Amo a minha casa. Mal o dia começa a clarear, imediatamente se
iluminam todas as divisões. Estrategicamente concebida pelo senhor meu pai com
as frontarias traseira e dianteira voltadas a nascente e poente respetivamente,
ficaram por isso as sólidas empenas voltadas uma a norte e a outra a sul, a
primeira para resguardo dos frios de neve e a outra do vento suão e das invernosas
intempéries. Mais tarde, quando a comprei e ampliei, fiz questão de aproveitar
ao máximo a luminosidade do dia e planeei amplas janelas que a inundam de luz
de ponta a ponta.
Por isso, desde que o sol nasce, até que o lusco-fusco o apaga e
apesar das sólidas venezianas nas janelas, todo este meu reino de harmonia e
paz é abençoado pela sua luz bendita, fonte de toda a vida. Nem as venezianas nem
os cortinados conseguem impedi-lo de entrar. Pelo contrário, criam um agradável
ambiente de obscuridade, frescura e aconchego. Cada pormenor da pequena casa
original foi imaginado e concebido pelo meu pai. Cada pormenor deste enorme casarão
em que eu a transformei na sua inevitável ampliação, foi imaginado por mim.
Por isso lhe assenta tão bem o seu nome próprio, decidido
por mim em honra do meu pai e aprovado pelos meus filhos seus legítimos
herdeiros. Nada na minha vida foi, alguma vez, obra do acaso. Nada. Tudo teve
sempre um motivo, uma razão, uma causa, um sentido. É verdade que ficar com
esta casa não foi, de todo, ideia minha. Quando o meu pai se apercebeu que eu
andava já em vias de negócio com outra aqui na aldeia, chamou-me à parte para
me perguntar:
- Mas o que andas tu a fazer, Zé?
- Ando a ver de casa para comprar, Pai! Respondi.
- A tua casa é esta! Sentenciou peremptório.
E prosseguiu.
- O teu cunhado – disse o nome – já uma vez me falou que a
quer, mas eu disse-lhe logo que não, porque quero que a casa fique para ti.
Fui completamente apanhado de surpresa. Nunca havíamos
falado tal coisa – a gente nunca, em seu perfeito juízo, pensa que um dia os
pais nos irão deixar – e muito menos eu podia imaginar que já andava – à sucapa
– um candidato a querer assenhorar-se do imóvel, ainda que supostamente os seus
queridos e legítimos proprietários tivessem muita vida por viver.
Jamais eu equacionaria sequer tal hipótese.
Ainda assim, contestei:
- Pai, fico grato pelas suas palavras, mas não posso ficar à
espera de o Pai e a Mãe morrerem para ter a minha casa porque moro atualmente
numa do Estado, à qual tenho direito pelas funções que desempenho, mas, no dia
em que deixar de exercer essas funções, tenho só trinta dias para sair de lá. E
quando esse dia chegar preciso de ter já a minha para nos acolher.
E por isso ando à procura.
Entendeu o meu Pai perfeitamente, as minhas razões. Mas não
desarmou da sua ideia e no mesmo momento decidiu o que iria imediatamente providenciar.
E providenciou. Convocou um jantar de família com os quatro filhos, os três
genros, a nora e todos os netos, para literalmente “determinar” o que queria
fazer:
Vender a casa ao seu Zé pelo valor de seiscentos contos. Eu teria
que pagar a cada irmã a quantia de cento e cinquenta contos, ficando,
obviamente, com a minha parte. Para ele e para a nossa Mãe só punha como
condição morarem connosco enquanto vivessem. Todas essas condições foram apenas
verbais. Na nossa família valeu sempre tanto uma palavra dada, como qualquer
escritura de notário.
Assim o disse, assim se cumpriu.
Nenhuma das minhas irmãs e cunhados – nem sequer o secreto
interessado – se opuseram às decisões e condições do querido e respeitado
patriarca e em poucas semanas foram marcados os atos oficias necessários à
compra, venda e mudança de proprietário. E foi assim que, sem nunca sequer ter
imaginado tal coisa, passei de herdeiro a dono destas paredes que assistiram ao
meu nascimento e das minhas duas irmãs Maria da Luz e Joaquina Maria – porque a
Adelina já tinha nascido quando a casa ficou pronta – assim como foi também
entre as mesmas que o pai do meu pai o Avô Faustino Coelho, ele próprio meu
querido Pai, assim como a mãe da minha mãe a Avó Amélia, partiram para a sua última morada.
Aqui se guardam por isso as minhas mais queridas memórias, dado
que tive o cuidado de não mexer numa só pedra das divisões originais da casa
quando se procedeu à sua ampliação. Aqui se escreveu grande parte da minha vida
e da vida dos meus entes queridos e se dependesse de mim, aqui gostaria também de
terminar algum dia o percurso que iniciei naquela madrugada de um já longínquo dez
de março.
Mas isso é de todo imprevisível nos tempos que correm. Com
um bocadinho de sorte, talvez não termine sozinho numa maca num dos corredores
do serviço de urgência de algum hospital e tenha a sorte de, pelo menos,
terminar este meu terreno percurso no conforto de uma cama em algum Lar de
Idosos nas proximidades da Toca dos Coelhos, o que já nem será mau de todo…
José Coelho