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Primeiros passos no comando
No
ano de 1981 foram colocados no posto de Castelo de Vide três militares mais
novos do que eu, pelo que passei a ser, a partir daí e muitas vezes, comandante
de patrulha já também. E foi no final de uma manhã de inverno que,
inesperadamente, tive que por à prova tudo o que até ali tinha aprendido.
Era meio-dia e estava de patrulha de prevenção (ou piquete) com um
desses camaradas mais novos. Íamos já de regresso ao posto quando o plantão nos
avistou no carreiro do jardim e nos chamou com notória urgência porque tinham
acabado de telefonar do Pouso a informar que estavam duas senhoras idosas mortas
dentro da casa de uma delas.
Cinco
minutos depois estávamos lá.
Ninguém
se atrevera ainda a entrar nem a mexer em nada. Viam-se as duas senhoras
através da vidraça da janela sentadas num sofá e aparentemente inertes. Nem
pensei duas vezes. Tinham-me ensinado que uma pessoa só pode ser considerada
morta depois de observados indispensáveis e determinados procedimentos que indicam inequivocamente
se há ou não sinais vitais num corpo humano. Os nossos instrutores iam ao
exagero de comentar que só quando a cabeça estiver separada do corpo é que um
guarda pode concluir que a vítima estará já morta.
Mas
eu agi por impulso e em conformidade com o raciocínio de tudo o que os meus
olhos viam e interpretavam naquele momento, porque, mal entrei, percebi de
imediato a tragédia. No instante seguinte corri para as portas e janelas que
abri de par em par para deixar entrar o ar puro e frio naquele exíguo espaço
saturado de monóxido de carbono.
A
televisão continuava ligada, mas de emissão apenas um formigueiro cinzento no
ecrã. Foi no tempo em que a emissão da RTP encerrava à meia noite e não havia
ainda canais privados como hoje. Uma das senhoras aparentava estar morta há
algum tempo, mas ainda assim tentei encontrar-lhe qualquer sinal de vida. Sem
resultado. A outra senhora ainda estava morna e não parecia ter a lividez da
morte. Parecia como que adormecida e ainda com alguma cor nas faces. Corri para
ela e auscultei com o ouvido o seu peito. O coração ainda fazia ouvir um fraco
e irregular tum-tum. Senti como que um estertor e pensei que a senhora estava
mesmo a ir-se embora. Em simultâneo pensei também que talvez eu fosse capaz de ministrar-lhe
os primeiros socorros que me tinham ensinado na tropa e no alistamento da
guarda.
Não
perdia nada em tentar.
Pedi
ao meu atrapalhado camarada que me ajudasse a carregar a senhora para a rua e
estendemo-la no chão sobre uma manta do sofá ao ar frio daquele início de tarde.
Desapertei tudo o que a apertava em termos de roupa pois pareceu-me que a
senhora queria respirar e não conseguia. Nunca tinha feito tal coisa, apenas me
tinham ensinado como fazer se um dia fosse preciso. E nem hesitei mais. Tinha
mesmo que ser! Ali parados a vê-la morrer é que não me parecia o mais correto
porque sou daqueles que acham que enquanto há vida, há esperança.
Ajoelhei
ao lado da senhora, enchi o peito de ar e soprei para dentro dela, boca com
boca. Depois parei e comprimi-lhe o tórax. Um, dois, três… E voltei a
soprar-lhe mais ar na boca. Repeti a operação várias vezes e não sei se foi a
minha aflição de não a deixar morrer ou se me pareceu que a senti reagir
ligeiramente. Tudo parece muito fácil de
fazer quando nos está a ser explicado pelos especialistas, mas na prática é bem
mais complicado e difícil. A senhora parecia que tinha o queixo rígido e eu mal
conseguia abrir-lhe a boca. Depois, com o volume dos seios, não sabia muito bem
onde e como carregar com força suficiente para massajar o coração da senhora mas
sem a magoar.
Hoje
já existe um boneco de latex maleável para esses treinos em instrução, mas no
meu tempo era só em teoria.
Tinha
descomposto a senhora porque havia-lhe desapertado a blusa, o soutiã, a saia e
as ligas de elástico das meias. Voltei a teimar e a repetir a minha
inexperiente técnica de boca a boca, mais um, dois, três, sobre o tórax. Então,
de repente… aleluia! A senhora deu um ai em surdina, tossiu como se estivesse engasgada
e começou a respirar. Primeiro entrecortadamente com alguma dificuldade mas pouco a pouco a respiração aparentemente normalizou. E eu apenas fui capaz de
pensar extremamente aliviado.
-
Consegui, catano!
Nunca
falei disto a ninguém na minha vida. Mas foi decerto aquele o meu primeiro
momento de grande e sensibilizadora realização profissional. Senti-me tão bem
comigo mesmo que só para o viver valera a pena ter passado pelo calvário que
foi a minha integração na GNR. Entretanto chegaram os bombeiros com uma
ambulância para levarem “os dois cadáveres" logo que o delegado de saúde e
o ministério público dessem ordem para levantar os corpos, porque a voz que
correra pela vila era de que estavam as duas inequivocamente já mortas.
Contudo,
assim que viram a senhora já sentada a recuperar e a tentar recompor-se,
meteram-na imediatamente na ambulância e transportaram-na para o hospital da
vila para lhe serem ministrados os cuidados de saúde próprios e adequados para
ela se recompor completamente.
Enquanto
a senhora sobrevivente era transportada para o hospital eu e o meu camarada de
patrulha continuámos por ali até à chegada das entidades competentes para se
poderem efetuar os trâmites seguintes. E, enquanto eles não chegavam, iniciei
de imediato um inquérito sumário sobre a causa do funesto acontecimento que até
nem fora nada difícil de concluir.
Averiguei
que as senhoras costumavam passar os serões invernais a ver a série Dallas na
televisão naquela pequena salita e que, ao cair da noite na véspera, estivera
um frio tão cortante que decidiram fazer um braseiro para se aquecerem e
ficarem mais confortáveis. Porém, antes de se instalarem no sofá para o seu televisivo
serão, fecharam cuidadosamente todas as portas e janelas.
Erro
fatal.
Dada
a exiguidade da sala o resto aconteceu sem se aperceberem que se tinham fechado
numa armadilha mortal, silenciosa, inodora e que não emite qualquer sinal de
aviso. O confortável calorzinho do braseiro foi aquecendo o ambiente mas simultaneamente
foi também envenenando o oxigénio vital substituindo-o pelo perigoso dióxido de
carbono que traiçoeiramente as intoxicou.
Inexplicavelmente,
uma das senhoras deve ter sucumbido logo às primeiras horas porque estava já em
rigidez cadavérica quando eu cheguei e os líquidos que expeliu na sua agonia já
estavam completamente secos e agarrados à pele, enquanto a outra senhora conseguira
resistir durante todas aquelas horas, sendo possível reanimá-la e trazê-la de
volta. A anormal ausência das duas só fora detetada porquanto tinham combinado irem
à missa com umas vizinhas do lado, as quais, como elas não apareciam, foram procurá-las
a casa e deram o alarme.
Alguns
dias depois fui visitar a sobrevivente ao hospital. Sentia uma enorme paz interior
cada vez que memorizava os meus atabalhoados esforços para a reanimar e como
naqueles aflitivos momentos a gente é capaz de fazer tudo quase automaticamente
para tentar salvar uma vida.
A
senhora permanecia ainda muito combalida e confusa não se sabendo até que ponto
o seu cérebro teria sido afetado pela falta de oxigénio no ar que ela respirou
durante horas. Um dos filhos que estava presente agradeceu-me encarecidamente
pois os bombeiros tinham-lhe contado tudo. Disse-me que jamais esqueceria isso
e queria recompensar-me pelo que eu tinha feito pela mãe.
Disse-lhe
que apenas tinha cumprido o meu dever e que a minha recompensa já a tinha
recebido no momento em que a senhora sua mãe se recompusera. Agora só o tempo e
os adequados cuidados de saúde a que estava a ser sujeita fariam o resto. O
senhor compreendeu. Ficámos amigos até hoje apesar de a senhora já ter falecido
depois de ter vivido bem e com saúde mais uma boa dúzia de anos depois daquele
dia. Onde quer que me vê o senhor faz questão de vir cumprimentar-me e
convidar-me para um cafezinho que eu umas vezes aceito, outras vezes retribuo.
São
passados quase quarenta anos desde que aquilo aconteceu. Ainda há por aí gente
portadora de nobres sentimentos, felizmente.
Foi
também nessa manhã e no meio daquela tragédia que percebi toda a complexidade
que encerra a vida de um guarda. Nos anos seguintes pude testemunhar e até
intervir novamente em situações semelhantes. E, cada vez que isso aconteceu,
senti sempre que mais do que uma profissão, ser-se agente da autoridade é,
sobretudo, uma missão muito nobre na vida de todos os homens e mulheres que,
generosamente, se dispõem a dar a cara pelo bem-estar e tranquilidade públicos,
ainda que a maioria dos cidadãos apenas se preocupe e analise a quantidade de
coimas que os guardas fazem, esquecendo que essa é apenas mais uma forma de proteger
quem, civilizadamente, cumpre as regras de convivência e civismo em sociedade.
Infelizmente muitas pessoas impressionam-se e questionam mais uma coima de trinta euros do
que se impressionam ou questionam com aquele condutor irresponsável que
atropelou e matou um pacato cidadão que atravessava tranquilamente a rua numa
passadeira para peões devidamente sinalizada...
José
Coelho in Histórias do Cota