Cachopo ainda mas já Primeiro Cabo na guerra de Angola
A gente muda. Muda tanto! Mas não mudamos porque queremos. É a Vida que nos obriga a mudar. Os tombos que damos, os abanões que levamos, as certezas que deixamos de ter, as injustiças e as deslealdades oriundas tantas vezes de pessoas insuspeitas, a perda e ausência daqueles que amávamos, tudo isso e muito mais faz com que as nossas convicções oscilem, abram brechas irreparáveis ou desabem de vez. E das duas uma. Ou tudo aquilo que nos feriu, nos sarou, nos solidificou, tornou mais forte a nossa estrutura física e moral, nos fez ficar mais resistentes aos infortúnios, mais imunes ao desassossego e mais seguros de nós mesmos, ou estilhaçou as nossas convicções em mil pedaços fragilizando-nos, transformando-nos em seres indiferentes, apáticos e conformados com a nova ordem das coisas em que acreditávamos, sem força anímica para resistir ou lutar seja pelo que for.
Na minha meninice e adolescência fui uma pessoa completamente diferente daquela que sou hoje. Até ir para a tropa fui um moço alegre e bem-disposto, sonhador e cheio de projetos. Nem a humildade do meu berço ou precaridade das minhas habilitações literárias me toldavam o pensamento ou diminuíam no coração a enorme esperança que depositava numa vida melhor e num futuro não muito distante que tencionava alcançar. Ansiava por ir à luta e batalhar pelo que queria para mim mas tinha plena consciência que havia um obstáculo incontornável a vencer para conseguir conquistar as minhas metas e objetivos. E esse obstáculo nada tinha a ver com as parcas habilitações literárias ou com a humilde condição social de que era detentor.
Chamava-se "tropa".
Em finais dos anos sessenta e com a guerra de África no seu auge, o serviço militar resolvido era meio caminho andado para novos rumos de vida e para a realização (ou não) de muitos projetos ou sonhos de qualquer jovem em idade de incorporação nas fileiras das forças armadas. Porém essa idade parecia ainda distante para mim até ao dia em que um Edital a convocar os mancebos da freguesia da Beirã que haviam sido apurados nas “sortes” no ano de 1968, para apresentarem nas unidades que a cada um era indicada, afim de darem início ao cumprimento do seu Serviço Militar Obrigatório.
O conteúdo daquele papel timbrado com o escudo da República Portuguesa exposto na vitrina da Junta de Freguesia espicaçou por completo o meu espírito aventureiro e nunca mais me deu sossego.
Sabia lá eu então provinciano ingénuo do Norte-Alentejano de onde quase nunca tinha saído o que era a tropa, o que era o mundo, o que era a guerra. Mas decidi que estava na hora de vencer o intransponível obstáculo que se agigantava entre mim e o meu futuro, como também de todos os mancebos da minha geração. Porque cada um sabia de si, na parte que me dizia respeito eu estava absolutamente determinado a meter os pés à ribeira para resolver o assunto o quanto antes, pois naquele Edital constava também o convite e condições obrigatórias a quem estivesse interessado em requerer a sua incorporação como voluntario para cumprir antecipadamente o serviço militar em qualquer dos ramos das Forças Armadas.
Com tão só os meus sonhadores 17 anos recém cumpridos dei por mim poucos dias depois a pedir ao meu pai que me autorizasse ir voluntário para a tropa. Sim, tive de pedir-lhe, porque naquele tempo qualquer jovem só era dono do seu nariz a partir dos 21 anos. Até esse dia era menor e dependente da autorização dos progenitores para quase tudo. Depois de vencidos os protestos da tia Florinda que não compreendia nem se conformava com a maluquice do seu menino querer ir já para a tropa padecer, como se não tivesse muito tempo para isso quando chegasse a sua vez, lá levei comigo o meu pai – grande e inesquecível amigo sempre pronto a apoiar-me – a Marvão na “cámionete da carrêra” meter os tais papéis que ele teve de assinar com o dedo porque não sabia escrever, a conceder-me a sua autorização.
Estávamos em meados de 1969.
Tardou muito pouco a convocatória logo acompanhada de uma guia de marcha a mandarem-me apresentar em 22 de dezembro desse mesmo ano para ser submetido a Inspeção Médica no já extinto Regimento de Infantaria 16 em Évora. Apurado sem qualquer problema como era expectável, em maio do ano seguinte frequentei a recruta no BC8 de Elvas, seguindo-se a especialidade de transmissões no BC5 em Campolide, onde por motivo das boas notas nos testes fui promovido a 1º Cabo.
Ainda mal havia terminado a especialização quando fui mobilizado para integrar o BCAV3871 que se formou no RC3 em Estremoz e passou depois por Santa Margarida até embarcarmos num Boeing 747 a caminho da guerra em Angola com destino ao Belize e às profundezas do Maiombe no enclave de Cabinda, a floresta do povo fiote, do abacaxi doce como açúcar, do pau-que-dá-tesão, do pau preto para as mobílias caras, do petróleo da Cabinda Gulf Oil, do minimosquito miruim quase invisível à vista mas que nos picava e deixava todos cobertos de comichosas bolhas, das jiboias e jacarés, dos gorilas e saguis, do calor sufocante e do cacimbo pegajoso entre outros mimos incontáveis.
A Zona de Ação do BCav3871 no Alto Maiombe era comunicável apenas por uma estrada alcatroada recentemente inaugurada com duzentos e muitos quilómetros desde o Miconje a norte até à cidade de Cabinda a sul, toda ela bordejada de cima a baixo por aquela imponente segunda maior floresta do mundo, de mato denso e impenetrável, de árvores gigante cujas copas parecem tocar o céu, entrecortada aqui e ali por muitas e pantanosas picadas onde os Unimogs e Berliets se atascavam até à carroçaria, mas também profícua em imperceptíveis carreiros ou veredas por onde os guerrilheiros – nós chamávamos-lhes turras – do MPLA, da UPA ou da UNITA se emboscavam, se escondiam, colocavam minas e armadilhas para nos fazerem ir pelos ares ao menor descuido ou nos esperavam emboscados no mato como se nós fossemos animais de caça para abate, tornando com isso num inferno completo muitos dias das muitas semanas e dos muitos meses das nossas então jovens e inexperientes vidas.
Aquele inferno na terra mudou para sempre a maneira de ser, de estar, de ver, de encarar o mundo e a vida, do cachopo ingénuo que quis armar-se em adulto antes do tempo e para o conseguir se vestiu de soldado. Foi alto o preço pago por essa sua pressa de chegar ao futuro.
Continua, no livro Histórias do Cota
José Coelho