domingo, 26 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

A minha querida família mineira comigo, no dia que casei


Candidato a profissão nunca antes imaginada


Chegou Agosto de 1979. Mais uma vez, a minha mulher e filho foram lá passar o mês comigo em casa do chefe Zé Mouro a cuja família nos afeiçoámos como se da nossa se tratasse. E como também já vinha sendo hábito, em Setembro vim com eles de férias. Foi nesse ano que, não sei como nem por quem, a minha mãe e a minha cara metade souberam que estava aberto concurso para admissão de praças à GNR.

Cada uma delas, à vez, iam-me buzinando aos ouvidos que aquela sim era uma vida decente, que ser mineiro era ser como as toupeiras sempre debaixo do chão sem ver a luz do dia, e isto e aquilo. Mais para deixar de as ouvir do que por convicção, lá fui tratar da papelada necessária ao posto de Santo António das Areias onde fui primorosamente atendido pelo guarda e senhor Pouca Roupa que era na altura o comandante interino do posto porquanto o cabo estava de baixa.

Preenchido e entregue o requerimento, nunca mais me preocupei com aquilo. Aqui para nós, sinceramente, nunca tencionei enveredar por tal carreira, pois não me via metido dentro de uma farda de novo e muito menos de polainas nas pernas e espingarda mauser às costas a patrulhar caminhos. Regressei por isso em Outubro às Minas onde pus o meu chefe ao corrente do que tinha feito e confidenciando-lhe que tinha sido mais para calar a mulher e a mãe do que com intenção de mudar de profissão. Para meu grande espanto, ele ficou um bocado calado e a pensar.  Passado esse tempo de reflexão respondeu-me assim:

- Olha Zé! Sinceramente eu tenho muita pena que te vás embora porque nos afeiçoámos a ti, não só eu e a minha família, mas também muitos dos teus outros amigos como o teu primo João e a família dele, o Antero e a família dele, o Zé Maria, o Pinto e o pessoal das Preparações que bastante te estimam todos. Mas acho que deves empenhar-te nisso a sério e que deves tentar entrar. A mina não te leva a lado nenhum. Vais é apanhar silicose como todos nós. Andas para aqui longe da família e desterrado dela, uma vez que a tua mulher não quer para cá vir morar. Por isso pensa bem. É um futuro melhor, mais limpo e muito menos arriscado…

Surpreso por completo com o sensato conselho daquele amigo com A grande, nada mais adiantei.

Estávamos, como já referi, em Outubro de 1979. Eis senão quando um lamentável incidente de cariz racista resultou em sérios confrontos entre a comunidade local e os caboverdeanos residentes nas camaratas. Parecia a noite de cristal de Hitler. Os africanos, não sei por que carga d'água, atacaram as camaratas, partindo janela a janela. Eu estava a dormir porque ia entrar às 00,00 horas no turno da noite. Por isso, mal me apercebi do alarido exterior, só tive tempo de saltar da cama meio vestido quando um objecto contundente atingiu a vidraça por cima da minha cabeceira estilhaçando-a completamente e inundando a cama e a camarata de vidros.

Estava também a dormir na sua cama do lado oposto da camarata o Joaquim Manuel – o “nossa senhora” de alcunha – que hoje é utente da Anta na Beirã. Saímos para o corredor atarantados e sem perceber o que se estava a passar quando o Daniel, um caboverdeano nosso camarada na mina que era manobrador de guincho na nossa equipa, amigo e muitíssimo boa pessoa, apercebendo-se que estávamos ali os dois sozinhos, nos gritou: - Fujam daqui! Venham comigo… E furtivamente por entre os arbustos da encosta sobranceira aos dormitórios conduziu-nos ao bairro mineiro onde nos deixou pouco depois em segurança.

Nunca mais vi esse grande e generoso amigo, porém também nunca mais o esqueci como é óbvio. E só já no bairro entre os nossos conterrâneos nos apercebemos da dimensão do problema. Estava tudo em pé de guerra. Os mineiros brancos já tinham morto à pancada dois caboverdeanos. Veio a GNR e foi chamada até a tropa de Castelo Branco para apaziguar tudo aquilo. Ninguém entrou na mina porque os cabecilhas daquele autentico motim exigiam que nenhum branco entrasse de turno enquanto “os pretos” não fossem todos expulsos da empresa.

Nunca tinha imaginado nada assim. Racismo, xenofobia, preconceito feroz, ao vivo e a cores. Eu trabalhava com os caboverdeanos há anos e não tinha a menor razão de queixa, muito pelo contrário. Eram boas pessoas, uns mais que outros, tal como nós. Sentia por ali entre a comunidade local e os caboverdeanos alguns atritos às vezes, algumas bebedeiras mais chatas, algum don juan preto a querer engatar alguma cachopa branca, mas sempre sem consequências de maior.

Porém aquele incidente foi de tal ordem que a RTP noticiou, as rádios noticiaram, os jornais também, o embaixador de Cabo Verde foi às Minas pessoalmente inteirar-se dos factos e eu comecei a receber telegramas aflitivos de toda a família a perguntarem se estava tudo bem comigo e a pedirem por tudo para eu voltar para casa de vez.  De facto o ambiente entre os mineiros apaziguou mas nas semanas que se seguiram ficou no ar um clima esquisito. A violência foi longe demais e o assassinato a sangue frio dos dois mineiros caboverdeanos, excesso de fúria a todos os níveis imperdoável, obviamente teve consequências criminais para alguns dos implicados naquela barbárie sem tamanho.

E a minha família que já não via com muito bons olhos o meu apego às Minas aproveitou a deixa para, em uníssono, me tentarem convencer a deixar tudo aquilo de vez. As reticências que eu tinha em voltar para a terra eram principalmente devidas ao facto de não vislumbrar por aqui nenhum trabalho decente porque a precaridade de emprego continuava tão acentuada como nos idos de 75 quando tive que me ir embora, ou talvez até um pouco mais aguda, e não me via a ficar em casa enquanto a mulher tinha que levantar-se às seis e meia da manhã para apanhar o autocarro aos dez para as sete a caminho da Celtex onde continuava a trabalhar...


José Coelho in Histórias do Cota

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Vista parcial da Barroca Grande 


Cinco tranquilos e felizes anos


Nas encostas serranas da Estrela, a Barroca Grande é uma aldeia muito maior que algumas vilas que conheço.

É um aglomerado enorme de edifícios de todas as tipologias. As casas são bonitas, modernas e funcionais, com todas as comodidades possíveis e, por isso mesmo, era muito difícil, no meu tempo, conseguir uma casa vaga para ali assentar de vez com a família.

Ainda assim estive prestes a receber uma delas mas a minha Maria Manuela logo me informou perentoriamente que jamais iria viver para aquele lugar e muito menos queria que eu continuasse a trabalhar debaixo do chão como as toupeiras.

Queria, isso sim, que eu voltasse para casa, arranjasse uma vida menos perigosa e que nos permitisse estarmos permanentemente juntos como qualquer família normal.

Um ano depois de eu ter abraçado a profissão de mineiro decidíramos casar. Ela trabalhava na Celtex há dez anos e o meu ordenado na Beralt Tin & Wolfram ultrapassava e muito a média dos ordenados desse tempo por aqui, na medida em que, trabalhando por turnos rotativos, dois desses turnos apanhavam a noite, o  que beneficiava significativamente os vencimentos, uma vez que as horas de trabalho no interior da mina entre as 20 e as 08 horas eram pagas a dobrar.

Recordo-me que a Manuela ganhava 18.000$00 mensais (dezoito contos) que até nem era nada mau, e eu já conseguia trazer para casa na ordem dos 60.000$00 (sessenta contos limpos) que eram mais do triplo da média dos ordenados que por aqui se praticavam.

Tínhamos um inconveniente enorme. Só vinha a casa de 15 em 15 dias. A viagem da Beirã para as Minas em transportes públicos era uma aventura cansativa como já descrevi. Assim optámos por fazer contrato com o senhor Augusto Chaves do táxi de Castelo de Vide, o qual de 15 em 15 dias nos ia buscar, a mim e a outros dois camaradas mineiros marvanenses, por uma quantia pré-estabelecida que pagávamos entre os três. Uma viagem muito mais rápida e confortável.

A Celtex onde a Manuela trabalhava encerrava todos os anos no mês de Agosto para férias de todo o seu pessoal. Então nesse mês a Manuela rumava às Minas para passar 30 dias comigo, gratuitamente hospedados em casa dos nossos queridos amigos marvanenses que quase disputavam entre eles em casa de quem iria ser a nossa permanência cada ano.

Gente boa.

No mês seguinte, Setembro, era eu quem tirava os 30 dias de férias a que tinha direito. A Manuela regressava ao trabalho e eu ficava em casa. E assim foi a nossa vida, durante cinco anos. Juntos apenas dois meses seguidos por ano além de um fim-de-semana de 15 em 15 dias.

Entretanto nasceu o nosso filho Manel. Começou a ser muito complicado para mim viver longe dele e da mãe, apesar de adorar o meu trabalho, os meus camaradas e todo aquele ambiente de profunda amizade, solidariedade, camaradagem, simplicidade e disponibilidade mútuos, quer dos mineiros marvanenses e suas famílias, quer também de todas aquelas excelentes pessoas da Beira Baixa que são a melhor gente do mundo.

O Povo da Beira, digo-vos eu, é um Povo por excelência generoso, afável, amigo.

Em nenhum outro lugar do mundo me senti tão bem durante toda a minha vida. Talvez por isso mesmo tivesse sido tão fácil para mim adaptar-me, apesar da rudeza e permanente perigosidade do trabalho.

Um mineiro quando entra para dentro da mina é como um pescador quando se faz ao mar. Nunca sabe se regressa a casa pelo seu pé.

A compensação salarial era muito atrativa e eu habituei-me a ter sempre dinheiro para tudo quanto nos fazia falta. Paguei sem qualquer dificuldade a mobília da nossa casa, comprámos eletrodomésticos, fizemos a viagem de lua-de-mel que incluiu Madrid, Porto, Braga e Gerês, enfim, um sem número de mordomias impensáveis se tivesse continuado por aqui e se não tivesse aceite sem hesitar a mão que o meu falecido primo João Gaspar generosamente me estendeu.

Já estão os dois junto de Deus mas a minha gratidão permanece intacta e reverencio a sua querida memória. A silicose da mina matou o João aos cinquenta e poucos como já era previsível e a Maria José foi ter com ele pouco depois vítima de um AVC.

Resta-me o grato prazer de me encontrar agora frequentemente com o meu querido capataz, o José Mouro, assim como com a sua esposa e filha mais nova, pois regressaram às encostas de Marvão mal ele se aposentou. A filha mais velha reside nos EUA e o filho também vive longe de Marvão.

Gosto de todos eles como gosto da minha família e não conseguimos - nem queremos - disfarçar a profunda amizade que nos une, sempre que nos encontramos ou visitamos. A gratidão é a virtude que mais prezo na vida...


José Coelho in Histórias do Cota

Beirã - Arredores - Para memória futura...

A casinha da avó Amélia na Cavalinha, rodeada de verde e paz
Foto by José Coelho

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem copiada do Google


Novo desafio. Mineiro



Até ao dia em que comecei a ser mineiro pensava que o trabalho mais duro e sacrificado que existia no mundo era o trabalho no campo onde cada camponês tem que levantar-se de madrugada e só se deita alta noite se quiser tirar algum resultado do seu esforço. Por tudo quanto conhecia dessa minha anterior vida fiquei pasmado com a dureza do trabalho mineiro, muito mais perigosa suja e imprevisível do que qualquer serviço agrícola. Nas primeiras semanas quando laborava nas profundezas da terra a mais de três mil metros da boca da mina, iluminado apenas pelo pequeno farol encaixado no capacete e alimentado por uma pilha presa ao cinto das calças, mais de uma vez senti o desconforto claustrofóbico de todos os principiantes mineiros no meio de toda aquela humidade e escuridão, habituado que estava ao ar puro dos campos onde eu quase sempre tinha vivido até então.

Não foi fácil a adaptação ao subsolo nas faldas da Serra da Estrela mas acabei por me adaptar e por lá fiquei nos cinco anos seguintes. Obviamente não era do mesmo modo também fácil para todos quantos lá trabalhavam há muitos anos mas toda a gente acaba por se habituar, salvo raras exceções pois também aparecia de vez em quando um ou outro principiante que entrava uma vez na mina mas no dia seguinte desistia do emprego e não voltava lá mais. Não é por mero acaso que os mineiros mais velhos morrem quase todos pouco depois dos 50, vítimas da silicose. Pela minha parte, comecei por ser ajudante de um destemido castelovidense, o Zé Maria mais conhecido pela alcunha de “mocho”. Bom rapaz sem dúvida e mais ou menos da minha idade, marteleiro de chaminés e tão aventureiro que acabou por morrer esmagado em 1980 debaixo de um liso enorme que se desprendeu da abóbada de uma galeria poucos meses depois de eu ter deixado as minas para ingressar na GNR.

E o que eram as ditas chaminés?

Eram… Poços abertos de baixo para cima, para ligarem verticalmente as galerias do o nível 3 às do nível 2 ou do nível 2 às do nível 1. As Minas da Panasqueira têm dezenas de quilómetros de galerias em níveis sobrepostos de 100 em 100 metros de profundidade, o que quer dizer que o nível 3 se encontra à profundidade vertical de 200 metros. Mas depois cada um desses níveis tem uma imensa rede de galerias paralelas ligadas entre si e que avançam serra adentro por mais de 5. 000 metros na horizontal.

Marcado pelos topógrafos o local exato onde era precisa a nova chaminé, começava por se abrir um buraco redondo no tecto da galeria furando-o com um martelo pneumático vertical movido a ar comprimido. Depois de todos os buracos abertos com as brocas de 1,20m, eram carregados pelo Zé Maria e por mim com as velas de dinamite previamente preparadas com detonadores ligados entre si e cujo fio condutor ligávamos depois já longe da chaminé a um sistema elétrico central que a determinada hora quando já não houvesse ninguém naquele sector, iria ser explodido por controle remoto. Assim se abriam aqueles poços virados ao contrário.

À medida que íamos subindo em direção à galeria superior onde iria certeiramente terminar 100 metros mais acima, tínhamos que ir também todos os dias chumbando à parede de um dos lados do poço umas grades de aço com uma cremalheira lateral onde encaixava um elevador dobrável movido também a ar comprimido e onde levávamos sempre tudo de uma vez. O martelo e as brocas, a grade para acrescentar mais um metro e meio de ascensão ao elevador, a dinamite para depois carregarmos os novos furos, os detonadores e os fios elétricos para os armadilhar. Cada equipa de cada frente trabalhava sempre e só no mesmo sector. Não havia misturas por questões óbvias de segurança.

O pequeno elevador era de plataforma redonda como a chaminé (ou poço) e com o diâmetro adequado para ir subindo sem problemas pelo buraco acima. Tinha um “chapéu” metálico tipo sombrinha que se abria e nos protegia dos calhaus que ficavam suspensos do rebentamento e se iam desprendendo do tecto pela trepidação causada pela grade do elevador à medida que este ia subindo. O estrépido dos calhaus a baterem na chapa de ferro a um palmo das nossas cabeças era ensurdecedor. E atemorizante também, apesar de todo aquele equipamento ter sido pensado para proteger quem lá tinha que trabalhar.

Chegados finalmente lá acima, a primeira coisa que tínhamos que fazer era chumbar a nova grade do elevador para ele poder subir e   aproximar-se mais do tecto e assim podermos escumbrar convenientemente todas as pedras ainda soltas, até ficar só a rocha firme para furar de novo e voltar a carregar. Confesso que pensei algumas vezes que não tinha “cascado” no Maiombe e ainda ia acabar os meus dias ali nas entranhas da terra. Pelo sim pelo não, era meu hábito proteger sempre com o meu corpo as velas de dinamite e os detonadores agachando-me sobre eles, não fosse alguma pedra ao soltar-se do tecto, fazer ricochete na parede do poço e cair-lhes em cima, provocando o seu rebentamento. Já dizia a minha avó que cautela e caldos de galinha, nunca fizeram mal a ninguém…

O Zé Maria ria, ria, ria, divertidíssimo com os meus receios pois andava naquilo há 3 ou 4 anos e tratava as pedras, os explosivos e o perigo por tu. Por isso, se calhar, morreu! Menosprezou a sua segurança. O nosso capataz era um ilustre marvanense do Jardim. Um grande homem e um mineiro de mão cheia. Tão audaz e aventureiro que um dia ia ficando sem um braço. Ao acionar um daqueles tais elevadores das chaminés inadvertidamente deixou prender a manga do casaco nos dentes mecânicos. E o elevador quase lhe arrancou um dos braços. Teve que sofrer várias intervenções cirúrgicas e a parte do braço que o elevador lhe arrancou teve que ser substituída por um enxerto retirado de outra parte do seu corpo. Era – e  é ainda hoje – um homem de caráter vincado, muito humano, muito boa pessoa e íntegro, amigo de todo o pessoal que chefiava.

Mal tomou conhecimento que eu era de Marvão, logo tratou de me tirar do perigoso serviço das chaminés e nomeou-me seu escriturário para fazer o ponto escrito dos mineiros de cada turno, naquele sector à sua responsabilidade. Era o Sector das Preparações que consistia em avançar com os túneis serra dentro para preparar o acesso à exploração do volfrâmio que viria atrás, transformando os nossos primeiros pequenos túneis em autênticas catedrais abobadadas, imensas galerias de onde era extraído o minério. Suponho que ainda hoje será assim embora provavelmente com métodos mais sofisticados e menos perigosos dos de então.

Era também o meu chefe marvanense, muito famoso pela sua experiência profissional dentro da mina. Dizia-se por lá nesse tempo que ele, juntamente com o meu primo João Gaspar - que me levou para lá - eram os dois melhores mineiros das Minas da Panasqueira. Tinham, por isso mesmo, um estatuto muito particular junto dos engenheiros e de todo o staff da administração do couto mineiro.
Foi pela mão de ambos que eu também consegui vingar e adaptar-me àquela vida ao ponto de ter decidido casar pouco depois e procurar casa para me estabelecer ali definitivamente com a família. Vieram todos ao meu casamento. Amigos daqueles são raros de se encontrar. No próximo capítulo irei apresentá-los, com profundo afeto e gratidão.


José Coelho in Histórias do Cota

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Na camarata, depois do turno de trabalho na mina


Com a mala às costas (outra vez)


Tornou-se evidente que eu não iria conseguiria arranjar trabalho por estas bandas. Provavelmente por se ter apercebido de alguns dos tais comentários a meu respeito e deduzindo logicamente que eram consequência da minha colaboração nas suas atividades políticas, o doutor Teixeira Alves incentivou-me a ingressar na guarda-fiscal que por essa altura abrira concurso. Mas para mim essa opção estava completamente fora de questão. Frustrado com a minha teimosia o doutor exclamara, irritado:

- Bolas, Zé Manel! Os empregos tão escassos e tu tão selectivo!

Não era que eu tivesse alguma coisa contra os pica-chouriços. Muito pelo contrário. Nasci e cresci rodeado deles e das suas excelentes famílias porque na Beirã desse tempo as casas, porta sim, porta não, eram moradia de guardas. E os meus companheiros de escola amigos de brincadeira, os filhos deles. Mas a perspectiva de envergar novamente uma farda era muito prematura depois do que tinha penado dentro de outra. As lembranças e os traumas ainda não se haviam dissipado. De todo. Se hoje passadas tantas décadas continuam a persistir, como seria então, passados apenas meia dúzia de meses? Daí o meu raciocínio e único motivo para instintivamente rejeitar tal hipótese.  

No entanto, era também ponto assente que naquelas circunstâncias eu não podia continuar à espera. Não era justo estar a sobrecarregar os meus pais com o meu sustento porque eles tinham as minhas irmãs mais novas ainda pequenas sendo auxiliados nas despesas da casa apenas pelo pequeno ordenado da minha irmã mais velha que trabalhava na alfaiataria Barradinhas a ganhar cento e cinquenta escudos por mês.

Quis a sorte que um primo da minha mãe, o João Gaspar que Deus já chamou, viesse passar uns dias de férias à Beirã. Era mineiro há já alguns anos na Panasqueira onde laboravam também muitos outros conterrâneos do concelho de Marvão. E todos lá residiam com as suas famílias. Não só familiar como velho e querido amigo de longa data, apercebendo-se das minhas dificuldades em conseguir sustento por aqui, comprometeu-se generosamente e sem que eu lho tivesse sequer pedido, a tentar que me admitissem na empresa onde ele trabalhava, e onde também, por ser um dos mais velhos e conceituados operários, tinha bons conhecimentos entre os engenheiros da direcção.

Prometeu, cumpriu.

Logo na semana seguinte recebi uma carta sua a indicar-me que me apresentasse à inspeção médica obrigatória dali a alguns dias, mas avisando também que devia levar logo roupa suficiente uma vez que iria começar a trabalhar já no dia 1 do mês seguinte que se aproximava. Não era uma hipótese. Era uma certeza. Tinha sido admitido. Feliz da vida, lá fui eu cheio de esperança e de projectos no futuro.

Naquele tempo as Minas da Panasqueira pareciam ser no fim do mundo. Tinha que ir de autocarro da Beirã até Portalegre. Ali mudava para outro que ia para Nisa. Em Nisa mudava para outro que ia para Castelo Branco. Em Castelo Branco apanhava o comboio até ao Fundão. No Fundão tinha que esperar pelo autocarro de São Jorge da Beira que fazia todas aquelas aldeias e passava na Barroca Grande, onde está sediada a empresa mineira inglesa Beralt Tin & Wolfram, que, suponho, ainda hoje detém aquela exploração mineira, se bem que mais reduzida.

Eram dez horas de viagem e uma pessoa chegava lá mais moído do que carne picada. Mas valeu a pena. E como valeu! Foi o lugar onde mais gostei de estar em toda a minha vida. As pessoas eram simplesmente fabulosas. O primo João Gaspar, a esposa Maria José e os seus dois rapazes, o António e o Zé Manel. O primo Antero, a esposa e as filhas. O José Mouro e toda a sua família. E muitos outros. Marvanenses dos quatro costados, gente de bem e profundamente solidária que me receberam e acarinharam como se de um filho seu se tratasse. Há coisas que nunca mais se esquecem na vida e favores que jamais conseguiremos retribuir por mais anos que vivamos.

Bem se diz que na sua terra ninguém é profeta. Difamado injustamente por pessoas que sempre conhecera e estimara, perseguido por “crimes” que em momento algum cometi, fui lá tão longe ser recebido de braços abertos por pessoas sumamente generosas e solidárias. Algumas eram da minha família, sim. Mas outras, apesar de serem conterrâneas, nunca as tinha conhecido na minha vida. De tal modo foi gratificante aquela radical mudança no meu dia-a-dia que mais uma vez senti no mais profundo do meu íntimo que Alguém estaria novamente a escrever direito por linhas tortas.

O trabalho na mina era duro e arriscado. Mas esse pormenor era irrelevante perante o restante cenário que me proporcionava tudo aquilo que eu mais precisava. Estabilidade. Trabalho certo e bem remunerado. Um vencimento mensal três vezes superior àquele que se praticava no concelho de Marvão. Amizade, camaradagem e solidariedade humanas e genuínas de um montão de gente boa. Vivia plenamente feliz cada um dos meus dias. Os mineiros eram uma enorme e imensa família. E eu sentia-me como se lá tivesse vivido sempre. Nunca na minha vida tinha vivido tamanha ventura, tão íntimo bem-estar. Foi onde conheci e aprendi alguns daqueles valores que são muito mais valiosos que todo o dinheiro do mundo.

Naquele início de 1975 éramos mais de dois mil os trabalhadores da Beralt entre os mineiros que trabalhávamos no interior da terra, os operários da lavaria – mecanismo de lavagem dos minérios à boca da mina – os camionistas e maquinistas exteriores, o pessoal administrativo, os funcionários do hospital particular da empresa, do clube de recreio e de toda a panóplia do apoio logístico que à época era um autêntico luxo, tendo em conta a precaridade de condições existentes noutra qualquer empresa nacional desse tempo. Os ingleses não brincavam em serviço e cuidavam primorosamente do bem-estar de todos os seus funcionários desde o administrador da empresa até às senhoras da limpeza.

A mina e a lavaria laboravam 24 sobre 24 horas em 3 turnos rotativos de 8 horas. E todos fazíamos os 3 turnos. À semana. Um das zero às oito da manhã, outro das oito às dezasseis e outro das dezasseis às zero. Nas encostas envolventes da Barroca Grande tinham sido construídos um moderno hospital, uma igreja, uma escola, uma creche, um clube recreativo, um campo de futebol e um ringue de patinagem, além de vários e excelentes bairros habitacionais onde residiam mais de quinhentas famílias dos mineiros. No vale adjacente foram implantados um refeitório self-service e quatro imensos dormitórios, cada um com vinte quartos, cada quarto com capacidade para quatro mineiros, todos devidamente equipados com aquecimento central e instalações sanitárias individuais com duche de água quente para acomodar os mineiros que como eu lá não tinham a sua família mas usufruíamos assim da mesma maneira de todas as comodidades...


José Coelho in Histórias do Cota

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Coisas (bonitas) que leio...

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Descalço


Cheguei pobre e assim parto
Dono de coisa nenhuma,
Entre as paredes de um quarto
Tenho mar não tenho barco,
Tenho vento não tenho escuna

Naveguei águas correntes
Que agora vivem paradas,
Mortos os rios são diferentes
Como no mundo tanta gente,
Que esquece águas passadas

Vendi os sonhos que tinha
Guardados, porque eram meus,
Tudo o que á mente me vinha
Afoguei no sumo da vinha,
Querendo ganhar o céu

Ceifei trigo sem ter pão
Deitei a vida á maré,
Nas eiras do coração
Parto sem ter um tostão,
Nadei para fora de pé

Andei descalço da poeira
Que caminhar tão ingrato,
Deixei as marcas e canseira
Fui eu á minha maneira,
Cheguei pobre e assim parto


Jorge Raposo Caraça

Beirã - Arredores - Para memória futura...

Fontenário público dos Barretos  
Foto by José Coelho

Coisas q'escrevi...

O Dr a assinar como testemunha de casamento da minha irmã


Doutor, amigo, conselheiro



Foi colocado em meados desse ano de 1974 a chefiar a Alfândega. Era uma excelente pessoa e ainda melhor amigo. O doutor Teixeira Alves. Conhecemo-nos no Clube da Beirã quando a malta por lá se reunia a passar os serões. Apesar do alto cargo que já então exercia, era um jovem pouco mais velho que eu. Tinha apetência para a política e nas suas horas livres ensinava-nos e explicava-nos muitas coisas sobre o recente golpe de estado assim como tudo o que viria a seguir. Militava no MDP/CDE, um partido, dizia-se, filho legítimo do PCP. Era um homem muito culto mas de linguagem simples, capaz de ser entendida até pelas pessoas mais analfabetas e manifestava em todas as suas atitudes uma postura extremamente moderada.

Foi por acaso que nos tornámos amigos. Eu continuava por aqui sem conseguir emprego. Fazia um ou dois meses de trabalho precário aqui ou ali, a fega da azeitona do Pereiro de Novembro até Fevereiro e pouco mais. Por isso o doutor pedia-me quase sempre para o acompanhar quando ia discursar em sessões de esclarecimento pelas localidades ao redor da Beirã, em virtude de eu conhecer melhor a zona e inclusivamente as pessoas, as quais, muitas vezes, por terem mais confiança comigo do que com ele, me punham as questões e as dúvidas a mim para eu posteriormente lhas transmitir e ele oportunamente as esclarecer.

Foi este senhor doutor que incentivou a criação de células dos primeiros sindicatos que, entretanto, começavam a surgir. E o que entre nós teve mais impacto e imediata adesão foi o sindicato dos trabalhadores rurais. Havia no entanto um enorme contratempo. O analfabetismo de quase cem por cento desses trabalhadores. Então, sob a orientação do doutor, alugou-se uma casa à entrada da aldeia que foi minimamente mobilada com móveis usados e oferecidos por algumas pessoas, ali se tendo fundado a primeira sede local de sindicato. Procedeu-se a eleições e entre os sindicalizados foram eleitos três representantes, todos eles trabalhadores da herdade do Pereiro. Nenhum sabia ler nem escrever. Em virtude disso, pediu-me o doutor se não me importava de passar diariamente pela sede do recém-criado sindicato para fazer a escrita necessária e que se limitava ao preenchimento das fichas individuais dos aderentes, escriturar as quotas mensais, receber o seu pagamento e posteriormente entregá-lo aos elementos eleitos da direção sindical.

Nunca auferi vencimento algum pelo que fiz, assim como nunca assumi qualquer vínculo partidário. Não tinha pressa em me filiar em qualquer partido à toa, porquanto desconhecia completamente o que representava cada um deles e se o que defendia me interessava ou convinha. Como já escrevi noutro texto, andava naquela fase de ver, ouvir e entender, para só depois então decidir. Fui muitas vezes a Portalegre com o doutor, conheci e convivi de perto com algumas individualidades que mais tarde chegaram a deputados da Assembleia da República mas nunca fui além de mero observador das lides políticas em que andavam envolvidas todas aquelas personalidades.

De nada me valeram contudo as minhas reservas, porque, entretanto, adquiri, sem me dar conta, o estatuto de "comuna" e passei a ser olhado com maus olhos por muito boa gente que eu julgava amiga. Ao doutor faziam vénias e lambiam as botas. A mim atiravam pedras. Pudera! Ele era o senhor doutor, ninguém ousava insultá-lo. Vai lá, vai… Era muito mais fácil falarem de mim aquilo que não se atreviam a dizer dele. Porém, como quem não deve não teme, nunca me preocupei muito com isso, apesar de, obviamente, me causarem algum constrangimento as atitudes dessa gentinha menor que engrandecia os poderosos e minimizava os seus iguais. Só muito mais tarde, 4 ou 5 anos depois, é que me dei realmente conta do quanto tinha sido prejudicado por causa de tudo isso. Mas a seu tempo escreverei pormenorizadamente acerca dessas iniquidades.

Na continuação daquilo que foi a minha vida depois de chegar da tropa nesses agitados meses pós 25 de Abril, havia a necessidade urgente de nomear provisoriamente três elementos da aldeia com alguma capacidade para gerir a Junta de Freguesia da Beirã e assegurar o funcionamento da mesma até às eleições livres que entretanto estavam já a ser preparadas, uma vez que os anteriores membros foram tacitamente destituídos no momento em que o governo de Marcelo Caetano caiu.

Para a Câmara Municipal de Marvão sucedera o mesmo e do seu elenco provisório fazia parte um velho e querido conterrâneo, o João Forte – o Barbas – amigo de toda a vida do meu pai e que me pediu que integrasse o elenco provisório da Junta de Freguesia enquanto tal fosse necessário. Vindo o pedido de quem vinha, confiadamente aceitei sem hesitar. Dias depois fomos empossados oficialmente em acta pública na Câmara Municipal de Marvão. Já não recordo a data mas decerto por lá estará registada em livro próprio essa nossa tomada de posse. Sei os nomes dos outros elementos e só não os vou mencionar por achar isso irrelevante. Um foi nomeado presidente, eu fui nomeado secretário e o terceiro elemento, tesoureiro. Exercemos com honesta responsabilidade as funções que nos foram confiadas e honrou-me ter merecido do João Forte tal convite.

Só é pena que a minha permanente disponibilidade para colaborar em tudo aquilo que me foi solicitado tivesse quase sempre resultado em enormes decepções e algumas injustiças. Nunca pretendi alcançar louros para mim nem pelouros para os meus. Apenas me interessou sempre o bem comum da comunidade à qual pertenço e muito prezo. Contudo, às vezes, o reconhecimento  público e o respeito daqueles por quem somos capazes de dar a cara, não fazia mal a ninguém e incentivaria a fazer mais e melhor. Porque tanta lambada injustamente já levei, hoje não vou muito em cantigas. Fico-me sossegado no meu canto e só aceito seja o que for depois de pensar muito bem primeiro. 

Água mole em pedra dura…


José Coelho in Histórias do Cota

Coisas minhas publicadas noutros sítios...

A lareira cá de casa - foto by José Coelho


Nunca os invernos me pareceram tão tristes e longos. O vento a uivar pelas frestas que sempre consegue achar nas portas e nas janelas, por mais perfeitas que sejam. O tamborilar monótono da chuva lá fora. O silêncio inquietante das ruas quase desertas onde se sucedem casas com as portas trancadas pela ausência de quem as habitou, janelas às escuras como olhos que cegaram e há muito deixaram de vislumbrar qualquer centelha de luz. Resta o aconchego do lume. Mas até esse, apenas aquece o corpo por fora. Por dentro, a nossa alma continua gelada, tão grande é a melancolia que de tudo isto emana. À nossa volta só abunda agora a solidão. Nem mesmo o vistoso crepitar das chamas e o alegre estalar das brasas em combustão conseguem animar tão silenciosos serões...


José Coelho 
14-2-2015 in facebook

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Bom fim de semana...

Foto by Pedro Coelho


Não mendigues afectos


Não mendigues a atenção de ninguém e muito menos o amor. Não mendigues afectos a quem não tem tempo para ti, a quem só pensa em si mesmo. Nunca faças isso. Quem faz com que te sintas invisível e insignificante perante a sua indiferença, não te merece. Só te merece quem, pela sua atenção, faz com que sintas a sua presença na tua vida. O amor deve ser demonstrado, mas nunca, jamais, deve ser mendigado. O facto de haver necessidade de mendigar amor é um fiel reflexo de injustiça emocional e de desequilíbrio do sentimento que deve sustentar uma relação. Merece o teu amor quem diz menos, mas faz mais. Não o merece quem só te procura quando precisa, mas quem está sempre ao teu lado e não só quando o seu interesse pessoal prevalece. Merece o teu amor quem, sem esperar nada, leva esse sentimento dentro de si e te faz sentir importante.


Autor desconhecido

Beirã - Arredores - Para memória futura...

Chaminé de antiga leprosaria na Herdade dos Pombais 
Foto by José Coelho

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

No canto superior esquerdo da imagem, a varanda do antigo Clube da Beirã
Autor da foto desconhecido


Princípio do fim


Uma excelente novidade vim encontrar quando regressei d’Angola. Já não era o velho candeeiro a petróleo que iluminava os nossos serões. Com muito sacrifício – para variar – os meus pais tinham conseguido amealhar o suficiente para mandarem fazer a instalação elétrica em toda a casa, o que na altura era considerado quase um luxo. Nunca mo tinham dito na correspondência semanal precisamente para ser a surpresa que foi e que de facto me deixou muito agradecido e feliz.

Sempre fui um “devorador” de livros que só podia ler à noite à luz do candeeiro porque o dia tinha que ser  para trabalhar, mas, essencialmente, aquela pequena mordomia da iluminação elétrica era ainda mais necessária à minha mãe para os seus serões de costura, uma vez que durante o dia os outros inúmeros afazeres não lhe deixavam tempo para isso.

Cheguei à terra em vésperas dos santos populares e das fogueiras de rosmaninho que cada família fazia à sua porta em alegres convívios de sardinhadas e caldo verde à mistura com o inevitável pezinho de dança ao som de música de gira-discos ou gravador de cassetes. Tudo o que eu necessitava para me reencontrar com o equilíbrio emocional e a paz de espírito. A Beirã desse tempo tinha um grande grupo de jovens da minha idade e não só. Era uma comunidade muito viva, atuante e participativa.

Aos serões, a “malta” de ambos os sexos juntavam-se em grupos no Clube ou na Sociedade Recreativa, no Largo da Fonte ou à porta da Loja Grande. Havia quem tivesse viola, havia até quem cantasse muito bem, havia enfim, um estilo de vida completamente salutar onde a amizade, a camaradagem e o espírito de grupo imperavam, fazendo de todos nós uma juventude muito unida  e feliz.

Ninguém ou quase ninguém tinha ainda televisão em casa. Qualquer programa de maior interesse era televisionado nas salas públicas já referidas que tinham esse equipamento para utilização coletiva, o que, de algum modo, também contribuía muito para a juventude reunir e conviver diariamente.

Os ecos da Revolução de Abril iam cá chegando mais ou menos ruidosos e com eles começaram infelizmente as tendências agressivas do partidarismo que subtilmente dividiu em claques a malta simpatizante de cada uma das muitas e diferentes opções políticas que se foram perfilando em direção ao Poder. E alguns amigos de uma vida inteira começaram a olhar-se como rivais.

Iniciou-se dessa forma a nova era conquistada na recente manhã de abril e que, em meu modesto entender, não trouxe, nem pouco mais ou menos, o que se perspetivava em termos de bem-estar coletivo e mesmo em termos de futuro. Muito e muito pelo contrário. Sem que ninguém o previsse ou pudesse imaginar, a Beirã começou a ruir num efeito dominó imparável e demolidor. A menina dos olhos do concelho de Marvão, iniciou ali o inexorável e irreversível processo da sua lenta agonia.

Primeiro foram os agentes da Pide que fugiram ou foram presos e as suas famílias tiveram que regressar às origens, deixando para trás as primeiras casas desabitadas. Vizinhos e amigos independentemente do que os ligava ao anterior regime ou ao que faziam no exercício da sua profissão, eram famílias inteiras que davam vida à aldeia e ajudavam a sustentar a economia local.

Depois foi o processo de integração de Portugal na União Europeia. A alfândega fechou e a circulação ferroviária reduziu tanto que mais de dois terços dos funcionários da CP foram colocados noutras estações longe da Beirã. Os escritórios dos despachantes oficiais também deixaram de ser necessários e a sombra do desemprego começou a pairar sem deixar lugar a dúvidas sobre muitas famílias que ali tinham o seu ganha-pão há décadas. Os que não eram de cá foram pura e simplesmente embora também para as suas terras em busca das suas raízes para ali reconstruir ou começar de novo as suas vidas. E para trás ficaram mais casas desabitadas um pouco por todas as ruas e becos.

Em consequência da abertura das fronteiras foi também extinta a Guarda-Fiscal. Outra machadada na já periclitante vida económica e social da aldeia que assim ia perdendo em marcha acelerada e cada vez mais o habitual movimento de pessoas e mercadorias.

Mas não foram só os funcionários da Estação a serem “expulsos” por tão estranho “progresso” trazido pela santa revolução de abril. Antes da sangria desatada que quase esvaziou de gente a aldeia, eu próprio fui dos primeiros Beiranenses a ter que migrar para outras paragens. A oferta de trabalho até na agricultura começou por aqui a escassear e eu queria constituir família, assentar. Precisava para isso de arranjar, antes de tudo, o emprego sólido e seguro que me permitisse colocar pão na mesa para a família, para poder então dar o passo seguinte. Casar.

Em boa verdade, a grande causa da minha necessidade de partir para longe à procura de trabalho nessa época, não foi apenas a falta de oferta de emprego por estas bandas. Foi também e sobretudo o tal partidarismo provinciano que já referi e se transformou em fanatismo para muita gente. Pessoas que até ali tinham sido amigas, não toleravam de forma nenhuma que amigos seus ou até mesmo familiares próximos pudessem ter opções diferentes.

A revolução libertou-nos da velha e caduca ditadura do estado novo mas para muitos pseudo-democratas de aldeias como a Beirã, quem não fosse da sua “cor”, era um alvo a abater. E, para nossa imensa infelicidade todos estes anos depois, ainda prevalecem muitas mentalidades dessas. Sabem lá elas definir o que é democracia! Sabem lá elas que a sua liberdade termina exatamente… Onde a dos outros começa! Democratas? Deixem-me rir. Tenho tantas coisas giras para vos contar…


José Coelho in Histórias do Cota

In memorian...

Faleceu hoje o último merceeiro da minha velha Beirã. Era na sua mercearia que se vendiam estas lembranças que ele mandava fazer. Foi onde e a quem comprámos, há muitos anos, esta e outra caneca que guardamos com muito empenho. Descanse em paz, senhor João.

Miminhos de um(a) neto(a)...


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Coisas que leio...

Foto by Pedro Coelho



Envelhecer



Entra pela velhice com cuidado,

Pé ante pé, sem provocar rumores

Que despertem lembranças do passado,

Sonhos de glória, ilusões de amores.




Do que tiveres no pomar plantado,

Apanha os frutos e recolhe as flores

Mas lavra ainda e planta o teu eirado

Que outros virão colher quando te fores.




Não te seja a velhice enfermidade!

Alimenta no espírito a saúde!

Luta contra as tibiezas da vontade!




Que a neve caia! o teu ardor não mude!

Mantém-te jovem, pouco importa a idade!

Tem cada idade a sua juventude.



Bastos Tigre

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem copiada do Google


Entre o espanto e o encanto


Ambiente geral em meu redor, quando regressei de África:  Tudo doido com a liberdade recém-conquistada. Por qualquer casca d’alho juntava-se o pagode aos gritos de punho no ar em qualquer lugar público e…

“O PO-VO, ES-TÁ, COM O É-ME-É-FE-Á”

Ou então…

“FAS-CIS-TA, ES-CU-TA, O PO-VO ES-TÁ EM LU-TA”

Os então denominados “carrascos do povo” como por exemplo os ex-agentes da PIDE, os seus informadores conhecidos ou simplesmente suspeitos de o serem, eram agora o objeto predileto da sanha democrática de toda a gente, a par deste ou daquele indivíduo que, se fosse rico, era imediatamente acusado de “fascista”. Passou-se da passividade institucional antes vigente para um exagero de atitudes incompreensível. Do oito para o oitenta. Os “pré-perseguidos” transformaram-se em "pós-perseguidores" piores e mais cruéis, mais intolerantes e AINDA MAIS prepotentes do que aqueles que perseguiam, em nome de uma estranha justiça da qual se arvoravam juízes, por conta da Liberdade, da Democracia e da Revolução.

Infelizmente a esmagadora maioria, aqueles que não sabiam ler nem escrever, tornaram-se fáceis e manuseáveis instrumentos, perfeitos “maria-vai-com-todas” crédulos e ingénuos a quem muitos conseguiram mesmo fazer acreditar que as herdades e as quintas de todo o país iam ser divididas em quadradinhos para distribuir por todo o bicho careto em partes iguais, com um chavão usado até à exaustão pelos candidatos ao poder e cujo slogan berravam em tudo quanto era sítio:

“A TERRA É DE QUEM A TRABALHA”

A seu tempo e quando as minhas “histórias” lá chegarem, irei descrever qual foi o meu papel no meio desse turbilhão de excessos, porque, como não podia deixar de ser, fui também envolvido nesse processo de mudança e assumo-o sem qualquer hesitação ou constrangimento, pese embora a verdadeira versão dos factos seja muito diferente daquilo que muita gente sabe, ou que julga que sabe. Mas cada coisa a seu tempo e lá haveremos de chegar, porque eu quero tentar seguir a cronologia lógica e temporal mais aproximada possível de todos os factos a narrar.

Assim, enquanto meio mundo cantava a Grândola Vila Morena, o outro meio mundo tentava perceber o que estava a acontecer, assentar os pés no chão, manter a cabeça no lugar, não se meter em euforias parvas e situar-se naquela nova e desconhecida realidade em que se havia transformado o país.
Era nessa segunda metade que eu me sentia inserido. De política, não percebia um corno. Ainda hoje não percebo muito, mas pronto, aceito que sou um pouco mais esclarecido, embora tenha, acerca de alguns políticos, sérias reservas de credibilidade. Sejam eles da cor que forem. Passados que são já tantos anos, assistindo aos sucessivos escândalos e desigualdades que prevalecem e que hoje são muito maiores e mais aberrantes do que antes de 1974, não resta lugar para grandes dúvidas.

Também na altura não percebia bem porque eram tão hediondos os Pides uma vez que cresci a conviver com eles, com as suas esposas e a brincar com os seus filhos da minha idade, dos quais guardo boas recordações. Eram pessoas normalíssimas, iguais a nós, apenas ganhavam maiores ordenados e viviam melhor que a maioria das pessoas da aldeia. Quanto aos ricos, sempre os conheci. Eram eles que nos davam trabalho e nos pagavam as jornas. Que mal fazia haver ricos?

Mas… Adiante!

Ao regressar a casa depois de tanto penar, a última coisa que me importava mesmo era a revolução, os cravos nas espingardas ou as gaivotas que voavam, voavam. O que eu queria e precisava mesmo era de paz, de sossego e de me “encharcar” nos afetos da minha família, da minha namorada e dos amigos verdadeiros que cá deixara. Alguns, infelizmente, já não pude abraçar, com imensa pena e desgosto, como por exemplo o meu inseparável e querido amigo Francisco Viegas que falecera inesperadamente com uma crise cardíaca, alguns meses antes. Era um daqueles amigos de confiança, mais irmão do que amigo, e não, não é por já ter morrido que digo que era muito boa pessoa. Quem o conheceu sabe de quem e do que falo ao referir-me a ele.

E as minhas irmãs? Como eu as adorava! E adoro ainda hoje. Estavam tão diferentes. A Adelina estava uma senhora. A Luz até já tinha maminhas, quem diria… Era apenas uma miudita franzina quando eu abalei pr’angola! E a Joaquina? A Caçulinha estava uma mulherzinha também… Que saudades eu tinha passado das três. Sempre fomos muitíssimo bem unidos, amigos e companheiros, quatro verdadeiros irmãos à moda antiga a conseguirem manter sempre intactos os laços de fraterno carinho.

Também a minha companheira, a paciente amiga que me atura desde esse tempo até hoje, a excelente pessoa e extremosa mãe dos nossos filhos. De 1971 até hoje e com projeto aprovado para outros tantos anos de vida em comum, não é preciso acrescentar muito mais! Está tudo dito.

Depois, os meus pais! Os meus queridos progenitores. Prometi a mim mesmo nesse tempo e parece-me ter conseguido cumprir, que jamais me afastaria deles. Na infinita solidão do Maiombe descobri quanto os amava, o quanto precisava do seu afeto e de me sentir seguro debaixo das suas protetoras asas. E não é pieguice, não. Acho que todos nós, filhos, e particularmente em momentos de sofrimento, somos assim. Corremos para o colo dos nossos pais se os temos por perto, corremos ao seu encontro no íntimo dos nossos corações se os temos longe, corremos no silêncio do impossível se já os perdemos. Mas é para lá que todos corremos sempre. Não é por acaso que nos momentos de dor profunda exclamamos: - Ai, minha Mãe!

Tanta coisa eu aprendi, em apenas 27 meses da minha vida...


José Coelho in Histórias do Cota