O Pedro já com 3 meses e o Manel amuado porque queria
a bicicleta que estava no estúdio do fotógrafo
A família cresceu
O
melhor desse ano de 1980 que começara para nós tão bem estava ainda para vir.
Pouco tempo depois, aquele que viria a ser o quarto elemento da nossa família,
anunciou que vinha a caminho. Que coisa melhor pode acontecer a um casal do que
essa verdadeira bênção? Mais um filho. Que maravilha! Menino ou menina, não
fizemos nunca escolhas antecipadas. Viesse o que viesse seria muito bem-vindo.
Que tivesse perfeição e saúde, era a única coisa que nós pedíamos a Deus.
Foi
aquele um tempo muito duro para todos os gnr’s. A reforma agrária continuava
pelas herdades do distrito com as habituais tensões e conflitos a originarem
inimizades com tudo o que era guarda. Curiosamente, tal facto era gerador de
uma unidade interna e familiar muito forte. Confiávamos uns nos outros,
sentíamo-nos seguros uns com os outros, éramos unidos como uma grande família.
Por sua vez as nossas famílias davam-se também muito bem, o que gerava de facto
um ambiente muito íntimo, muito nosso e muito acolhedor.
O
serviço era exigente e rigorosíssimo. Não havia facilidades para ninguém. Casa,
posto, e posto, casa. Nem vagar havia para se estar doente. Uma folga por
semana e se pudesse ser, porque o serviço tinha prioridade. Quem lhe calhasse a
folga à terça ficava “ad-eternum” a folgar às terças, enquanto os sortudos que
lhes calhava o domingo, idem, idem, aspas, aspas.
Tínhamos
que fazer 72 horas consecutivas duas a três vezes por mês, porquanto o plantão
era 24 horas de permanência no posto, seguido do apoio ao plantão, com outras
24. Para rematar entrava-se de piquete com outras 24 horas de serviço mas já
com a benesse de se poder ir dormir para casa, mantendo-se no entanto atento e
sempre pronto para resolver qualquer ocorrência até ao dia seguinte quando os
outros camaradas nos substituíam.
A
escala era por isso muito exigente. Mas era assim em todo o lado. O serviço era
o dono e senhor da vida de cada guarda. A família tinha que se contentar com as
sobras de Sua Excelência, o Serviço. Festas e fins de semana eram coisas para
civis porque nós éramos militares. E um militar da guarda tinha que estar
sempre pronto fosse para o que fosse, 24 sobre 24 horas. O militar está sempre
de serviço. Era o lema, a disciplina de ferro. E diziam os oficiais rondantes
nas suas visitas para que ninguém duvidasse:
-
Quem não estiver bem, meta o papel e vá-se embora…
A
comprovar a prioridade exagerada e desumana que era dada na GNR ao serviço
diário naquele tempo, vem a propósito referir o facto de o meu segundo filho
ter nascido exatamente num dia em que eu estava de plantão ao posto. O parto
correra normalmente embora a mãe ficasse bastante combalida porque o gaiato
nasceu com mais de quatro quilos e a pobre viu-se e desejou-se para o trazer ao
mundo. Em consequência do tamanho e peso anormais o Pedro teve que ir para a
incubadora e ser mantido em vigilância permanente durante alguns dias afim de
ser monitorizado para despiste de algum eventual problema cardíaco ou respiratório. Só depois
seria entregue à mãe.
Eu
estava evidentemente feliz mas algo preocupado com o facto de o menino ter ido
para a incubadora. E naturalmente desejoso de lá ir vê-lo, animar a mãe e falar
com o médico pediatra, para esclarecer as minhas naturais inquietações. Mas não
pude ir. Estava na tal “quarentena” das 72 horas inseparável do posto. O Pedro
nasceu no dia 22 de Abril. Para completar o meu castigo, no dia 23 saí do
serviço de plantão às nove da manhã e entrei às nove e um minuto para mais 24
horas no apoio ao plantão que era exatamente a mesma treta e só
mudava o nome. Nem dava sequer para ir tomar o pequeno-almoço a casa.
Eram
48 horas batidinhas e seguidas sem tirar aqueles suspensórios pretos horríveis
e herdados do III Reich, tal como as espingardas Mauser, de tal modo que
ostentavam ainda o monograma da águia sobre a cruz suástica gravado na zona da
culatra. Aliás, todo o nosso uniforme nesse tempo era uma inspiração quase fiel
do equipamento militar nazi. Felizmente alguém teve o bom senso e ainda o
melhor gosto de o mudar e humanizar mais um pouco, porque todo aquele visual
nos fazia parecer uma gestapo portuguesa.
Como
consequência do meu azar na maldita escala de serviço, só pude conhecer o meu
segundo filho quando ele tinha já três dias. Valeu-me um camarada da Ranginha,
que, sabendo o que se estava a passar se ofereceu para me levar no seu carro
ao hospital de Portalegre às escondidas e sem ninguém saber, pois nem sequer
podíamos sair da área do nosso posto sem autorização superior. Seis anos
depois do 25 de Abril de 1974 a GNR continuava parada no tempo e quase igual
ao que era antes dele.
Inacreditável!
Inacreditável!
Fui
encontrar o meu menino ainda dentro da incubadora. Tive que colocar uma touca,
calçar pantufas e colocar uma máscara, tudo esterilizado, para entrar naquela sala
cheia de balões de vidro com bebés lá dentro. E lá estava o meu matulão a
chorar que nem um desalmado.
-
Deve ter medo do meu estranho traje! Pensava eu, feliz.
Como
gritava a plenos pulmões! Não parecia nada um bebé com problemas de saúde.
Parecia, isso sim, um refilão de primeira. A enfermeira veio ao meu encontro e
disse-me que sim, que ele era muito refilão porque não parava quieto nem calado.
Pouco
depois veio também o pediatra ter comigo para me informar o motivo porque o
miúdo ali permanecia. Que era apenas mera precaução, em virtude de algum excesso
de peso. Mas não havia qualquer problema e que fosse para baixo para junto da
mãe que o bebé já lá iria ter connosco.
E
assim foi.
A
mãe, coitada, é que ainda não se tinha recomposto. Parecia que tinha sido atropelada por
um camião. Passara mesmo um mau bocado no parto, mas, tal como eu, estava muito
mais preocupada por lhe terem levado o menino do que com as suas próprias
mazelas. Tranquilizei-a, disse-lhe o que o médico me tinha acabado de dizer, e,
não podendo demorar muito mais porque estava ali “fugido”, regressei ao posto
mais sereno e feliz.
Garanto-vos
uma coisa. Todos as desumanas barbaridades por que passei, formaram no meu íntimo uma determinação inabalável. Sabendo quanto me custou tudo aquilo, jamais o esqueci, mas não só. Em consequência disso agi sempre exactamente de forma totalmente oposta quando anos mais tarde fui comandante de posto. Em vez de complicar, ajudava quanto podia, todos os subordinados, sempre que precisavam dessa ajuda. Imaginava-me no seu
lugar e assumi sempre a responsabilidade de os substituir quando surgiam problemas inesperados que precisavam ser resolvidos de imediato. Porque, no dia em que adquiri a responsabilidade de comandar efectivos, assumi também no meu íntimo um solene compromisso:
-
Nunca fazer a ninguém, o que me fizeram a mim.
O serviço era de facto muito exigente. Mas o cabo comandante do posto
podia, se tivesse querido, dar um jeitinho para eu ir numa fugida ver o filho e
a mulher, mesmo estando de plantão. Qualquer camarada me substituiria
durante duas ou três horas até eu voltar. Era uma questão de mera humanidade e o serviço não parava. Felizmente, hoje a Lei concede direitos a qualquer pai e nenhum comandante prepotente pode já cometer tais atropelos e injustiças.
José
Coelho in Histórias do Cota