quinta-feira, 9 de junho de 2022

Lar, doce lar

Mesa de Consoada na Toca dos Coelhos
Foto José Coelho

Amo a minha casa. Mal o dia começa a clarear, imediatamente se iluminam todas as divisões. Estrategicamente concebida pelo senhor meu pai com as frontarias traseira e dianteira voltadas a nascente e poente respetivamente, ficaram por isso as sólidas empenas voltadas uma a norte e a outra a sul, a primeira para resguardo dos frios de neve e a outra do vento suão e das invernosas intempéries. Mais tarde, quando a comprei e ampliei, fiz questão de aproveitar ao máximo a luminosidade do dia e planeei amplas janelas que a inundam de luz de ponta a ponta.

Por isso, desde que o sol nasce, até que o lusco-fusco o apaga e apesar das sólidas venezianas nas janelas, todo este meu reino de harmonia e paz é abençoado pela sua luz bendita, fonte de toda a vida. Nem as venezianas nem os cortinados conseguem impedi-lo de entrar. Pelo contrário, criam um agradável ambiente de obscuridade, frescura e aconchego. Cada pormenor da pequena casa original foi imaginado e concebido pelo meu pai. Cada pormenor deste enorme casarão em que eu a transformei na sua inevitável ampliação, foi imaginado por mim.

Por isso lhe assenta tão bem o seu nome próprio, decidido por mim em honra do meu pai e aprovado pelos meus filhos seus legítimos herdeiros. Nada na minha vida foi, alguma vez, obra do acaso. Nada. Tudo teve sempre um motivo, uma razão, uma causa, um sentido. É verdade que ficar com esta casa não foi, de todo, ideia minha. Quando o meu pai se apercebeu que eu andava já em vias de negócio com outra aqui na aldeia, chamou-me à parte para me perguntar:

- Mas o que andas tu a fazer, Zé?

- Ando a ver de casa para comprar, Pai! Respondi.

- A tua casa é esta! Sentenciou peremptório.

E prosseguiu.

- O teu cunhado – disse o nome – já uma vez me falou que a quer, mas eu disse-lhe logo que não, porque quero que a casa fique para ti.

Fui completamente apanhado de surpresa. Nunca havíamos falado tal coisa – a gente nunca, em seu perfeito juízo, pensa que um dia os pais nos irão deixar – e muito menos eu podia imaginar que já andava – à sucapa – um candidato a querer assenhorar-se do imóvel, ainda que supostamente os seus queridos e legítimos proprietários tivessem muita vida por viver.

Jamais eu equacionaria sequer tal hipótese.

Ainda assim, contestei:

- Pai, fico grato pelas suas palavras, mas não posso ficar à espera de o Pai e a Mãe morrerem para ter a minha casa porque moro atualmente numa do Estado, à qual tenho direito pelas funções que desempenho, mas, no dia em que deixar de exercer essas funções, tenho só trinta dias para sair de lá. E quando esse dia chegar preciso de ter já a minha para nos acolher.

E por isso ando à procura.

Entendeu o meu Pai perfeitamente, as minhas razões. Mas não desarmou da sua ideia e no mesmo momento decidiu o que iria imediatamente providenciar. E providenciou. Convocou um jantar de família com os quatro filhos, os três genros, a nora e todos os netos, para literalmente “determinar” o que queria fazer:

Vender a casa ao seu Zé pelo valor de seiscentos contos. Eu teria que pagar a cada irmã a quantia de cento e cinquenta contos, ficando, obviamente, com a minha parte. Para ele e para a nossa Mãe só punha como condição morarem connosco enquanto vivessem. Todas essas condições foram apenas verbais. Na nossa família valeu sempre tanto uma palavra dada, como qualquer escritura de notário.

Assim o disse, assim se cumpriu.

Nenhuma das minhas irmãs e cunhados – nem sequer o secreto interessado – se opuseram às decisões e condições do querido e respeitado patriarca e em poucas semanas foram marcados os atos oficias necessários à compra, venda e mudança de proprietário. E foi assim que, sem nunca sequer ter imaginado tal coisa, passei de herdeiro a dono destas paredes que assistiram ao meu nascimento e das minhas duas irmãs Maria da Luz e Joaquina Maria – porque a Adelina já tinha nascido quando a casa ficou pronta – assim como foi também entre as mesmas que o pai do meu pai o Avô Faustino Coelho, ele próprio meu querido Pai, assim como a mãe da minha mãe a Avó Amélia, partiram para a sua última morada.

Aqui se guardam por isso as minhas mais queridas memórias, dado que tive o cuidado de não mexer numa só pedra das divisões originais da casa quando se procedeu à sua ampliação. Aqui se escreveu grande parte da minha vida e da vida dos meus entes queridos e se dependesse de mim, aqui gostaria também de terminar algum dia o percurso que iniciei naquela madrugada de um já longínquo dez de março.

Mas isso é de todo imprevisível nos tempos que correm. Com um bocadinho de sorte, talvez não termine sozinho numa maca num dos corredores do serviço de urgência de algum hospital e tenha a sorte de, pelo menos, terminar este meu terreno percurso no conforto de uma cama em algum Lar de Idosos nas proximidades da Toca dos Coelhos, o que já nem será mau de todo…

 

José Coelho