terça-feira, 28 de junho de 2022

Um dia mais é também um dia a menos

Sol-nascente observado da Toca dos Coelhos
Foto José Coelho

Acordei cedo como sempre. Muito cedo. A casa dos meus sonhos foi na íntegra por mim concebida cheia de janelas e com as mais amplas viradas a nascente. Por isso logo que a aurora começa a clarear por terras d’Espanha atrás da Anta e da Murta, a sua suave luminosidade filtrada pelas persianas e cortinados – associada ao cantar dos também madrugadores galos da vizinhança – fazem-me despertar. Claro que não me ponho logo a pé a essa hora, embora já não consiga dormir mais. Deixo-me ficar sossegado para não acordar a “patroa” enquanto vou apreciando o despertar de toda a natureza que rodeia estes meus domínios.

O metálico debicar dos pardais na caça aos insetos para o pequeno-almoço da sua prole no algeroz onde já uma vez construíram um monumental ninho, vingando-se talvez por eu não ter permitido que o construíssem nos tubos do motor do ar condicionado, no verão anterior. Também pelas redondezas vive há muitos anos um numeroso bando de rolas turcas que nidificam no arvoredo – o ano passado até na nossa laranjeira – e pousam nos telhados ou nas chaminés onde cantam, cantam, cantam, de manhã à noite, atentas às sementes e besouros pelo quintal, bem como aos baldes de água fresca, onde vão beber à vez.

Ah! E chegaram já também os famintos estorninhos que chiam como ratos e devoram os primeiros figos-lampos da figueira, sem os deixarem sequer amadurecer!

Longe vai o tempo em que tinha de me levantar às seis da manhã para cortar a barba, tomar duche e o pequeno-almoço antes de marchar às minhas obrigações profissionais. Muitos dias houve também que, em função das mesmas, o nascer do dia era exatamente a hora em que a minha ronda noturna terminava. Aí então, em vez de acordar, era essa a hora de deitar e dormir.

Por isso agora é o tempo de descansar e desfrutar desta paz e tranquilidade dos meus dias, naquele que para mim é também o melhor lugar do mundo. A Toca dos Coelhos. Aqui nasci, aqui passei inquestionavelmente os momentos mais doces da minha vida, aqui me despedi para sempre dos entes mais queridos, aqui tenho a grata bênção de agora envelhecer. Se não tenho uma vida perfeita, porque acho que ninguém tem, é seguramente a vida menos má que poderia ambicionar.

Os problemas – principalmente de saúde – são idênticos aos de tanta outra gente que conheço com as mesmas limitações e constrangimentos, minimizadas quanto possível, mas sempre aceites com ânimo e resignação. Queixumes não adiantam porque nada resolvem, por isso vou vivendo, desfrutando e agradecendo, um dia de cada vez. Mesmo com limitações, entendo a Vida como um dom valioso que me foi concedido e que tenho o dever de aceitar e fazer valer a pena. Até mesmo os dias mais difíceis. Nem sempre é fácil, nem sempre consigo estar alegre e bem-disposto, mas todos os dias tento superar o que me puxa para baixo, levantar a cara e enfrentar decididamente aquilo que me perturba.

O perigo que vivemos é a mais evidente prova do quão somos impotentes perante a força da natureza e que nunca saberemos do que ela é capaz para se defender de tantas agressões e nos remeter à nossa insignificância. Deveríamos ser mais cuidadosos com ela e respeitar os seus ciclos naturais, sem os corromper abusiva e constantemente. A pandemia foi uma tão contundente como letal resposta à irresponsável ousadia de o ser humano achar que pode fazer tudo, alterar tudo, substituir tudo. 

Não pode.

Andamos – acho eu – a mexer há demasiado tempo com aquilo que não devemos e a caminhar para a autodestruição. Nunca, jamais ou em tempo algum, o Homem conseguirá substituir a Natureza. Poderá imitá-la, poderá substituir alguns dos seus efeitos por outros similares, mas nunca conseguirá superá-la. E de tanto ousar, vai perder o controle e sofrer as consequências. Quiçá o Covid 19 seja apenas um começo. Sem qualquer pretensão de me julgar mais perfeito que os demais, tenho, no entanto, plena consciência que sempre a admirei e respeitei.

Sou provavelmente um dos seus mais fiéis seguidores e admiradores. Que o digam os milhares de imagens do meu acervo fotográfico onde mais de noventa por cento são a fauna, a flora, as paisagens rústicas e ambientais, o céu azul ou nublado. Para mim as cores do por do sol são a obra-prima mais incrível que se pode contemplar, a magnificência do Mundo em todo o seu esplendor.

Mas também acho imponentes as cores da aurora até o astro-rei se elevar na linha do horizonte. Curiosamente, o nascer do dia traz consigo o despertar de toda a vida sobre a terra, enquanto o por-do-sol a emudece por completo. Poucas coisas raras das que conheço, admiro mais do que a essa.

Ao acordar, tenho por hábito agradecer sempre mais esse dia de vida. E de igual modo, antes de adormecer, o dia vivido. Não o faço por beatice, mas por absoluta convicção desse dever de gratidão. Ser grato, atento e disponível, fazem, sempre fizeram, parte do meu ADN. Vivo por isso cada dia como se fosse o último, serenamente, não por ser agora muito recomendado em virtude da pandemia, mas porque sempre assim pensei e porque entendo que cada dia que amanhece e soma mais um à nossa vida, é, simultaneamente, menos um no total daqueles que temos destinados para completar o nosso ciclo terreno de vida. Essa deve ser seguramente a mais precisa e imutável equação de cada ser vivo. Nunca se esqueçam dela. E procurem ser felizes, mesmo quando for difícil alcançar o que acham ser necessário para o conseguirem.

José Coelho

Nota: Escrevi este texto em 28.06.2020 em plena crise pandémica. Ninguém imaginava que estava também iminente a guerra na Europa.