quinta-feira, 2 de junho de 2022

Herança que teve de tudo, menos dinheiro...

Imagem da net

O meu desporto favorito foi sempre andar a pé. Caminhar. De cara virada ao sol nascente, mas prefiro as cores do sol poente. Desde menino. Talvez porque os meus pais não tinham possibilidade de me comprar nem sequer uma bicicleta rasca, quanto mais uma motorizada como as que tinham os outros rapazes da minha idade. Nesse tempo os carros eram raros e coisa só de ricos. Ia, por isso mesmo, para todo o lado umas vezes caminhando e outras andando, porque não tinha outro remédio. Obviamente, também para o local de trabalho, ainda que algumas vezes ele fosse a muitos quilómetros de distância. Como por exemplo da Beirã para o Porto de Espada - 15 km para cada lado diariamente - quando do "enroncamento" da estrada municipal que liga atualmente a fronteira dos Galegos ao Porto da Espada, construída na década de 60, uma obra em que o meu pai foi um dos subempreiteiros a partir rachão e brita por conta do engenheiro Ventura. 

O mesmo aconteceu depois da Beirã para a Portagem nas margens do rio Sever, onde andámos vários meses também a fazer as escavações para implementação dos alicerces daquela que é hoje a enorme e bonita piscina natural no leito do rio. Saíamos de casa às cinco da manhã para conseguirmos estar no local de trabalho às oito. Regressávamos pelo mesmo caminho no fim de cada jornada de oito horas duras, de pá e pica nas unhas. O nosso prémio de consolação eram mais três horas de caminhada no regresso a casa. Mas não íamos só pela estrada. Havia, nesse tempo, muitas veredas e atalhos um pouco por toda a parte, por isso o percurso fazia-se maioritariamente por tapadas e canchais. Só não sei muito bem se isso encurtava o nosso caminho ou se ainda nos cansava mais por termos que subir e descer tantos penedos e saltar tantas paredes. De vez em quando, nos troços em que tínhamos mesmo que caminhar pelo alcatrão, lá passava na sua carroça algum conhecido que nos convidava a subir. 

Era uma sorte rara, mas quando acontecia bem nos sabia podermos descansar um pouco as pernas e os pés.

Assim me fiz homem atrás do meu pai com quem trabalhei sempre a partir dos 13 anos, até ir voluntário para a tropa. Foi um tempo duro. Muito duro. Mas, não raro, sinto saudades imensas desse tempo e dureza. Éramos todos tão mais felizes naquela simplicidade de vida. Não havia cansaço que conseguisse tirar-nos o riso da boca. E o meu pai já ia nos seus cinquenta avançados, dado que quando eu nasci, já ele passava dos quarenta. Nunca mais voltaríamos a trabalhar juntos porque quando regressei da guerra o país estava de pantanas com a Revolução. E se quis arranjar algum trabalho tive mesmo que rumar às Minas da Panasqueira de onde transitei cinco anos depois para a profissão definitiva. Entretanto, o meu velho e querido companheiro de tantas jornadas estava já na reforma.

Habituei-me, por força das circunstâncias em que me fiz gente, a não ter medo das distâncias. Fosse para ir às festas do São Marcos em Areias, à feira do São Lourenço na Vila ou a algum bailarico pelas redondezas, onde, como todos os rapazes do meu tempo, fui sempre arranjando algum namorico. Vezes houve em que a nova namorada morava numa aldeia ou lugar isolado e distante. Lá ia eu a meio da tarde dos domingos namorar, regressando serão adentro pelas veredas dos contrabandistas que eu conhecia tão bem. Fosse em noites enluaradas de verão ou naquelas mais escuras e tempestuosas do inverno, nunca o tempo, a distância ou os locais ermos por onde tinha que passar, me intimidaram. 

Fui sem dúvida um jovem adolescente alegre e feliz. Nunca me senti inferiorizado por ser quase o único moço da aldeia que não tinha bicicleta nem motorizada. Entendia sem complexos que o orçamento da família era escasso e por isso a prioridade das nossas jornas tinha que ser a comida na mesa, os trapinhos para vestir e os sapatos para calçar as seis alminhas que morávamos debaixo das mesmas telhas. O meu coração aceitou sem qualquer dificuldade essas limitações. E na minha cabeça ficou sempre tudo muito bem resolvido. Sem queixumes, sem problemas existenciais nem complexos de inferioridade. Os meus amigos juntavam-se e iam fazer petiscos, beber vinho ou cerveja nos domingos pelas tascas da aldeia e arredores. Eu não podia ir. Preferia que as minhas irmãs tivessem o que lhes fazia falta. Já bastava, mesmo assim, às vezes ser tão pouco. Pegava por isso mesmo num livro qualquer que estivesse a jeito e ia sentar-me à sombra de um sobreiro a ler tranquilamente. Tenho a absoluta certeza que tudo isso devo à impecável estrutura moral e integridade dos meus progenitores que souberam ensinar-nos que devemos procurar ser felizes com o que podemos e nunca invejar o que os outros têm. Guardo no coração e pratico no dia a dia, ainda hoje, esses ensinamentos.

Mais ainda sei que eles nos ensinaram tudo o que lhes foi também ensinado pelos nossos avós.

Todos, sem exceção, não sabendo nenhum deles ler nem escrever, conseguiram, por mérito seu, uma licenciatura em integridade, um mestrado em honestidade e um doutoramento em humildade, na universidade da vida. Já não vai por aqui havendo muita gente daquela que como eu os conhecia bem. Porém, os poucos que ainda cá estão, sabem a razão pela qual deles escrevo assim. Toda a minha família era humilde. Mas era também em simultâneo muito estimada e respeitada por toda a gente. É com enorme gratidão que ouço, algumas vezes, pessoas amigas e vizinhos falarem deles com saudade, com respeito e consideração. Por tudo isso, o orgulho de ser um dos ramos de tão sã árvore, não cabe no meu peito. E transborda por todos os meus sentidos, principalmente quando a saudade deles me faz dizer estas coisas.
 
Ou escrevê-las...

José Coelho