quinta-feira, 27 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

Não foi fácil a minha vida. Mas venci. 



Ajuste de contas



Exactamente como havia decidido não prescindi de maneira nenhuma de “acertar” contas com o camarada que inventou a hipótese de eu ser desonesto. Porém, depois de tão ponderadamente aconselhado pelo outro camarada, pessoa idónea e muito, muito acertada, deixei fluir normalmente as coisas, aguardando pacientemente o momento certo.

Sempre acreditei que, como diz o ditado, a verdade é como o azeite. Vem sempre ao cimo. Convicto disso, acalmei um pouco o meu espírito e conversei de novo com a minha mulher a quem narrei os conselhos que tinha tido a sorte de receber do camarada Marques e que a deixou bastante mais animada, confiando na minha capacidade para ultrapassar tudo aquilo da melhor maneira para todos nós.

Era óbvio o seu imenso alívio pelo facto de eu ter decidido ficar e continuar a lutar pelo nosso futuro sem ser preciso andar de novo com a trouxa às costas. E os dias prosseguiram o seu percurso normal. Pelo facto de permanecermos todo o dia no posto nas horas de expediente entre as horas das patrulhas, um dos entreténs preferidos da malta era um joguinho de sueca e não só. Naturalmente eu alinhava com todos os outros nesse entretém, cuja modalidade mais frequente era o “bota fora” em que o perdedor saía e dava o lugar a outro, permitindo assim que fosse “rodando” a vez por todos.

Porém, desde o dia em que aquele camarada ousou duvidar da minha idoneidade, nunca mais quis confianças com ele. Para tal, deixei de participar nas “esforçadas” tardes "desportivas" para me dedicar exclusivamente a estudar tudo quanto me parecia que me iria fazer falta para o próximo concurso de admissão a cabo cujo convite deveria estar prestes a sair.

Por isso mesmo mas não só afastei-me quase sem dar por isso de toda a normal convivência com os outros camaradas nas semanas seguintes. E parece que a minha atitude não caiu lá muito bem principalmente naqueles que não sabiam que eu sabia das tais “bocas” foleiras havidas por ali anteriormente, apesar de nunca mais me ter apercebido de qualquer conversa a esse respeito. Pelos vistos, aquela semente venenosa caíra em terra árida e morrera sem dar fruto. Do mal o menos!

Mas, como eu me afastei, foram picando daqui, picando dali, para verem se eu me descosia com alguma queixa ou lhes apontava o motivo da minha atitude. Demais sabiam eles que ali havia gato. Só os meus dois vizinhos nunca se pronunciavam. Aquele que me tinha vindo contar tudo e o outro que me aconselhou depois a não desistir da minha profissão por causa de mexericos. A esses dois só ouvia às vezes dizerem aos outros:

- O homem é que sabe. Se prefere ler em vez de jogar às cartas, isso é lá com ele…

Entre umas coisas e outras fui-me esquivando a explicações até um belo fim de tarde em que, estando como de costume todos eles reunidos na caserna a jogarem a dita cuja sueca numa mesa estrategicamente colocada pertinho da janela sobre a entrada do posto para vigiarem a rua, não fosse o diabo tecê-las e aparecer um oficial rondante sem ninguém se aperceber e apanhar a rapaziada com a boca na botija em plena “endurance”...

Eu estava do outro lado, na mesa do plantão disposta no corredor mesmo ao cimo das escadas – nesse tempo o posto era todo no 1º andar, hoje é também no rés-do-chão – e, como já antes referi, à minha volta eram só pastas, livros e cadernos. Completamente absorto na minha luta com as raízes quadradas e as regras de três simples, eis senão quando o nosso cabo comandante se acercou, e, como quem não quer a coisa, perguntou:

- O senhor Coelho parece que anda mal-disposto co'a gente!

Olhei-o com o (pouco) respeito que me merecia a sua atitude e sem me intimidar com a sua expressão manifestamente provocatória, respondi-lhe, apesar de tudo, educadamente:

- Não, nosso cabo. Estou até muito bem-disposto. Só não fiquei nada satisfeito aqui há umas semanas atrás quando um nosso camarada andou a dizer mal de mim para si, coisas que o senhor deve ter achado serem verdade, pois não só não foi capaz de me chamar á frente dele para esclarecer esse assunto, como ainda lhe achou imensa graça.

(Eu tinha-o visto a rir-se nesse dia, quando cheguei da patrulha ao mercado, lembram-se?)

- Ai sim? E quem foi esse seu camarada? A mim ninguém me veio dizer mal de si, ora essa! Respondeu-me num tom irónico e a gozar ainda mais com a minha cara.

Entretanto do outro lado o jogo das cartas tinha parado subitamente. Toda a gente estava já muito atenta ao meu bate-boca com o cabo.

Parecia até que todos esperavam o desencadear daquela tempestade e ninguém a queria perder. Entre eles estava o meu ilustríssimo conterrâneo, o tal que tinha achado que eu teria feito um acordo sujo com a minha prima Fernanda para depois ficar com metade daquela imensa fortuna encontrada no mercado franco sobre a bancada do honesto feirante.

Estava pois chegado o momento exacto de esclarecer todas as dúvidas acerca desse tão lamentável como indecoroso incidente! Estranhamente, ao contrário da agitação e nervosismo que aquele imbróglio me tinha provocado no dia que aconteceu, eu andava agora tranquilo e sem qualquer indício de perturbação.

Por isso, mal o cabo me desmentiu descaradamente para proteger, obviamente, o que tinha metido a pata na poça, levantei-me da cadeira para os poder olhar na cara e de frente, quer a um quer ao outro, para lhes responder taco a taco.

Havia passado horas a conjecturar o que lhes iria dizer olhos nos olhos quando chegasse este momento mas não contara com a estranha atitude do cabo, que, não só o estava a encobrir, como ainda e o que era pior, me estava a chamar mentiroso a mim. E isso, tivesse ele santa paciência por mais cabo que fosse, por mais que eu lhe devesse respeito e obediência, jamais lhe permitiria que me fizesse passar por parvo ou me chamasse mentiroso. Calhou mesmo bem a conversa ter tomado aquele rumo:

- Pér'aí que já te cóço!  Cogitei para comigo sem me deixar perturbar.

E sem pensar duas vezes, mal ele me respondeu "que ninguém lhe tinha ido dizer mal de mim” retorqui-lhe alto e em bom som:

- Faz muito bem defender o meu camarada nosso cabo! Mas já que é tão amigo dele fique sabendo que, da mesma maneira que ele lhe foi dizer mal de mim, também já me veio dizer a mim e muitas vezes, bastante mal de si…

- Toma e embrulha!  Pensei consolado.

Que bem me soube dizer aquilo! O cabo primeiro abriu a boca, depois fechou-a, parecendo ter ficado sem fôlego. Mas, ainda não convencido, voltou à carga:

- Ora essa! E que mal é que o senhor (…) tem para dizer de mim?

E eu, mais uma vez sem hesitar, respondi-lhe no mesmo tom:

- Muitas coisas nosso cabo...

- Muitas coisas mesmo e todas muito feias! 

- Que o senhor é um mau exemplo para todos nós, que o senhor vem para aqui a mandar vir connosco porque vem picado pela sua mulher lá de casa porque ela é que manda, que o senhor vai para a Póvoa multar os comunistas de propósito porque não os grama mas na Páscoa vai lá de propósito também buscar os borregos que eles lhe oferecem e aí já não faz mal que sejam comunistas, e… Olhe! Muitas, mas muitas outras coisas mais que eu agora não digo só mesmo porque não quero!

Nesse momento e sentindo-se picado, o meu conterrâneo linguarudo não se conteve e disse-me:

- Isso é jogo sujo senhor Coelho. Você é você e os outros são os outros. Não misture porque uma coisa não tem nada a ver com a outra!

- Na muge! Pensei, regalado.

Era exactamente aquilo que eu queria. Puxar conversa àquele com quem eu tinha as contas por saldar. E, sem ligar mais importância ao estupefacto cabo, dirigi-me desta vez cara a cara ao outro para lhe dizer, de uma assentada, tudo quanto me ia na alma, não me coibindo sequer de lhe esfregar no nariz o quanto lamentava o seu fraco juízo a meu respeito quando eu tinha por ele a maior das considerações por julgar que ele era um exemplo de virtudes.

E mais lhe disse ainda que, se não lhe tinha enfiado com a coronha da espingarda pela cabeça abaixo logo naquele dia, bem podia agradecê-lo a outro camarada que me tinha feito ver as coisas com mais calma e aconselhado com serenidade.

Porém, avisei-o:

- Não ouse nunca mais repetir insinuações desse ou de outro teor a meu respeito, porque aí teremos mesmo o caldo entornado. Era, evidentemente, uma ameaça clara e objectiva, feita com todas as sílabas e com deliberada intenção. Era fazer-lhe ver que não temia as consequências fossem elas quais fossem. Porque, de facto, com todo o apoio que tinha da família, já não as temia mesmo.

Evidentemente aquele homenzarrão muito maior do que eu não se mostrou intimidado mas também não manifestou qualquer interesse em medir forças comigo. Em vez disso, provavelmente para me acagaçar de outra forma, não sei bem se com verdadeira intenção de o fazer ou se foi apenas bluff, dirigiu-se em seguida ao cabo, que, apanhado de surpresa pela minha desbocada revelação se mantinha desde então muito calado e com cara de poucos amigos:

- Temos aqui um problema muito grave nosso cabo. Havendo já ameaças de agressão com arma temos que chamar o nosso capitão para lhe ser dado conhecimento disto…

De novo sem qualquer sombra de receio e sendo eu muitíssimo mais torto do que ele – ainda hoje sou – não só não me assustei como aceitei a sugestão e concordei imediatamente com ela, muito ao contrário do que se calhar ele pensava:

- Acho muito bem, nosso cabo. Telefone-lhe imediatamente para o nosso capitão vir cá hoje ainda pois eu também tenho umas coisas para lhe dar a conhecer porque só já mesmo ele é que pode ter mão na pouca-vergonha que grassa por este posto!

Nessa altura, acho eu que pelo o rumo que as coisas estavam a tomar, os outros camaradas que assistiam mudos a todo este confronto verbal devem ter ficado alarmados e imediatamente intervieram no sentido de apelar à calma e ao bom senso, achando em uníssono que a roupa suja se devia lavar mesmo só ali em casa e entre todos nós, até porque o assunto não era assim tão grave que fosse preciso sair da porta do posto para fora!

E aquele camarada que me tinha aconselhado na Senhora da Penha, por ser um dos mais antigos no posto, tomou a palavra. Censurou cara a cara também e muito duramente a atitude daquele que me tinha difamado salientando que por um camarada ser mais novo e inexperiente não tinha que ser considerado menos sério e menos competente que os mais velhos e que a obrigação dos mais velhos era sim ensinar e encaminhar os mais novos em vez de se andar a espiolhar o que eles faziam mal para depois os criticarem. E mais afirmou que naquele posto havia o mau costume de julgar toda a gente pelas aparências e de se falar demais na vida dos outros como as belhardeiras. Por fim rematou o seu ácido e contundente discurso aconselhando aquele que me ofendeu a ter a humildade de reconhecer que tinha procedido mal e a pedir-me desculpa.

De tal modo foi convincente no seu discurso que o outro a quem ele “ripou” daquela maneira se dirigiu em acto contínuo a mim para me pedir desculpa diante de todos os presentes, alegando que, na verdade, nem sequer pensava mal de mim pois me conhecia desde gaiato e também à minha família, e que tudo aquilo fora uma parvoíce sua como qualquer outra daquelas que todos nós cometemos de vez em quando, mas sem aquela maldade que eu lhe tinha atribuído. E em acto contínuo estendeu-me a mão direita aberta em sinal de reconciliação e de paz. E eu, porque também já tinha digerido toda a minha raiva e já tinha dado o meu recado conforme pretendia, não hesitei e aceitei, sem pronunciar qualquer palavra mais, aquele aperto de mão que me estava a ser solicitado, numa muda confirmação: 

- Ok, assim seja.  Assunto encerrado…



José Coelho in Histórias do Cota

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