29 de Junho - S. Pedro
Já quase ninguém se deve lembrar, mas lembro-me eu e muito bem, por isso vou deixar o registo. Porque fez parte do trabalho, usos e costumes, do meu Avô José Lourenço e de três dos meus tios maternos, Tio Francisco Lourenço, Tio Joaquim Lourenço e Tio Raimundo Lourenço, entre centenas de guardadores de gados que os pastoreavam ou exerciam outras actividades agrícolas. Por eles e em sua memória, fica registado.
Pelo facto de ser uma Família de guardadores de gado eram mais conhecidos pelo anexim (alcunha) de " Os Cabreiros" do que por "Os Lourenços". Por isso eram comummente apelidados por "Zé Cabreiro", "Chico Cabreiro", "Jaquim Cabreiro" e "Raimundo Cabreiro". Por afinidade, a Avó Amélia da Conceição de Brito era apelidada por "A Amélha do Zé Cabreiro".
Hoje é dia de S. Pedro. E era precisamente o dia em que os Lavradores das Casas de Lavoura do nosso concelho e região celebravam verbalmente com alguns desses seus trabalhadores "tratos" com duração mínima de um ano. Não havia sindicatos nem papéis para assinar porque ninguém sabia escrever, nem tal era necessário. Nesse tempo, um "trato de boca" valia mais do que vale hoje qualquer documento escrito.
A esse "trato" chamava-se "ajuste" por um ano, para determinada função. Pastor de um rebanho de ovelhas - o meu Tio Francisco, no Monte do Matinho. Cabreiro de um rebanho de cabras - o meu Tio Raimundo, metade da sua vida no Monte da Cavalinha e a outra metade nos Aires. Porqueiro de uma vara de porcos - o meu Avô Zé Lourenço, no Monte do Matinho. Carreiro de "carro de parelha" ou de tracção animal - o meu Tio Joaquim, no Monte do Matinho.
Assim era em todas as Casas de Lavoura. Cada uma tinha os seus "justos" cujos "tratos" se iniciavam sempre no dia de S. Pedro de cada ano e terminavam no S. Pedro do ano seguinte. Prorrogável ou não, conforme o interesse das duas partes, normalmente com mais algum acerto (aumento) ou não. Conheci "justos" que nessa condição trabalharam quase toda a sua vida em determinadas Casas de Lavoura, o último dos quais foi precisamente o meu Tio Raimundo, até não há muitos anos atrás.
Cada Herdade (ou Monte) tinha os seus "justos" pagos ao mês, sendo uma parte do ordenado "ajustado" pago em dinheiro e a outra parte em "comedías" (coisas de comer) - farinha ou o cereal para fazerem o pão, uma medida de feijão e outra de grão para as refeições de panela, uma medida de azeite para o tempero, alguns queijos para condutar com o pão, e, por último, a "peara" composta por três ou quatro animais do rebanho que iam pastorear e que passavam a ser propriedade do pastor.
Ser "justo" não era para muitos. Mas à semelhança do que acontece actualmente com os contratos de trabalho a termo certo, garantia-o pelo menos durante os doze meses de duração. Porém, normalmente e salvo raras excepções, o "trato" inicial ia sendo sucessivamente prorrogado pelos anos seguintes, algumas vezes décadas. Todos os restantes trabalhadores do mesmo patrão trabalhavam "à jorna" entenda-se "ao dia" e recebiam "à semana" ou também "ao dia" conforme as condições que tinham ajustado.
Sei o que escrevo porque sou com muito orgulho o directo herdeiro, neto, filho e sobrinho, dessa geração de gente humilde mas boa, séria e honesta até à medula, cumpridora, trabalhadora, íntegra. Que Deus os guarde a todos na Sua eterna paz, no descanso que tanto mereceram pelas suas duras vidas de trabalho e sacrifícios. E viva S. Pedro, o "sindicalista" mediador que apadrinhou sempre os seus "ajustes" anuais.
Talvez, quem sabe, pela sua benção, os "tratos" "batiam" sempre certo...
José Coelho
29.06.2020