sábado, 18 de junho de 2022

Coisas qu'escrevi

Ano de 1979

Às nove horas em ponto do dia 22 de janeiro de 1979 apresentei a guia de marcha que tinha recebido dois meses antes em Lisboa a um circunspecto e mal-encarado plantão ao Posto que se encontrava num escuro gabinete logo à entrada da porta do Comando da Companhia de Portalegre onde já estavam outros camaradas “maçaricos” como eu, a efetuarem a sua apresentação.

Nunca na minha vida havia entrado num quartel da GNR e a minha primeira impressão foi de estranheza pelo ar extremamente carrancudo de todos os que se dirigiam a nós ou nos olhavam, assim como o intenso cheiro a cavalos que emanava do interior do edifício, o qual, embora muito limpo e arrumado, denotava em tudo um ar envelhecido; o edifício, as paredes, os arcos do corredor, os azulejos e até as mobílias.

- Deve ter sido um convento ou uma igreja – pensava de mim para mim, enquanto éramos encaminhados para uma pequena parada no interior do quartel.

Todo esse dia foi passado a receber o fardamento, o alojamento e instruções diversas. Quando finalmente recolhemos à caserna para dormir já o serão ia adiantado e não se ouvia um murmúrio sequer. O meu estado de espírito estava por terra, habituado ao bulício da mina, à excelente amizade e camaradagem daquela "família mineira" com quem tinha convivido até há poucos dias atrás, e, bem lá no fundo, a sombra da saudade por ter deixado tudo aquilo, perturbava-me involuntariamente, roubando-me o sono e a vontade de conversar fosse com quem fosse.

Os meus 40 camaradas de “escola” não denotavam muito mais ânimo. Calados e sorumbáticos como eu, cada um recolheu ao seu beliche em silêncio e sem denotar grande apetência para início de confianças.

A euforia da Revolução do 25 de Abril de 1974 ficara, entretanto, algures lá já muito para trás pois iam passados quase cinco anos desde a célebre “Madrugada”. Perdido por aquelas aldeias nos contrafortes da Serra da Estrela e ocupado nos meus afazeres de mineiro desde o início de 1975, nunca mais tivera qualquer contacto com as politiquices da terra ou quaisquer outras e por isso não sabia que a reforma agrária se tinha desenvolvido por todo o Alentejo durante esses anos em que estive ausente. 

Os meus conhecimentos sobre resumiam-se ao que ouvia por lá ou de vez em quando via nos noticiários da tv mas aos quais não prestava a menor atenção, pelo simples facto de “aquilo” não me dizer nada e ainda porque andava ocupado a organizar a minha vida, no meu bem pago trabalho com aquela nova "família" de extraordinários amigos que tinha encontrado, depois com o meu casamento, com o nascimento do primeiro filho, enfim, com todas as coisas normais do dia-a-dia de qualquer um. 

Por isso mesmo, a política muito sinceramente, era para mim um absoluto zero.

Só ao entrar para a GNR como soldado provisório tomei, da pior forma, conhecimento pormenorizado de tudo e foi quando soube em pormenor como o Alentejo fora devastado por ocupações selvagens de inúmeras herdades, e que instigados por determinadas forças políticas os trabalhadores rurais, toda a vida explorados pelos donos das terras, viram ali a sua oportunidade de vingança por anos e anos de miséria. Não perceberam, ou não quiseram perceber, que talvez não fosse aquele o caminho certo e que as ocupações que levavam por diante serviam principalmente e sobretudo, interesses político-partidários.

Mas não pensem vocês também que esta “instrução” que fomos aprendendo aos poucos nas primeiras semanas de alistamento sobre ocupantes e ocupações de herdades por esse Alentejo fora, tinha alguma intenção formativa para nós, insignificantes "projetos-inacabados-de-futuros-guardas-se-acabássemos-o-curso-com-aproveitamento", como diária e pomposamente éramos apelidados pelo oficial e sargento instrutores, para que o tivéssemos em conta e nunca o esquecêssemos. 

Não! Não tinha qualquer intenção formativa, muito pelo contrário. Era eivada de segundas e perversas intenções.

Nos anos de 1977 e seguintes, decorreu de forma muito conflituosa entre as partes, a devolução de parcelas das herdades ilegalmente ocupadas ou mesmo herdades inteiras aos seus legítimos proprietários após a correção legislativa da Assembleia da República que estipulou por um lado as áreas a manter sob ocupação e domínio das inúmeras Cooperativas Agrícolas que então se formaram, e por outro as áreas a devolver aos respetivos donos.

No olho do furacão, a Guarda Nacional Republicana era no terreno o garante do integral cumprimento da Lei que tinha forçosamente de ser respeitada pelas partes interessadas, mas cujo cumprimento originava por toda a zona de intervenção do conflito situações de sérios confrontos, quer físicos, quer verbais, todos eles potencialmente causadores de um terrível clima de hostilidades mútuas e muito complicadas.

Não foi uma época fácil para ninguém. Houve excessos, falta de fair-play, agressividades evitáveis e comportamentos reprováveis de todas as partes. Todas, sem exceção, cometeram muitos e graves erros.

Foi pois nesse clima de desconfiança e suspeição que eu e os meus camaradas fomos recebidos e tratados pelo efetivo e alguns dos instrutores durante todo o alistamento em Portalegre, principalmente pelo oficial e pelo sargento respetivamente comandante do pelotão e adjunto, já que os dois cabos, honra lhes seja feita, eram duas excelentes pessoas que tentaram sempre e como podiam, “amenizar” junto de nós os efeitos das “bocas” dos outros dois graduados que não nos poupavam a provocações tendenciosas e muitas vezes a raiarem o insulto.

Para a maior percentagem dos efetivos dos quadros da GNR no Alentejo desse tempo, nós, instruendos, éramos potenciais suspeitos de ser comunas – termo depreciativo usado para com os militantes do PCP.  E ser-se comuna em 1979 no entender de quase todas as patentes da Guarda por estas bandas, era ser-se equiparado a um vulgar criminoso. 

Aparentemente, não haveria nada mais sério, nem mais grave. 

Sendo eu o único Marvanense daquele alistamento, a maior parte dos meus camaradas eram oriundos da zona vermelha do conflito – Ponte de Sor, Montargil, Cano, Elvas, Monforte, Estremoz, Galveias – por isso, se não fossemos comunistas, seriamos com certeza filhos, netos, bisnetos, sobrinhos ou primos deles e considerados um potencial perigo de contágio e de infeção às puríssimas elites guarda-republicanas formadas antes de 24 de abril de 1974.

Foi necessário passar uma década inteira para "as coisas" se tornarem um pouco mais fáceis e humanizadas para os formandos alistados após 25 de abril de 1974. E quero crer que o tresloucado e mortífero ato do cabo Antunes no Centro de Instrução da Ajuda em novembro de 1988 terá sido inspirador e motivo de grande reflexão - senão mesmo de medo - para muitos saudosistas que teimavam em não acatar as regras da democracia.

José Coelho in Histórias do Cota (adaptado)