sábado, 7 de dezembro de 2024

Natal “de patrulha” (porque sim)


Foi em meados da década de 80 que começou a ser dada aos militares da GNR dispensa de 50% do efetivo no Natal, enquanto os outros 50% eram dispensados no Ano Novo. Essa dispensa foi a melhor coisa que aconteceu aos militares da guarda num período de muitas décadas porquanto era de todo impensável programar uma consoada ou um fim de ano em família por causa da escala do serviço, que, pelo menos por estas bandas, só era afixada na véspera e sem qualquer facilitismo por parte dos então "mandantes" de posto que nessas datas ainda se deleitavam mais em fazer render a sua autoridade e o pessoal tinha de esperar para saber cada um o seu serviço só à última hora.

Uns valentões, aqueles graduados que eram denominados em surdina por “generais de província”. Felizmente que, ao ser concedida aquela preciosa dispensa, foram simultaneamente divulgadas por escrito as instruções para a sua aplicação, evitando assim que pudesse continuar a haver a tal manipulação da escala de serviço pelos "mandantes" que beneficiavam sempre os afilhados em prejuízo dos que não o eram.

Nesses termos, logo no início de dezembro era dada ao efetivo de cada posto a hipótese de escolha, porque obviamente havia os que queriam o Natal e os que preferiam o Ano Novo. Se o pessoal se entendia entre si, eram feitas as listas das dispensas com os 50% de cada período para serem enviadas ao escalão superior para registo. Se o pessoal não se entendia, procedia-se a um sorteio isento e fidedigno e ponto final. 

Calhava a quem calhava e não havia mais espiga.

Foi por essa época que começaram também as operações “Natal Seguro” que tinham inicio a 22 de dezembro e se prolongavam até 8 de janeiro programadas a nível nacional para fiscalização dos itinerários principais de cada região. Essa nova missão obrigava a manter patrulhas na estrada quase em permanência. Eu tinha o costume de na noite de Natal escalar o serviço por forma a que as patrulhas regressassem no máximo até às vinte horas, interrompendo as atividades operacionais o tempo suficiente para que o pessoal que não estava de serviço interno pudesse ir consoar com a família. Até porque, a partir do anoitecer, em qualquer vila ou aldeia do interior, as ruas, estradas e caminhos ficam por norma completamente vazios de gente nessa noite pois todo o comercio incluindo cafés e bares encerravam às dezanove.

Foi num desses natais que um senhor oficial comandante entendeu que deveria estar toda a noite sem qualquer interrupção, algum pessoal de patrulha na rua. O quero-posso-e-mando que naquele tempo existia principalmente em pessoas que se julgavam todo-poderosas só porque sobre os seus ombros ostentavam galões dourados.

Em vão tentei explicar o quanto era desnecessária e inútil tal determinação na medida em que não iria haver ninguém nas ruas nem a circular nas estradas durante aquele par de horas da Consoada. Consegui com isso que me respondesse que quem mandava era ele e ponto final. Ainda sugeri, tendo em conta a escassez de pessoal em virtude de estar no posto apenas 50% do efetivo, que ele nos desse também uma mãozinha e viesse conosco para poder assim certificar-se pessoalmente o quanto eram verdadeiros os meus argumentos, mas não obtive qualquer resposta.

Assim foi determinado, assim se cumpriu. 

Mas à minha maneira. 

Ainda que sem necessitar de atirar com isso à cara de ninguém, eu também estava formalmente investido no cargo de Comandante do Posto e por isso também mandava ali alguma coisa. Em vez de consoar com a minha mulher e com os meus filhos na nossa casa, convidei as mulheres e os filhos dos militares de serviço no posto incluindo a minha, e foram elas lá preparar a ceia de Natal para todos os guardas ali de serviço. 

E com tudo a preceito.

Escalei as patrulhas para regressarem ao posto até às 20 horas como sempre se fazia nessa noite e mandei os guardas para suas casas consoar com as famílias. De “patrulha” no seguimento das instruções que me tinham sido dadas, fiquei apenas eu com o motorista do jipe e que, "por acaso" era um militar que ficara sozinho em Nisa por ter enviado a sua família para a terra natal onde ele iria depois ter no Ano Novo.

Circulámos inutilmente pelas ruas de Nisa, Monte Claro, Arez, Velada, Arneiro, Pé da Serra e subúrbios vazios de qualquer movimento naquela gélida noite até que do posto nos chamaram via rádio porque a ceia de consoada estava pronta. Estacionámos a viatura à porta do quartel como se fazia sempre no decorrer das patrulhas e fomos consoar o bacalhau na companhia dos plantões, mulheres e filhos. 

Foi uma consoada absolutamente sui generis na sala de convívio do posto. Ceámos em paz e confraternizámos um pouco, mas não descurámos o facto de estarmos “de patrulha”. Por isso quando me pareceu que eram horas de continuar, deixámos as famílias reunidas à volta da lareira do posto e voltámos ao giro.

Esperei deliberadamente pela meia-noite nas cercanias da residência do digníssimo comandante e assim que ouvi a primeira das doze badaladas fui tocar a campainha da sua porta. No momento seguinte apareceu ele acompanhado de uma baforada de ar morno e confortável mal a porta abriu em absoluto contraste com o ar gélido da rua.

Olhou-me intrigado e perguntou:

- Tu por aqui?

- Sim, meu comandante. Venho desejar-lhe feliz Natal mas também para o certificar que, conforme “mandou”, cá andamos a patrulhar as ruas e estradas desertas.

Sem hesitar, atirou:

- Mas eu não te mandei ir a ti…

- Pois não, respondi. Mas tendo em conta o que me foi ensinado, nós, comandantes, temos o indissociável dever de ser e dar o exemplo aos nossos subordinados! E é por isso que cá ando. Mas com sua licença uma vez que já lhe desejei bom Natal, só me resta desejar-lhe também continuação de boa noite e boas festas extensivos à sua excelentíssima família.

No dia seguinte não o vi porque era dia de Natal e ele não foi ao gabinete. Porém, quando nos vimos depois daquela "visita natalícia" à meia noite que eu deliberadamente lhe fiz, olhou-me fixamente e murmurou para só eu poder ouvir:

- Coelho! Tu és fo*ido…

 Nem lhe dei troco!

 Para quê?


José Coelho in Histórias do Cota