quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Não haverá quem escreva


O dia a terminar, visto da minha casa, é um quadro digno de ser reproduzido numa tela por qualquer pintor. Todos os dias, seja verão ou inverno. Neste tempo quente o sol começa por deixar o vale onde fica a Estação do Caminho de Ferro e mais além o ribeiro da Cavalinha. Depois vai banhando de ouro a Murta, os cumes graníticos da Anta e da Cavalinha de Cima, para se despedir um pouco mais acima na zona da Meirinha. Quando desaparece completamente no horizonte logo surge o cinzento escuro do anoitecer vindo da Herdade dos Pombais, onde parece viver escondido.
No inverno dá-se precisamente o inverso. Os cumes que agora se despedem do dia dourados pelo sol poente, coroam-se a partir do outono com uma neblina cinzenta e húmida produzida pelo frio do anoitecer e vai lentamente descendo pela paisagem até ao vale, transmitindo-lhe um certo ar de mistério. Só falta mesmo vislumbrar-se no meio dela El'Rei D. Sebastião.
Esta região raiana pedregosa e inóspita que pouco mudou com o passar dos séculos, ou até mesmo dos milénios, conforme testemunham os inúmeros vestígios arqueológicos existentes por toda a parte, é sem dúvida o meu paraíso na terra. Aqui encontrei sempre a paz e a tranquilidade necessárias ao meu equilíbrio físico e emocional, por maiores que fossem os desassossegos.
Trago hoje no peito uma nova dor que não é física mas que incomoda tanto ou mais do que aquelas que passam com um analgésico. É esta dor de ver a minha amada terra já sem quase ninguém. Tudo aquilo que fez parte da minha vida até aos sessenta anos está a desaparecer em passo acelerado. E sei que é absolutamente irreversível. Há dias comentei tristemente com a minha companheira:
- Já nem chocalhos de gado se vão ouvindo Maria!
Aposto que se os nossos antepassados cá voltassem não iam gostar de ver o lugar onde viveram e foram felizes, assim votado ao abandono. Não vem longe o tempo em que as ruas e quintais irão ser invadidos por mato e silvas e as casas transformar-se em montões de ruínas como é já a linda Herdade do Pereiro, o Ramal de Cáceres e muitos caminhos de acesso às propriedades.
Não vem longe o tempo em que estes pequenos povoados da raia irão juntar-se aos vestígios arqueológicos milenares para serem parte do seu conjunto. Como é possível que em apenas três ou quatro décadas se tenha desfeito um mundo que se construiu ao longo de mais de século e meio?
A História o dirá e julgará.
Ou talvez não, porque não vai haver quem a escreva.
(Texto e foto)