quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Os pais são (quase sempre) o espelho dos filhos


O meu desporto favorito foi sempre o de caminhar. Desde menino. Talvez porque os meus pais nunca tiveram possibilidades para me comprarem nem uma bicicleta, quanto mais uma motorizada como tinham os outros rapazes da minha idade. Nesse tempo os carros por estas bandas eram raros, coisa de ricos. Ia por isso mesmo para todo o lado umas vezes a pé e outras vezes andando. Não tinha outro remédio. Obviamente também para o trabalho ainda que algumas vezes ele fosse a muitos quilómetros de distância.
Da Beirã para o Porto de Espada - 15 km para cada lado diariamente - aquando do enrroncamento (alicerce) da estrada municipal que liga atualmente a aldeia dos Galegos ao Porto da Espada construída na década de 60, obra em que o meu pai foi um dos subempreiteiros a fazer o rachão e a brita por conta do engenheiro Ventura. O mesmo aconteceu depois da Beirã para a Portagem nas margens do Sever onde andámos vários meses também a fazer as fundações e implementação dos alicerces daquela que é desde então a enorme e fresca piscina natural, no leito do rio.
Saíamos de casa às cinco da manhã calcorreando os velhos trilhos da serra para podermos estar no local de trabalho às oito. Regressávamos pelo mesmo caminho para outras três horas de caminhada no fim de cada jornada de oito duras horas de pá e pica nas mãos. Mas não por estrada. Havia veredas e atalhos um pouco por toda a parte e o percurso fazia-se maioritariamente por tapadas, canchos e castinçais. Só não sei muito bem se isso encurtava o nosso caminho ou se ainda nos cansava mais por termos de subir e descer tantas pedras e saltar tantas paredes. De vez em quando, nos troços em que tínhamos mesmo de caminhar pelo alcatrão, lá passava na sua carroça algum conhecido que nos convidava (ou não) a subir. Era sorte rara, mas quando acontecia, que bem sabia podermos descansar um pouco as pernas e os pés.
Assim me fiz homem atrás do meu pai com quem trabalhei quase sempre desde que saí da escola até ir voluntário para a tropa. Foi um tempo duro. Muito duro. Mas não raro sinto saudades desse tempo e dureza. Éramos tão mais felizes naquela simplicidade de vida. Não havia cansaço que conseguisse tirar-nos o riso da boca. E o meu pai já ia avançado nos cinquentas, dado que quando eu nasci já ele tinha quarenta. Nunca mais voltaríamos a trabalhar juntos porque quando regressei da guerra o meu velho e querido companheiro de tantas jornadas já estava já na reforma.
Habituei-me assim por força das circunstâncias a não ter medo das distâncias. Fosse para ir às festas do São Marcos em Santo António das Areias, à feira do São Lourenço de Castelo de Vide ou a algum bailarico pelas redondezas, onde, como todos os rapazes do meu tempo, fui sempre arranjando algum namorico. Vezes houve em que a nova namorada morava numa aldeia ou lugar mais isolado e distante. Lá tinha eu que ir a meio da tarde nos domingos ter com ela para namorar, regressando noite adentro pelas veredas dos contrabandistas que eu conhecia tão bem. Fosse em noites enluaradas de verão ou naquelas mais escuras e tempestuosas do inverno nunca o tempo, a distância, ou os locais ermos por onde tinha de passar, me intimidaram.
Fui inquestionavelmente um rapazito e depois um adolescente alegre e feliz. Nunca me senti inferiorizado por ser o único moço da aldeia que não tinha bicicleta nem motorizada. Percebia que o orçamento da família era magro e por isso a prioridade tinha de ser a comida para a mesa, os trapinhos para vestir e os sapatos para calçar das seis alminhas que morávamos sob as mesmas telhas. O meu coração aceitava sem qualquer dificuldade essas limitações. E na minha cabeça ficou sempre tudo muito bem resolvido, sem queixumes, sem problemas existenciais ou complexos de inferioridade.
Os meus amigos juntavam-se para petiscar e beberem uns copos aos domingos pelas tascas da aldeia e arredores mas eu não podia ir. Preferia que as minhas irmãs tivessem o que lhes fazia falta. Já bastava, mesmo assim, às vezes ser tão pouco. Pegava por isso num livro qualquer que tivesse a jeito e ia procurar a sombra de um sobreiro ou de um cancho para o ler tranquilamente. Tenho a absoluta certeza que tudo isso devo à impecável estrutura moral e integridade dos meus progenitores que souberam ensinar-me que devemos procurar ser felizes com aquilo que podemos ter e sem invejar o que têm os outros.
Guardo no coração e pratico no dia a dia até hoje tão fecundos ensinamentos que procurei também incansavelmente transmitir aos meus filhos, do mesmo modo que os meus pais me ensinaram tudo o que a eles foi também ensinado pelos meus santos avós. Sem falsas modéstias e com enormíssimo orgulho sei e tenho a certeza absoluta que fui muito bem-sucedido…