O
Avô António Coelho
No dia 5 de Novembro do ano de 1910 no sítio
do Bom Jesus da freguesia de Santa Maria da Devesa do concelho de Castelo de
Vide nasceu o primeiro filho do casal Faustino do Nascimento Coelho e Adelina
Gargaté. Deram ao menino o nome de António Maria Coelho. Desconheço por que
motivo não lhe foi dado o apelido materno mas como naquele tempo a vida era tão
complicada e as pessoas tão pouco informadas, essas omissões eram
frequentes.
Da
infância e juventude deste rapaz pouco sei, porque ele, pessoa de poucas conversas,
raramente falava de si próprio. Tinha mais duas irmãs e um irmão: a Maria d’Alegria
Coelho, a Francisca Coelho e o mais novo de todos, o Abílio Coelho. A
mãe Adelina e minha avó paterna faleceu aos cinquenta e poucos anos com problemas cardíacos. O pai Faustino Coelho, conhecido de toda a gente, foi cantoneiro
na estrada da Póvoa e Meadas onde trabalhou diariamente quase toda a sua vida no arranjo, conservação e limpeza
das valetas, fazendo-se diariamente transportar no seu burrito. Ainda hoje é
lembrado por muitos castelovidenses. Basta falar-se no seu nome aos mais velhos
da vila.
Alguns
anos – poucos – após enviuvar, o avô Faustino Coelho juntou-se com uma senhora
também viúva da qual só sei a alcunha que era “burrica”, com a qual viveu
maritalmente muitos anos mas que não teve escrúpulos em o abandonar quando ele
ficou velho, trôpego e a necessitar de mais cuidados. Valeu-lhe o filho
António, o vosso avô, que o acolheu em sua casa – a nossa Toca – onde viveu sossegado, bem tratado e feliz. Desde que veio morar connosco repartíamos o meu quarto até ele falecer poucos anos depois numa noite de Natal.
O
avô António Coelho veio trabalhar para estas bandas da Beirã em meados dos anos 40 quando conheceu a minha mãe com quem se
juntou e mais tarde casou e tiveram quatro filhos. As vossas três tias e eu. A sua irmã Maria d’Alegria casou com um guarda-fiscal de seu nome Ciro Bento da Silva
e foram pais de dois filhos, o Joaquim e a Antonieta. Residiam em Lisboa na
Rua das Escolas Gerais em plena Alfama. Muitas vezes lá fui acolhido com carinho nas minhas andanças pela capital quando estive na tropa, mas não só. Seguia-se
a irmã Francisca Coelho que demandou a terras de além-mar com o marido Pedro
Maniés e os três filhos, a Beatriz, de quem o avô era padrinho, o Abílio e o
Augusto. Todos residiram em Luanda até à independência daquela antiga colónia portuguesa, altura em que regressaram a Castelo de Vide. O irmão mais novo do avô, o Abílio Coelho, emigrou para o Brasil
acompanhado da esposa Ana Alvarrão e do filho Francisco e por lá se estabeleceu
como comerciante de secos e molhados – nunca soube que produtos se incluiriam
nessa categoria comercial – na cidade de Maringá no Estado do Paraná onde veio
a falecer e onde se encontra sepultado.
O
vosso avô António Coelho doutorou-se com distinção em duas Artes, na Faculdade da Vida: A de cabouqueiro e a de
hortelão. A primeira foi aquela que exerceu na maior parte da sua existência como
subempreiteiro de empresas do concelho de Marvão, mormente a do senhor
engenheiro Ventura do Porto de Espada, embora tivesse participado também, na
sua juventude, na grande obra de construção do Ramal de Cáceres entre as estações de Castelo
de Vide e Beirã pois ouvi-o referir-se à montagem da grande ponte ferroviária da
Ribeira David toda ela feita em grandes blocos de granito muitos dos quais ele
rachou e sobre os quais assenta a gigantesca estrutura de ferro que suporta a
via férrea.
Não
havia cancho, por maior que fosse, que o intimidasse. De broca manual e com
dois camaradas marteleiros um de cada lado a martelarem com toda a sua força uma
broca de aço de ponta em diamante que ele sabiamente ia rolando com as mãos e
com uma tremenda audácia, enquanto os dois martelões, de oito quilos cada um, subiam e
desciam batendo sincronizadamente, à vez e sem falhar, sobre a cabeça da broca mesmo em
frente do seu rosto. Ainda hoje sinto admiração na confiança absoluta que
tinham uns nos outros, aquela equipa de verdadeiros mestres. Que certeza! E se
um dos marteleiros falhasse o alvo e o atingisse com o pesado martelão? Era com certeza morte certa. Mas
não. Pareciam máquinas de precisão sem nunca falharem a broca continuamente manipulada
pelo chefe. Não era serviço para principiantes. Direi mesmo que não era serviço
para qualquer um.
Passadas
duas ou três horas de cansativo exercício, assim que se atingia a
profundidade considerada suficiente, o avô Coelho, o homem sem medo de nada e que estava tecnicamente preparado para manipular explosivos de
pedreira, atacava os furos com pólvora seca ou cartuchos de dinamite depois de lhes ter introduzido as respetivas escorvas com o estupim ou rastilho, cobriam tudo cuidadosamente com feixes de giesta para evitar projeção de pedras para longe que pudessem ferir alguém nas redondezas e a
seguir acendia um a um os rastilhos, fazendo explodir, uma atrás da outra, todas as cargas que assim fracionavam os enormes maciços graníticos em pedaços menores para posterior elaboração do “rachão” para os alicerces de estradas ou de
obras públicas, para “quatar” também calçada de rua, sendo as lascas mais pequenas depois reaproveitadas para transformar em brita.
Por ser o mais leve e porque eu tinha
só 13/14/15 anos, era esse o meu serviço de cabouqueiro-principiante na
pedreira. Juntava as lascas que saltavam do rachão e da calçada e ia fazendo montes
para depois partir em quadradinhos mais pequenos, a brita, com uma pequena marreta do tamanho de um punho mas cujo cabo de castanho me “insava” (enchia) as
palmas das mãos de bolhas que doíam com’á puta que as pariu. E os mestres,
rindo das minhas caretas de desconforto, aconselhavam-me, brincalhões: - Mija-lhe para cima Zéi que o mijo
desinfeta-te as “empolas” e curte-te a palma das mãos!
Ai os trastes... Mas era tudo na boa amizade e confiança, mesmo.
Os
atuais canchos em frente da Escola da Beirã eram um cerro de calhaus
gigantescos que o avô Coelho com os seus camaradas do costume – estou a
lembrar-me por exemplo do tio António Viegas, do irmão dele o tio José Viegas,
do tio João Alexandre e de muitos outros que vinham dos Barretos e dos
Cabeçudos – conseguiram reduzir a metade. O anterior maciço granítico foi desbastado à força de explosivos e de martelões muitas vezes com o avô Coelho pendurado por cordas, qual trapezista, até o deixarem reduzido à sua atual dimensão. Essa dura empreitada foi levada a cabo para se poder rasgar a toda a
sua largura a Avenida Dr António Matos Magalhães, vulgo rua da escola. Também
a rua traseira que desemboca no Largo da Fontee e precisamente onde hoje mora a tia
Maria Júlia era um enorme e arredondado cancho que formava uma passagem
estreitinha. O artífice da pedra bruta mestre Coelho, esmigalhou-o todo.
Fê-lo em pedaços para dar lugar à bela e larga rua Miguel Barcelos Maia ali existente desde então.
Também quase todas as pedras das calçadas da Beirã, com exceção das de
paralelos em granito azul, foram obra do avô António Coelho e dos seus
companheiros de profissão que na pedreira da Broca esquartejaram os calhaus até
os reduzirem àquilo que nós pisamos agora todos os dias. E o “enroncamento”
(alicerce) para pavimentação de estradas do concelho de Marvão, como, por exemplo, a
da Herdade dos Pombais, a da Herdade do Pereiro até à ponte do ribeiro do Vale
do Cano, a dos Barretos até ao partir dos termos com Castelo de Vide, guardam
,todas elas, muitas gotinhas de suor desses valentes parte-pedras
de quem já ninguém se lembra, mas que foram os obreiros e mestres de muito do património
público por aí existente.
Era
ainda também exímio o avô Coelho na abertura de poços para rega de hortas e
quintais. Muitos deles, nestes nossos solos rochosos, eram abertos só à força
de explosivos, com pá, picareta e uma roldana de madeira com oito braços chamada "sarilho", à volta da qual enrolava uma grossa corda atada na ponta a uma cuba também de madeira que servia para retirar o entulho à medida que o poço ia afundando. Só trabalho braçal, porque nesse tempo não
havia a maquinaria que há agora. Eu próprio trabalhei com ele na abertura de pelo
menos dois desses poços, que me lembre. Um na Beirã que é o poço do quintal do senhor Luís
Curinha, e um outro, numa várzea perto do Monte da Torre, este por conta de um senhor
que já faleceu, o tio Chico Couzinho, grande amigo meu desde que nasci.
Na horta, então, mais que doutor, o avô António Coelho era Mestre. Das suas mãos saíam belgas de tudo. Feijão, batata,
tomate, pimentos, beringelas, repolhos, couves, nabiças, melões, melancias, cebolas, alhos, espargos, morangos. Um sem-fim de mimos que pareciam crescer e frutificar só
com o olhar dele. Era magnífico. Na nossa casa podia faltar muitas vezes o
dinheiro para roupas ou sapatos novos mas nunca faltou o que meter na panela da
sopa porque ao fim de cada verão a despensa parecia um celeiro onde havia de
tudo um pouco. E todas as donas de casa da aldeia lhe
compravam também legumes diversos, melancias e melões. Tudo aquilo sei na arte de
hortar aprendi com ele. Mas nem lhe chego aos calcanhares, obviamente. Contudo e passados
tantos anos depois de ele ter partido para sempre, continuo atento aos seus ensinamentos e não há
dia nenhum que não me lembre dele com saudade.
A
terminar por hoje que já vai longa a epístola, resta-me referir-vos que, como
ninguém nasce perfeito, tinha também um senão o avô António Coelho. Gostava do seu
copito. De vinho e de aguardente. Mas não tratava mal ninguém. Nunca. Pelo contrário, era ainda mais carinhoso
connosco quando estava assim já “alegrote”. Aliás, ele era uma criatura bondosa, dócil e meiga para com toda
a gente. Um tanto ou quanto mal-encarado como eu, de poucos sorrisos e ainda menos falas, mas uma doçura de pessoa. Se via algum dos filhos ralhar com os seus netos ou
dar-lhes alguma palmada por qualquer traquinice feita, ralhava logo indignado: - Nã batas no cachopinho, porra! Anda cá filho! Anda
cá ô vô…
Foi,
sem sombra de dúvida, o melhor pai e avô deste mundo…
José
Coelho In Histórias do Cota