Acordei cedo como sempre.
Muito cedo. A casa dos meus sonhos foi na íntegra por mim concebida cheia de
janelas e com as mais amplas viradas a nascente. Por isso logo que a aurora
começa a clarear por terras d’Espanha atrás da Anta e da Murta, a sua suave
luminosidade filtrada pelas persianas e cortinados – associada ao cantar dos
também madrugadores galos da vizinhança – fazem-me despertar. Claro que não me
ponho logo a pé a essa hora, embora já não consiga dormir mais. Deixo-me ficar sossegado
para não acordar a “patroa” enquanto vou apreciando o despertar de toda a natureza
que rodeia estes meus domínios.
O metálico debicar dos pardais
na caça aos insetos para o pequeno-almoço da sua prole no algeroz onde já uma
vez construíram um monumental ninho, vingando-se talvez por eu não ter
permitido que o construíssem nos tubos do motor do ar condicionado, no verão anterior.
Também pelas redondezas vive há muitos anos um numeroso bando de rolas turcas que
nidificam no arvoredo – o ano passado até na nossa laranjeira – e pousam nos telhados
ou nas chaminés onde cantam, cantam, cantam, de manhã à noite, atentas às sementes
e besouros pelo quintal, bem como aos baldes de água fresca, onde vão beber
à vez.
Ah! E chegaram já também
os famintos estorninhos que chiam como ratos e devoram os primeiros figos-lampos
da figueira, sem os deixarem sequer amadurecer!
Longe vai o tempo em que
tinha de me levantar às seis da manhã para cortar a barba, tomar duche e o pequeno-almoço
antes de marchar às minhas obrigações profissionais. Muitos dias houve também que,
em função das mesmas, o nascer do dia era exatamente a hora em que a minha ronda
noturna terminava. Aí então, em vez de acordar, era essa a hora de deitar e
dormir.
Por isso agora é o tempo
de descansar e desfrutar desta paz e tranquilidade dos meus dias, naquele que
para mim é também o melhor lugar do mundo. A Toca dos Coelhos. Aqui nasci, aqui
passei inquestionavelmente os momentos mais doces da minha vida, aqui me
despedi para sempre dos entes mais queridos, aqui tenho a grata bênção de agora
envelhecer. Se não tenho uma vida perfeita, porque acho que ninguém tem, é
seguramente a vida menos má que poderia ambicionar.
Os problemas –
principalmente de saúde – são idênticos aos de tanta outra gente que conheço
com as mesmas limitações e constrangimentos, minimizadas quanto possível, mas
sempre aceites com ânimo e resignação. Queixumes não adiantam porque nada resolvem,
por isso vou vivendo, desfrutando e agradecendo, um dia de cada vez. Mesmo com limitações,
entendo a Vida como um dom valioso que me foi concedido e que tenho o dever de aceitar
e fazer valer a pena. Até mesmo os dias mais difíceis. Nem sempre é fácil, nem sempre
consigo estar alegre e bem-disposto, mas todos os dias tento superar o que me
puxa para baixo, levantar a cara e enfrentar decididamente aquilo que me
perturba.
O perigo que vivemos é a mais evidente prova do quão somos impotentes perante a força da natureza e que nunca saberemos do que ela é capaz para se defender de tantas agressões e nos remeter à nossa insignificância. Deveríamos ser mais cuidadosos com ela e respeitar os seus ciclos naturais, sem os corromper abusiva e constantemente. A pandemia foi uma tão contundente como letal resposta à irresponsável ousadia de o ser humano achar que pode fazer tudo, alterar tudo, substituir tudo.
Não pode.
Andamos – acho eu – a
mexer há demasiado tempo com aquilo que não devemos e a caminhar para a
autodestruição. Nunca, jamais ou em tempo algum, o Homem conseguirá substituir
a Natureza. Poderá imitá-la, poderá substituir alguns dos seus efeitos por
outros similares, mas nunca conseguirá superá-la. E de tanto ousar, vai perder
o controle e sofrer as consequências. Quiçá o Covid 19 seja apenas um começo. Sem
qualquer pretensão de me julgar mais perfeito que os demais, tenho, no entanto,
plena consciência que sempre a admirei e respeitei.
Sou provavelmente um dos
seus mais fiéis seguidores e admiradores. Que o digam os milhares de imagens do
meu acervo fotográfico onde mais de noventa por cento são a fauna, a flora, as paisagens
rústicas e ambientais, o céu azul ou nublado. Para mim as cores do por do sol são
a obra-prima mais incrível que se pode contemplar, a magnificência do Mundo em
todo o seu esplendor.
Mas também acho
imponentes as cores da aurora até o astro-rei se elevar na linha do horizonte.
Curiosamente, o nascer do dia traz consigo o despertar de toda a vida sobre a
terra, enquanto o por-do-sol a emudece por completo. Poucas coisas raras das que conheço, admiro mais do que a essa.
Ao acordar, tenho por hábito agradecer sempre mais esse dia de vida. E de igual modo, antes de adormecer, o dia vivido. Não o faço por beatice, mas por absoluta convicção desse dever de gratidão. Ser grato, atento e disponível, fazem, sempre fizeram, parte do meu ADN. Vivo por isso cada dia como se fosse o último, serenamente, não por ser agora muito recomendado em virtude da pandemia, mas porque sempre assim pensei e porque entendo que cada dia que amanhece e soma mais um à nossa vida, é, simultaneamente, menos um no total daqueles que temos destinados para completar o nosso ciclo terreno de vida. Essa deve ser seguramente a mais precisa e imutável equação de cada ser vivo. Nunca se esqueçam dela. E procurem ser felizes, mesmo quando for difícil alcançar o que acham ser necessário para o conseguirem.
José Coelho
Nota: Escrevi este texto em 28.06.2020 em plena crise pandémica. Ninguém imaginava que estava também iminente a guerra na Europa.