A minha querida família mineira comigo, no dia que casei
Candidato a profissão nunca antes imaginada
Chegou
Agosto de 1979. Mais uma vez, a minha mulher e filho foram lá passar o mês comigo em casa do chefe Zé Mouro a cuja família nos afeiçoámos como
se da nossa se tratasse. E como também já vinha sendo hábito, em Setembro vim com eles de
férias. Foi nesse ano que, não sei como nem por quem, a minha mãe e a minha cara
metade souberam que estava aberto concurso para admissão de praças à GNR.
Cada
uma delas, à vez, iam-me buzinando aos ouvidos que aquela sim era uma vida
decente, que ser mineiro era ser como as toupeiras sempre debaixo do chão sem
ver a luz do dia, e isto e aquilo. Mais para deixar de as ouvir do que
por convicção, lá fui tratar da papelada necessária ao posto de Santo António
das Areias onde fui primorosamente atendido pelo guarda e senhor Pouca Roupa que era na altura o comandante
interino do posto porquanto o cabo estava de baixa.
Preenchido
e entregue o requerimento, nunca mais me preocupei com aquilo. Aqui para nós, sinceramente, nunca tencionei enveredar por tal carreira, pois não me via metido dentro de uma farda de novo e muito menos de polainas nas pernas e espingarda mauser às costas a
patrulhar caminhos. Regressei por isso em Outubro às Minas onde pus o meu
chefe ao corrente do que tinha feito e confidenciando-lhe que tinha sido mais
para calar a mulher e a mãe do que com intenção de mudar de profissão. Para
meu grande espanto, ele ficou um bocado calado e a pensar. Passado esse tempo de reflexão respondeu-me
assim:
-
Olha Zé! Sinceramente eu tenho muita pena que te vás embora porque nos afeiçoámos
a ti, não só eu e a minha família, mas também muitos dos teus outros amigos
como o teu primo João e a família dele, o Antero e a família dele, o Zé Maria,
o Pinto e o pessoal das Preparações que bastante te estimam todos. Mas acho
que deves empenhar-te nisso a sério e que deves tentar entrar. A mina
não te leva a lado nenhum. Vais é apanhar silicose como todos nós. Andas para
aqui longe da família e desterrado dela, uma vez que a tua mulher não quer para
cá vir morar. Por isso pensa bem. É um futuro melhor, mais limpo e muito menos
arriscado…
Surpreso por completo com o sensato conselho daquele amigo com A grande, nada mais adiantei.
Estávamos,
como já referi, em Outubro de 1979. Eis senão quando um lamentável incidente
de cariz racista resultou em sérios confrontos entre a
comunidade local e os caboverdeanos residentes nas camaratas. Parecia a noite
de cristal de Hitler. Os africanos, não sei por que carga d'água, atacaram as camaratas, partindo janela a janela. Eu estava
a dormir porque ia entrar às 00,00 horas no turno da noite. Por isso, mal me
apercebi do alarido exterior, só tive tempo de saltar da cama meio vestido
quando um objecto contundente atingiu a vidraça por cima da minha cabeceira
estilhaçando-a completamente e inundando a cama e a camarata de vidros.
Estava
também a dormir na sua cama do lado oposto da camarata o Joaquim
Manuel – o “nossa senhora” de alcunha – que hoje é utente da Anta na Beirã.
Saímos para o corredor atarantados e sem perceber o que se estava a passar
quando o Daniel, um caboverdeano nosso camarada na mina que era manobrador de
guincho na nossa equipa, amigo e muitíssimo boa pessoa, apercebendo-se que
estávamos ali os dois sozinhos, nos gritou: - Fujam daqui! Venham comigo… E
furtivamente por entre os arbustos da encosta sobranceira aos dormitórios conduziu-nos
ao bairro mineiro onde nos deixou pouco depois em segurança.
Nunca
mais vi esse grande e generoso amigo, porém também nunca mais o esqueci como é
óbvio. E só já no bairro entre os nossos conterrâneos nos apercebemos da dimensão do problema. Estava
tudo em pé de guerra. Os mineiros brancos já tinham morto à pancada dois caboverdeanos. Veio a GNR e foi chamada até a tropa de Castelo Branco para
apaziguar tudo aquilo. Ninguém entrou na mina porque os cabecilhas daquele
autentico motim exigiam que nenhum branco entrasse de turno enquanto “os pretos” não
fossem todos expulsos da empresa.
Nunca tinha imaginado nada assim. Racismo, xenofobia, preconceito feroz, ao vivo e a cores. Eu trabalhava com os caboverdeanos há anos e não tinha a menor razão de queixa, muito pelo contrário. Eram boas pessoas, uns mais que outros, tal como nós. Sentia por ali entre a comunidade local e os caboverdeanos alguns atritos às vezes, algumas bebedeiras mais chatas, algum don juan preto a querer engatar alguma cachopa branca, mas sempre sem consequências de maior.
Porém aquele incidente foi de tal ordem que a RTP noticiou, as rádios noticiaram, os
jornais também, o embaixador de Cabo Verde foi às Minas pessoalmente
inteirar-se dos factos e eu comecei a receber telegramas aflitivos de toda a
família a perguntarem se estava tudo bem comigo e a pedirem por tudo para eu
voltar para casa de vez. De facto o
ambiente entre os mineiros apaziguou mas nas semanas que se seguiram ficou no
ar um clima esquisito. A violência foi longe demais e o assassinato a sangue
frio dos dois mineiros caboverdeanos, excesso de fúria a todos os níveis
imperdoável, obviamente teve consequências criminais para alguns dos implicados
naquela barbárie sem tamanho.
E
a minha família que já não via com muito bons olhos o meu apego às Minas
aproveitou a deixa para, em uníssono, me tentarem convencer a deixar tudo
aquilo de vez. As reticências que eu tinha em voltar para a terra eram
principalmente devidas ao facto de não vislumbrar por aqui nenhum trabalho
decente porque a precaridade de emprego continuava tão acentuada como nos idos
de 75 quando tive que me ir embora, ou talvez até um pouco mais aguda, e não me
via a ficar em casa enquanto a mulher tinha que levantar-se às seis e meia da
manhã para apanhar o autocarro aos dez para as sete a caminho da Celtex onde
continuava a trabalhar...
José
Coelho in Histórias do Cota