segunda-feira, 17 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

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Primeiros passos no comando


No ano de 1981 foram colocados no posto de Castelo de Vide três militares mais novos do que eu, pelo que passei a ser, a partir daí e muitas vezes, comandante de patrulha já também. E foi no final de uma manhã de inverno que, inesperadamente, tive que por à prova tudo o que até ali tinha aprendido.

Era meio-dia e estava de patrulha de prevenção (ou piquete) com um desses camaradas mais novos. Íamos já de regresso ao posto quando o plantão nos avistou no carreiro do jardim e nos chamou com notória urgência porque tinham acabado de telefonar do Pouso a informar que estavam duas senhoras idosas mortas dentro da casa de uma delas.

Cinco minutos depois estávamos lá.

Ninguém se atrevera ainda a entrar nem a mexer em nada. Viam-se as duas senhoras através da vidraça da janela sentadas num sofá e aparentemente inertes. Nem pensei duas vezes. Tinham-me ensinado que uma pessoa só pode ser considerada morta depois de observados indispensáveis e determinados procedimentos que indicam inequivocamente se há ou não sinais vitais num corpo humano. Os nossos instrutores iam ao exagero de comentar que só quando a cabeça estiver separada do corpo é que um guarda pode concluir que a vítima estará já morta.

Mas eu agi por impulso e em conformidade com o raciocínio de tudo o que os meus olhos viam e interpretavam naquele momento, porque, mal entrei, percebi de imediato a tragédia. No instante seguinte corri para as portas e janelas que abri de par em par para deixar entrar o ar puro e frio naquele exíguo espaço saturado de monóxido de carbono.

A televisão continuava ligada, mas de emissão apenas um formigueiro cinzento no ecrã. Foi no tempo em que a emissão da RTP encerrava à meia noite e não havia ainda canais privados como hoje. Uma das senhoras aparentava estar morta há algum tempo, mas ainda assim tentei encontrar-lhe qualquer sinal de vida. Sem resultado. A outra senhora ainda estava morna e não parecia ter a lividez da morte. Parecia como que adormecida e ainda com alguma cor nas faces. Corri para ela e auscultei com o ouvido o seu peito. O coração ainda fazia ouvir um fraco e irregular tum-tum. Senti como que um estertor e pensei que a senhora estava mesmo a ir-se embora. Em simultâneo pensei também que talvez eu fosse capaz de ministrar-lhe os primeiros socorros que me tinham ensinado na tropa e no alistamento da guarda.

Não perdia nada em tentar.

Pedi ao meu atrapalhado camarada que me ajudasse a carregar a senhora para a rua e estendemo-la no chão sobre uma manta do sofá ao ar frio daquele início de tarde. Desapertei tudo o que a apertava em termos de roupa pois pareceu-me que a senhora queria respirar e não conseguia. Nunca tinha feito tal coisa, apenas me tinham ensinado como fazer se um dia fosse preciso. E nem hesitei mais. Tinha mesmo que ser! Ali parados a vê-la morrer é que não me parecia o mais correto porque sou daqueles que acham que enquanto há vida, há esperança.

Ajoelhei ao lado da senhora, enchi o peito de ar e soprei para dentro dela, boca com boca. Depois parei e comprimi-lhe o tórax. Um, dois, três… E voltei a soprar-lhe mais ar na boca. Repeti a operação várias vezes e não sei se foi a minha aflição de não a deixar morrer ou se me pareceu que a senti reagir ligeiramente. Tudo parece muito fácil de fazer quando nos está a ser explicado pelos especialistas, mas na prática é bem mais complicado e difícil. A senhora parecia que tinha o queixo rígido e eu mal conseguia abrir-lhe a boca. Depois, com o volume dos seios, não sabia muito bem onde e como carregar com força suficiente para massajar o coração da senhora mas sem a magoar.

Hoje já existe um boneco de latex maleável para esses treinos em instrução, mas no meu tempo era só em teoria.

Tinha descomposto a senhora porque havia-lhe desapertado a blusa, o soutiã, a saia e as ligas de elástico das meias. Voltei a teimar e a repetir a minha inexperiente técnica de boca a boca, mais um, dois, três, sobre o tórax. Então, de repente… aleluia! A senhora deu um ai em surdina, tossiu como se estivesse engasgada e começou a respirar. Primeiro entrecortadamente com alguma dificuldade mas pouco a pouco a respiração aparentemente normalizou. E eu apenas fui capaz de pensar extremamente aliviado.

- Consegui, catano!

Nunca falei disto a ninguém na minha vida. Mas foi decerto aquele o meu primeiro momento de grande e sensibilizadora realização profissional. Senti-me tão bem comigo mesmo que só para o viver valera a pena ter passado pelo calvário que foi a minha integração na GNR. Entretanto chegaram os bombeiros com uma ambulância para levarem “os dois cadáveres" logo que o delegado de saúde e o ministério público dessem ordem para levantar os corpos, porque a voz que correra pela vila era de que estavam as duas inequivocamente já mortas.

Contudo, assim que viram a senhora já sentada a recuperar e a tentar recompor-se, meteram-na imediatamente na ambulância e transportaram-na para o hospital da vila para lhe serem ministrados os cuidados de saúde próprios e adequados para ela se recompor completamente.

Enquanto a senhora sobrevivente era transportada para o hospital eu e o meu camarada de patrulha continuámos por ali até à chegada das entidades competentes para se poderem efetuar os trâmites seguintes. E, enquanto eles não chegavam, iniciei de imediato um inquérito sumário sobre a causa do funesto acontecimento que até nem fora nada difícil de concluir.

Averiguei que as senhoras costumavam passar os serões invernais a ver a série Dallas na televisão naquela pequena salita e que, ao cair da noite na véspera, estivera um frio tão cortante que decidiram fazer um braseiro para se aquecerem e ficarem mais confortáveis. Porém, antes de se instalarem no sofá para o seu televisivo serão, fecharam cuidadosamente todas as portas e janelas.

Erro fatal.

Dada a exiguidade da sala o resto aconteceu sem se aperceberem que se tinham fechado numa armadilha mortal, silenciosa, inodora e que não emite qualquer sinal de aviso. O confortável calorzinho do braseiro foi aquecendo o ambiente mas simultaneamente foi também envenenando o oxigénio vital substituindo-o pelo perigoso dióxido de carbono que traiçoeiramente as intoxicou.

Inexplicavelmente, uma das senhoras deve ter sucumbido logo às primeiras horas porque estava já em rigidez cadavérica quando eu cheguei e os líquidos que expeliu na sua agonia já estavam completamente secos e agarrados à pele, enquanto a outra senhora conseguira resistir durante todas aquelas horas, sendo possível reanimá-la e trazê-la de volta. A anormal ausência das duas só fora detetada porquanto tinham combinado irem à missa com umas vizinhas do lado, as quais, como elas não apareciam, foram procurá-las a casa e deram o alarme.

Alguns dias depois fui visitar a sobrevivente ao hospital. Sentia uma enorme paz interior cada vez que memorizava os meus atabalhoados esforços para a reanimar e como naqueles aflitivos momentos a gente é capaz de fazer tudo quase automaticamente para tentar salvar uma vida.

A senhora permanecia ainda muito combalida e confusa não se sabendo até que ponto o seu cérebro teria sido afetado pela falta de oxigénio no ar que ela respirou durante horas. Um dos filhos que estava presente agradeceu-me encarecidamente pois os bombeiros tinham-lhe contado tudo. Disse-me que jamais esqueceria isso e queria recompensar-me pelo que eu tinha feito pela mãe.

Disse-lhe que apenas tinha cumprido o meu dever e que a minha recompensa já a tinha recebido no momento em que a senhora sua mãe se recompusera. Agora só o tempo e os adequados cuidados de saúde a que estava a ser sujeita fariam o resto. O senhor compreendeu. Ficámos amigos até hoje apesar de a senhora já ter falecido depois de ter vivido bem e com saúde mais uma boa dúzia de anos depois daquele dia. Onde quer que me vê o senhor faz questão de vir cumprimentar-me e convidar-me para um cafezinho que eu umas vezes aceito, outras vezes retribuo.

São passados quase quarenta anos desde que aquilo aconteceu. Ainda há por aí gente portadora de nobres sentimentos, felizmente.

Foi também nessa manhã e no meio daquela tragédia que percebi toda a complexidade que encerra a vida de um guarda. Nos anos seguintes pude testemunhar e até intervir novamente em situações semelhantes. E, cada vez que isso aconteceu, senti sempre que mais do que uma profissão, ser-se agente da autoridade é, sobretudo, uma missão muito nobre na vida de todos os homens e mulheres que, generosamente, se dispõem a dar a cara pelo bem-estar e tranquilidade públicos, ainda que a maioria dos cidadãos apenas se preocupe e analise a quantidade de coimas que os guardas fazem, esquecendo que essa é apenas mais uma forma de proteger quem, civilizadamente, cumpre as regras de convivência e civismo em sociedade.

Infelizmente muitas pessoas impressionam-se e questionam mais uma coima de trinta euros do que se impressionam ou questionam com aquele condutor irresponsável que atropelou e matou um pacato cidadão que atravessava tranquilamente a rua numa passadeira para peões devidamente sinalizada...


José Coelho in Histórias do Cota