Não vou mencionar o seu nome. É um velho e estimado amigo desde agosto de
1985. Já foi por isso e como usa dizer-se por estas bandas, há um bom par de
anos. Eu tinha acabado de ser promovido a sargento e colocado por motivo da
promoção, no mesmo local onde ele já prestava serviço. A profissão era a mesma,
só as responsabilidades de um e de outro eram um bocadinho diferentes. Mas o
objetivo profissional era também o mesmo. Nos oito anos seguintes formei com ele e com
os outros 35 camaradas do efetivo, uma equipa de trabalho excelente onde a
motivação e coesão entre todos deram azo a muitos sucessos profissionais na
área sob a nossa alçada.
Mal "aterrei" na nova colocação e por ser o mais maçarico na classe de sargentos, nem tive tempo de aquecer o lugar porque fui imediatamente escalado pelo comando para marchar em reforço eventual às praias algarvias acompanhado por duas dezenas e meia de subordinados oriundos dos outros postos da subunidade que me competia comandar naquela missão. Entre eles e por mera casualidade marchou comigo na qualidade de condutor da minha viatura, este velho e estimado amigo que hoje quero enaltecer. Alvor que ainda não tinha forças de segurança permanentes, era o nosso destino. Lá chegámos por volta do meio dia depois de uma cansativa viagem de trezentos quilómetros nos velhos Land Rover com aquelas abafadas coberturas de lona e plástico, duros como pedras, nos primeiros dias daquele agosto.
A receber-nos estava o presidente da Junta de Freguesia para nos indicar a Escola Primária mesmo no centro da vila onde iríamos ficar instalados para ali "montarmos" o primeiro Posto Eventual da GNR do Alvor. Fomos pois os pioneiros, a primeiríssima força de segurança a assentar arraiais naquela emblemática vila piscatória, entretanto já promovida a cidade. Eu não conhecia nenhum dos elementos que levava sob o meu controlo. Era muito novo, quer na idade, quer no desempenho das funções. Porém, a vontade de assumir sem hesitar qualquer desafio que surgisse naquilo que eram as minhas responsabilidades, deu-me o ânimo e a força mais que suficientes para de imediato meter mãos à obra. Não tive qualquer dificuldade porque a excelente "equipa" que me coadjuvava, sendo cada um de seu lado, "funcionava" harmoniosamente como se fôssemos um só. Não sei se por ter sido a minha primeira missão como "chefe" de equipa, sei que ficou gravada no meu íntimo como uma das melhores recordações da minha vida profissional.
E foi em Alvor, muito longe do nosso ambiente habitual e das nossas famílias, que tive a sorte e o privilégio de iniciar esta amizade que dura até hoje quarenta anos depois, com a pessoa mais íntegra, leal, frontal, sensível e honesta que conheci em toda a minha vida. Nos poucos momentos disponíveis entre o corre corre de um lado para o outro numa vila a abarrotar de turistas e de problemas para resolver, talvez também por sermos camaradas do mesmo posto, começámos espontaneamente a falar das nossas vidas e famílias um com o outro. Eu, porque queria saber coisas sobre Nisa, as gentes e os camaradas que iriam ser o meu dia a dia quando regressássemos a casa. Ele, talvez porque se sentisse um pouco sozinho no meio de camaradas que não conhecia de lado nenhum e com quem não tinha a menor afinidade.
Fosse pelo que fosse estabeleceu-se entre nós alguma empatia e confiança, se não mesmo uma já uma sincera amizade. Dali até eu ficar a saber de onde ele era, que tinha uma filha linda que adorava e muitas outras confidências suas, foi um pequeno passo. Obviamente também eu retribuí com as minhas confidências familiares e quando regressámos às nossas normais funções, a confiança e a amizade mútuas foram-se consolidando de tal modo que ao fim de poucos meses as nossas esposas e filhos se tornaram também bons amigos passando a ser normais os convívios familiares ora em nossa casa, ora em casa deles. Mas o mais gratificante para mim foi o facto de nunca este incomparável amigo se ter tentado aproveitar da situação em seu benefício. Muito pelo contrário. Se alguém pecou por excesso de confiança, fui eu.
Não o fiz por mal, mas sei que fiz.
Por exemplo naquele dia em que lhe sugeri que fosse fazer uma guarda de honra no lugar do camarada a quem calhava o serviço por ordem de escala mas que queria ir a Lisboa ver um jogo do seu Sporting e por isso me pediu se não haveria alguém que quisesse trocar. E eu, irrefletidamente, sugeri-lhe:
- Podias ir tu depois quando te calhar a ti, vai ele no teu lugar!
Sério e íntegro até à medula, olhou-me surpreendido e com a frontalidade que todos sempre lhe conheceram respondeu decididamente:
- Não meu sargento, não acho que deva ir eu. O camarada não está doente e não é justo que eu vá fazer um serviço duro que lhe pertence a ele, para ele ir ver um jogo de futebol!
A lógica do argumento deixou-me embaraçado e não pude evitar dar-lhe razão. Mas fiquei ligeiramente melindrado com a recusa como se o proveito ou o prejuízo fossem meus. Porém, com tempo e reflexão percebi que o erro havia mesmo sido meu. E ainda hoje agradeço aquela frontalidade sem medo muito própria dos homens com carácter e integridade moral como ele sempre foi, é, e irá sê-lo, até ao fim dos seus dias.
Prova do que acabei de afirmar foi a atitude deste amigo invulgarmente leal na tarde do dia em que eu fui promovido ao posto seguinte. Já nem era sequer seu "chefe" por ter pedido transferência para mais perto da terra natal e da restante família. No decorrer desse ano fui nomeado para o curso de promoção ao posto seguinte e rumei a Mafra onde o frequentei e concluí com sucesso. Dali a poucas semanas veio a promoção, numa tarde em que havia instrução de tiro na carreira de tiro da subunidade e as tropas se reuniam em redor dos jipes para o regresso cada um ao seu posto de origem. Como os rádios dos jipes ficam permanentemente ligados, eis que no sitrep diário o operador radio transmitia: "promovido ao posto de sargento-ajudante o primeiro sargento Coelho contando a antiguidade..."
Do meio do ajuntamento de tropas ouviu-se uma voz depreciativa da minha pessoa, provavelmente por alguma razão que eu teria causado pois nem que um chefe se pinte, nunca conseguirá agradar a todos porque em todos os rebanhos há sempre alguma ovelha ronhosa. Não sei e nem quero saber porque assentou mal àquele fulano a minha normal promoção ao posto seguinte.
Ainda a "boca" depreciativa da minha pessoa fazia eco e já o meu leal amigo, indignado com o que ouvira, estava diante do gajo para lhe dizer cara a cara:
- Na minha presença não voltas a insultar esse homem estando ele ausente sem se poder defender!
O mal-falante, por sinal mais graduado que o meu leal amigo, retorquiu meio atarantado:
- Isso! Defende o teu padrinho...
E o meu amigo respondeu no mesmo tom indignado:
- Não, não é meu padrinho! Mas é meu amigo, como eu sou amigo dele. E não é de homem que o insultes nas suas costas quando na frente dele lhe lambias as botas. Ficas já avisado que ele vai ficar a saber o que tu disseste, porque sou eu que o vou informar...
- Mas não informou.
- Nunca me falou em tal coisa.
- Ainda hoje não sabe que eu sei.
Quem me contou algumas semanas depois essa história foi um dos subordinados que eu comandava e tinha sido nomeado também para ir fazer tiro naquela tarde. Assistiu a tudo e ficou francamente admirado quer com a atitude honesta do meu leal amigo que não se intimidou com a patente do outro e lhe meteu o dedo no nariz, quer com a indiscutível amizade para comigo assim provada, mais de um ano depois de eu ter deixado de ser seu chefe.
Não digo o seu nome. Não por que ele não mereça, muito pelo contrário, mas por respeitar o seu direito à privacidade, como ele sempre me respeitou a mim. Tive a honra e o privilégio de estar presente no casamento da filha que ele adora e merecidamente o adora também a ele, tal como ele me deu a honra e o privilégio de festejar comigo o casamento dos meus dois filhos.
O tempo passou. Muito tempo mesmo. Décadas já. Mas a nossa amizade permanece intacta. Intocável. Rara. Não existem no mundo muitas pessoas assim. Infelizmente. Obrigado meu leal amigo por tudo o que me ensinaste. Se sou hoje uma pessoa melhor, aprendi também contigo a sê-la.
José Coelho