1980 - Foto oficial de uma família feliz
Na terra do meu pai
Fiz
o espólio do armamento e material de guerra que tinha distribuído no posto de
Portalegre no dia seguinte e nessa mesma tarde marchei para o meu novo destino,
não sem primeiro passar pela Beirã onde morava ainda, para dar a feliz notícia
à família.
O
meu pai não cabia em si de contente porque era a sua terra e a de toda a sua
família da qual naturalmente falava sempre muito. Começou logo a referenciar-me
pessoas, familiares chegados e afastados, alguns amigos, ruas e lugares, enfim,
essas coisas que todos nós pais dizemos aos nossos filhos para os ajudar e
incentivar.
Naturalmente,
a minha MariManuela ficou também muito feliz ainda que com imensa pena de ter
que deixar a fábrica onde trabalhava havia já treze anos. Curiosamente ganhava
ela nesse tempo já mais do que eu. Os ordenados na GNR em finais de 1979
rondavam líquidos os doze mil escudos mensais e o ordenado dela era já de quase
catorze mil. As “jornas” de um modo geral, não iam além dos trezentos mil réis
diários. Contudo, não tenho dúvidas em afirmar que vivíamos melhor naquele
tempo com aqueles ordenados baixos em escudos do que se vive hoje com a
porcaria dos euros.
Devo
esclarecer-vos ainda que para poupar preocupações aos meus entes queridos nunca
mencionei em casa as velhacarias todas que me faziam no quartel enquanto durou a
instrução. Vivi esses maus bocados sozinho porque na família ninguém podia
valer-me e tanto a esposa como a mãe não cabiam em si de contentes por eu lá
andar. Se elas soubessem o “caldinho” em que me tinham metido… Pois é! Mas só
souberam muitos meses depois que na GNR havia gente assim, os quais só não lhes
estragaram o seu contentamento porque não tiveram mesmo por onde me pegar.
Entretanto
ficou pronta a casa que eu tinha apalavrado para arrendar no Largo do
Cipresteiro nas traseiras da velha Rua de Santo Amaro, dando vistas para o Bom
Jesus onde o meu pai nasceu, para a serra da Estrela lá muito ao longe, assim
como dali podia até enxergar também e à vista desarmada, as minhas beiranenses
bandas.
Acertei,
em pouco tempo, com o ti Manuel Neves, um excelentíssimo senhorio e mais tarde
um bom amigo, a renda mensal de mil e quinhentos escudos. Começámos de imediato
a preparar tudo para irmos habitá-la no último mês de 1979 uma vez que a
Manuela teve que tratar com a antecedência legal da rescisão do seu contrato de
trabalho na Celtex para que tudo se fizesse como mandava a lei.
Lembro-me
de o seu encarregado de sector, o senhor Gomes, me ter vindo procurar pouco
depois a Castelo de Vide, para me aconselhar a refletir muito bem antes de a
tirar de lá, porque ela não ganhava assim já tão mal, porque era uma das mais antigas
e experientes operárias daquela secção, e também porque lhes fazia lá muita
falta.
Porém
a decisão estava definitivamente tomada. Havia já três anos que estávamos casados
e cada um para seu lado. Tínhamos a casa composta, o filho a crescer nos seus
dois anitos e não devíamos nada a ninguém… Ná… Nem pensar! Chegava de vida de
cigano. Era tempo de desfrutarmos os três da companhia uns dos outros, de
sermos uma família a sério e a tempo inteiro. Que se lixasse o ordenado dela. O
dinheiro nunca foi nossa prioridade. O meu vencimento de guarda maçarico não
era por aí além mas era suficiente. Chegava para os três porque nós sabíamos
como poupar e fazer uma vida caseira simples, sem grandes aventuras orçamentais.
Por isso nada nos demoveu dos nossos planos.
Em
simultâneo e enquanto isso, apresentei-me, no dia e hora indicados na guia de
marcha, no Posto de Castelo de Vide. Devo confessar que não conhecia
minimamente nem o posto nem nenhum dos seus militares. Aliás, como já
anteriormente referi, os meus conhecimentos sobre a Guarda Republicana, os seus
elementos e a sua missão, eram completamente nulos antes de nela ingressar.
Zero.
Em absoluto.
Nem imaginava que eram também militares como a tropa, aliás, não imaginava mesmo nada. Guardas conhecia muitos sim, alguns deles até eram nossos vizinhos desde que nasci, mas chamavam-se guardas fiscais e não eram assim carrancudos nem tão mal encarados como os guardas republicanos que iam policiar as nossas festas, os bailes e as estradas. Chiça! A gente até se desviava deles com receio, enquanto que os outros, os nossos vizinhos, eram pessoas normais e a gente era até amigos dos filhos deles. E as mulheres deles eram também amigas das nossas mães e toda a gente se dava bem na aldeia.
Já
os tais outros cabeças quadradas, vai lá vai!
Parecia
que toda a gente lhes devia e ninguém lhes pagava! Não sabia muito bem se
aquilo era defeito ou se era feitio, mas lá que nunca se lhes via uma simpatia
ou um bom modo para ninguém, lá isso não! Por isso pouca gente gostava deles.
Como
podia eu então imaginar-me assim um dia, tão carrancudo e mal-encarado, de
polainas negras nas pernas, enfiado naquele capote escuro e feio, com aquele
“tanganho” de espingarda antiga às costas e a meter medo às pessoas?
Só
mesmo a minha Mãe e a minha Maria, para me meterem numa alhada daquelas!
-
Tens que pensar no bem do teu filho, argumentavam.
-
É pelo futuro do teu filho, repetiam.
E
o sacana do gaiato era tão lindo e tão espertinho! A gente perdia-se com aquele
sorriso descarado e com a curiosidade sempre espelhada naqueles olhinhos vivos
e inteligentes.
O
reguila do meu Manel!
-
Como é que te chamas, filho?
-
Manãe! Chamo-me Manãe…
Foi
assim que me convenceram a tratar de toda a papelada que era exigida para concorrer.
Por aquele pequenino valia a pena sacrificar-me tanto quanto fosse preciso e
sem dúvida que o trabalho na mina era perigoso. Estavam sempre a acontecer
acidentes. Ainda há pouco tempo tinha desaparecido um guincheiro. Toda a gente
a ver dele, onde está, onde não está, até que da boca da “torva”, o buraco que
ia de um ao outro nível, começou a aparecer sangue misturado com o lodo e o
cascalho de minério no enchimento dos vagões. O pobre tinha caído só Deus
sabia como ou porquê para dentro da torva e lá morreu, esmagado por toneladas
daquele entulho que os explosivos arrancavam das entranhas da terra…
E
ser guarda, mesmo da antipática GNR, sempre era um emprego do estado mais
seguro e mais asseado. Dizia-se. Se as pessoas não gostassem de mim por isso,
paciência. A gente às vezes não pode escolher só o que gosta. Tem que se
contentar com o que é possível. E ali estava eu. Não tinha havido outra
escolha...
José
Coelho in Histórias do Cota