O
meu vizinho Francisco era vendedor ambulante. Tinha uma tenda de comes e bebes,
farturas ou massa frita, petiscos, café e vinhos, os quais vendia nos mercados e
feiras por todo o distrito. Era por isso conhecido e amigo de muitos guardas. Ao
passar em Portalegre num desses dias a tratar de assuntos do seu interesse nas
proximidades do quartel, logo “calhou” ser visto, abordado e convidado para ir lá
petiscar e beber uns copos.
Estrategicamente – ou não – estava presente naquele improvisado “lanche” o tenente meu comandante de pelotão. Embebedaram – quase de certeza – deliberadamente o vizinho Francisco, com o intuito de lhe “sacarem” alguma informação “cabeluda” que pudessem depois usar contra mim. Contou-mo ele pessoalmente, tim-tim por tim-tim, conforme o descrevo.
Enganaram-se uma vez mais.
Primeiro porque na verdade não havia rigorosamente nada para revelar que pudesse comprometer-me. Depois porque o vizinho Francisco cuja casa era paredes-meias com a nossa, me conhecia desde que nasci e podia, com tanta propriedade como o meu pai, falar sobre mim, com seguro e exato conhecimento de causa. E finalmente porque de ingénuo o vizinho Francisco não tinha nada! Sentiu-se “apalpado” pelo astuto tenente e pelos guardas, mas limitou-se apenas a dizer-lhes o que sabia, que era exatamente o contrário do que eles queriam ouvir:
- O José Coelho?
- Ohhhh…
-
Muito bom cachopinho senhor tenente!
-
Muito bom cachopinho mesmo, pode ter a certeza!
-
É uma família de gente boa.
-
Vi-o nascer e conheço bem o que ali está. É muito educado, respeitador e inteligente.
-
E a família é séria, cumpridora e de trabalho.
-
Vai dar um bom guarda, até aposto!
Rimo-nos os dois divertidos, quando ele me contou tudo isto em sua casa no fim de semana, poucos dias depois de ter acontecido:
- Ó Zé, pá…
-
Os gajos querem mesmo "pôr-te a mexer", pá… Se visses o que o gajo disse de ti,
pá!
(O
ti Chico falava mesmo assim, ó pá isto, ó pá aquilo).
E
continuou satisfeito da sua proeza:
-
Mas eu desmenti-o logo, pá!
-
Disse-lhe logo que aquilo era tudo mentira, pá… Põe-te a pau com eles.
Estava provado que eu era alvo de uma perseguição cerrada, orquestrada, odiosa, feroz, mal-intencionada e tremendamente injusta. Mas continuava de pé, a lutar com as armas que tinha. A minha idoneidade mais um empenho feroz que me faziam estudar até altas horas da madrugada sozinho na sala de aulas para tentar arrancar notas classificativas acima da média nos testes semanais e lhes "espetar com elas na cara” com íntimo regozijo.
Os “gajos” ficavam estupefactos e as caras deles, para minha enorme delícia, eram o reflexo de alguma impotência perante tais resultados. Ali, pensava eu erradamente, ninguém poderia meter a unha. Estava lá tudo escrito, preto no branco! Só mais tarde percebi que as notas podiam ser e foram, adulteradas.
A minha teimosia e se calhar também a minha total inocência nos imaginários
“crimes” que me eram imputados, tinham revertido a situação a meu favor. As
“bocas” insidiosas dos senhores tenente e sargento continuavam a espicaçar-me pois esse
calvário durou do primeiro ao último dia do curso, mas batiam já de chapa na
minha total indiferença.
Quem não deve, não teme.
Nem
sequer os meus camaradas de turma ligavam já àquilo. Tive a sorte e o
privilégio de nunca ter sentido qualquer animosidade da parte deles, muito pelo
contrário. Senti-os sempre solidários comigo em todas as suas atitudes, tendo havido até
um deles que, num secreto desabafo, me sussurrou certa vez:
-
Eu não aguentava tudo o que tu tens aqui aguentado, Coelho. Já me tinha ido embora, mas primeiro
partia os cornos a um deles…
Uma
tarde, muito perto já do final do curso e no decorrer de uma aula, enganei-me
ao colocar o meu número de matrícula quando preenchi a dispensa do fim-de-semana. Coisa
insignificante. Uma barra onde não devia no número de matrícula. Ao ver “tamanho”
erro, o sargento aproveitou imediatamente para se atirar ferozmente a mim na presença dos meus camaradas, vociferando vermelho de ira.
-
Seu burro! Seu analfabeto! Se não sabe fazer o que lhe compete, o que anda aqui a fazer?
Farto
de ser espezinhado por tudo e por nada, não me contive que não dissesse:
-
Já pedi desculpa, meu sargento! O senhor nunca se engana?
O
que fui eu dizer!
O
homem teve quase uma apoplexia ali diante de mim. Sendo já vermelho por natureza, ficou completamente roxo.
-
Vai dar-lhe um treco, pensei.
Porém, como vaso ruim não quebra, olhou-me de atravesso com indisfarçada hostilidade, mas apenas retorquiu entre
dentes:
-
Ponha-se a pau comigo, Coelho! Ainda não tem o tacho garantido!
Não tomei quaisquer precauções. Nem me intimidei. Não me importava
nadinha de voltar de novo para as Minas da Panasqueira das quais não me tinha
ainda esquecido, nem daqueles amigos impecáveis que, sendo pessoas simples e sem formação académica, davam lições de humanidade e de respeito pelo próximo que estes senhores fulanos de tal “mandantes” na GNR em momento
algum desde que os conhecera demonstravam possuir.
Para
além do testemunho pessoal dos meus camaradas de Alistamento que se encontram ainda vivos e de saúde, pode confirmar quem quiser tudo aquilo que aqui descrevo por ser apenas a integral e exata narrativa dos factos, nua e crua, tendo
ainda em conta que muitos deles, após terminado o pesadelo que foi para mim o Alistamento, vieram confidenciar-me outras barbaridades
e sandices que a meu respeito eram proferidas quando eu não estava presente na
sala de aulas para poder defender-me.
Valentões, aqueles "chefes"!
E, se os seus testemunhos vivos não forem só por si suficientes, devo dizer-vos ainda que guardo religiosamente como um tesouro, as provas da maior injustiça humana de que alguma vez fui alvo: Os cadernos, manuais, testes e resultados, que são simultaneamente testemunho e prova real de uma das maiores e mais justas batalhas que travei na minha vida, a qual, debaixo de tantos enxovalhos, de tão cobarde pressão psicológica e sem qualquer hipótese de poder defender-me, consegui levar de vencida.
No final do Alistamento não fui, como me era devido, o primeiro classificado do curso. De forma indecente passei de primeiro para segundo classificado, apesar de ter a média única e melhor do pelotão de 17,24 valores, até ao penúltimo teste. Muito perto de mim também com muito boas notas apenas ligeiramente abaixo das minhas, seguiu sempre um camarada de Santo Aleixo, bom moço e muito bom amigo que, muitas vezes depois nos anos que se seguiram, comentava para quem o queria ouvir:
-
O primeiro classificado do nosso curso por melhor classificação foi o Coelho. Mas
por vingança de quem mandava, puseram-me lá a mim!
Como?
O justiceiro "duo mandante” decidiu que não iria ao pódium receber o troféu de melhor classificado "um possível comuna” apesar de nunca tal se ter provado! E, não havendo mais por onde pegar, exatamente no último teste, “por mero acaso” em vez dos habituais 17 valores, só me foram contabilizados 13…
José Coelho in Histórias do Cota (adaptado)