Gosto de me levantar com o sol porque tenho o privilégio
de morar ao cimo da mais alta colina da aldeia e a minha casa concebida com
mestria pelo meu pai permite que esteja simultaneamente dentro da povoação e no
meio do campo. Explico porquê. As traseiras são voltadas para o nascente. A
parede do quintal divide a minha propriedade de uma rústica paisagem com
princípio na Tapada da Rabela e continua depois, tapada após tapada até à
fronteira do rio Sever e Espanha adentro até à linha do horizonte lá muito,
muito longe. Já no lado oposto, a frontaria da casa, voltada ao poente,
confronta com a urbanizada Rua Fernando Namora, em absoluto contraste com o
outro lado.
Assim, se saio pela porta da frente, fico no meio da aldeia. Se saio pela porta do quintal, estou no meio do campo. Para completar este cenário único, sou brindado cada manhã com a ímpar suavidade dos tons laranja que o sol projeta no céu a elevar-se por detrás dos penedos da Anta, para lá da Murta, acompanhado pelo musical dlim-dlom-dlem de melodiosos chocalhos e campainhas do gado que pastoreia pelos campos em redor da aldeia e que a essa hora parecem ainda mais melodiosos. Como se não fosse já suficientemente belo, há também o chilreio da passarada no arvoredo, enquanto um bando de rolas turcas todos os dias vem pousar na vedação do quintal à procura das migalhas do pão que vai nas toalhas de mesa que a dona da casa sacode sempre para a terra, ou também para matarem a sede a beber nos baldes de água fresca que diariamente para esse efeito coloco à sombra das árvores e da casa, durante todo o verão.
Não há dinheiro que pague estes momentos. Quando ouço falar de paz para aqui, paz para acolá, penso de mim para mim que tenho a sorte de conhecer e cumprimentar na primeira pessoa, diariamente, essa falada senhora. A dona Paz. Vive e reina por aqui em cada madrugada, em cada nascer e por do sol. Se quiserem conhecê-la basta virem até cá e deixarem que ela se instale no vosso coração, uma vez que não é visível aos nossos olhos e apenas conseguimos senti-la no nosso íntimo. Mas há outros lugares onde a podemos encontrar para além do meu quintal, da minha aldeia, dos bonitos campos cheios de boas lembranças e vestígios milenares por onde caminho com frequência. Por exemplo, no castelo de Marvão. Experimentem ir lá sem pressa e esperem pelo por do sol. Ficarão, posso assegurar-vos, absolutamente deslumbrados.
Passe a publicidade à Vila Medieval mais bonita de Portugal, vou voltar de novo para o melhor dos meus dois mundos que é o privilégio de viver no meio da aldeia e simultaneamente no meio do campo desde que nasci. Se das janelas do primeiro andar voltadas ao nascente me é permitido vislumbrar mais de metade da minha freguesia até à fronteira com Espanha assim como a sua paisagem de sonho, também das janelas voltadas ao poente e para o meio da aldeia a paisagem não é menos magnífica. Um cuidado laranjal mesmo em frente faz o outro lado da rua. Imaginem o perfume que dali se desprende no início da primavera. É algo único e indescritível. Sublime e envolvente o aroma que exala de milhares de alvas flores que se espalha por toda a rua e nos faz sentir no paraíso, pois se ele existe, só pode ser idêntico a isto.
Mas não só.
Mais uma casa a seguir à minha, e, poucos metros acima, o elegante lavadouro público ainda em plenas funções apesar de já pouco utilizado, porque o tempo foi levando as antigas lavadeiras e não voltou a trazer outras. É o último edifício do lado direito da "minha" Rua Fernando Namora que entronca a seguir na Avenida Doutor António de Matos Magalhães onde já não mora também quase ninguém, apesar de as casas continuarem muito cuidadas. Essa é a pior parte deste meu mundo de sonho. O sucessivo fecho de portas e janelas que não voltam a abrir-se diariamente, onde já nunca se vê qualquer luz à noite.
Mas hoje não quero falar nisso. Num discurso oposto ao que escrevo normalmente sobre o quanto me dói a desertificação que reina por cá, prefiro hoje agarrar-me ao lado bom e deixar no vosso e no meu espírito quanto vale a pena – ainda – acordar cada manhã num lugar assim: Na minha casa e na minha Beirã...
José Coelho - 04.10.2017