sua Excelência, o Serviço. Festas e fins de semana eram coisas para civis porque nós éramos militares. E um militar da guarda tinha que estar sempre pronto fosse para o que fosse, 24 sobre 24 horas. O militar está sempre de serviço. Era o lema, a disciplina de ferro. E diziam os oficiais rondantes nas suas visitas para que ninguém duvidasse:

- Quem não estiver bem, meta o papel e vá-se embora…

A comprovar a prioridade exagerada e desumana que era dada na GNR ao serviço diário naquele tempo, vem a propósito referir o facto de o meu segundo filho ter nascido exatamente num dia em que eu estava de plantão ao posto. O parto correra normalmente embora a mãe ficasse bastante combalida porque o gaiato nasceu com mais de quatro quilos e a pobre viu-se e desejou-se para o trazer ao mundo. Em consequência do tamanho e peso anormais o Pedro teve que ir para a incubadora e ser mantido em vigilância permanente durante alguns dias afim de ser monitorizado para despiste de algum eventual problema cardíaco ou respiratório. Só depois seria entregue à mãe.

Eu estava evidentemente feliz mas algo preocupado com o facto de o menino ter ido para a incubadora. E naturalmente desejoso de lá ir vê-lo, animar a mãe e falar com o médico pediatra, para esclarecer as minhas naturais inquietações. Mas não pude ir. Estava na tal “quarentena” das 72 horas inseparável do posto. O Pedro nasceu no dia 22 de Abril. Para completar o meu castigo, no dia 23 saí do serviço de plantão às nove da manhã e entrei às nove e um minuto para mais 24 horas no apoio ao plantão que era exatamente a mesma treta e só mudava o nome. Nem dava sequer para ir tomar o pequeno-almoço a casa.

Eram 48 horas batidinhas e seguidas sem tirar aqueles suspensórios pretos horríveis e herdados do III Reich, tal como as espingardas Mauser, de tal modo que ostentavam ainda o monograma da águia sobre a cruz suástica gravado na zona da culatra. Aliás, todo o nosso uniforme nesse tempo era uma inspiração quase fiel do equipamento militar nazi. Felizmente alguém teve o bom senso e ainda o melhor gosto de o mudar e humanizar mais um pouco, porque todo aquele visual nos fazia parecer uma gestapo portuguesa.

Como consequência do meu azar na maldita escala de serviço, só pude conhecer o meu segundo filho quando ele tinha já três dias. Valeu-me um camarada da Ranginha, que, sabendo o que se estava a passar se ofereceu para me levar no seu carro ao hospital de Portalegre às escondidas e sem ninguém saber, pois nem sequer podíamos sair da área do nosso posto sem autorização superior. Seis anos depois do 25 de Abril de 1974 a GNR continuava parada no tempo e quase igual ao que era antes dele.

Inacreditável!

Fui encontrar o meu menino ainda dentro da incubadora. Tive que colocar uma touca, calçar pantufas e colocar uma máscara, tudo esterilizado, para entrar naquela sala cheia de balões de vidro com bebés lá dentro. E lá estava o meu matulão a chorar que nem um desalmado.

- Deve ter medo do meu estranho traje! Pensava eu, feliz.

Como gritava a plenos pulmões! Não parecia nada um bebé com problemas de saúde. Parecia, isso sim, um refilão de primeira. A enfermeira veio ao meu encontro e disse-me que sim, que ele era muito refilão porque não parava quieto nem calado.

Pouco depois veio também o pediatra ter comigo para me informar o motivo porque o miúdo ali permanecia. Que era apenas mera precaução, em virtude de algum excesso de peso. Mas não havia qualquer problema e que fosse para baixo para junto da mãe que o bebé já lá iria ter connosco.

E assim foi.

A mãe, coitada, é que ainda não se tinha recomposto. Parecia que tinha sido atropelada por um camião. Passara mesmo um mau bocado no parto, mas, tal como eu, estava muito mais preocupada por lhe terem levado o menino do que com as suas próprias mazelas. Tranquilizei-a, disse-lhe o que o médico me tinha acabado de dizer, e, não podendo demorar muito mais porque estava ali “fugido”, regressei ao posto mais sereno e feliz.

Garanto-vos uma coisa. Todos as desumanas barbaridades por que passei, formaram no meu íntimo uma determinação inabalável. Sabendo quanto me custou tudo aquilo, jamais o esqueci, mas não só. Em consequência disso agi sempre exactamente de forma totalmente oposta quando anos mais tarde fui comandante de posto. Em vez de complicar, ajudava quanto podia, todos os subordinados, sempre que precisavam dessa ajuda. Imaginava-me no seu lugar e assumi sempre a responsabilidade de os substituir quando surgiam problemas inesperados que precisavam ser resolvidos de imediato. Porque, no dia em que adquiri a responsabilidade de comandar efectivos, assumi também no meu íntimo um solene compromisso:

- Nunca fazer a ninguém, o que me fizeram a mim.

O serviço era de facto muito exigente. Mas o cabo comandante do posto podia, se tivesse querido, dar um jeitinho para eu ir numa fugida ver o filho e a mulher, mesmo estando de plantão. Qualquer camarada me substituiria durante duas ou três horas até eu voltar. Era uma questão de mera humanidade e o serviço não parava. Felizmente, hoje a Lei concede direitos a qualquer pai e nenhum comandante prepotente pode já cometer tais atropelos e injustiças.


José Coelho in Histórias do Cota