quinta-feira, 24 de março de 2022

Há quem lhes chame apenas anjos mas eu chamo-lhes também amigos

Castelo de Vide - 1980


"Depois de me ouvir atentamente, o camarada ficou um bom bocado em silêncio como que a pensar no que iria dizer-me. 

E por fim falou:

- Concordo com tudo o que me disse e sei que nada fez de errado para ser perseguido como tem sido. Sabe, Coelho, há senhores "fulanos de tal" por detrás de tudo isso e são esses que querem a sua cabeça. Por isso têm manobrado os "cordelinhos" através do Comandante da Secção na tentativa cobarde de o prejudicarem. Mas o nosso  Comandante da Companhia é um bom homem. Vá falar com ele e peça-lhe que o ajude a ir para mais perto da sua família. Não tem nada a perder…

Nessa noite dormi pouco e mal. Não me saía da cabeça o sensato conselho do velho camarada e nem o deixei arrefecer. Fui mesmo falar com o Comandante da Companhia. De pernas trémulas pelo nervosismo e ansiedade subi as escadas de acesso aos claustros do primeiro andar onde se situavam os gabinetes do comando. Passei em frente do gabinete do Comandante da Secção, o homem que mais rude e injustamente me tratou em toda a minha vida, mas nem para lá olhei. Dirigi-me ao outro um pouco mais à frente, ao qual eu pretendia aceder. Bati à porta com o coração quase a saltar-me pela boca de tão agitado. Era um gabinete simpático antecedido por uma sala de espera com vários maples, ampla e cuidadosamente arrumada, com um aspecto muito confortável.

Inspirava tranquilidade, e, sobretudo, a metódica organização do seu inquilino.

Ouvi uma voz mandar-me entrar, pedi licença e entrei. O Comandante da Companhia estava a escrever pacificamente. Tinha a secretária repleta de papéis que lia e a seguir rubricava. E tinha também um ar tão bondoso, tão paternal, que fiquei imediatamente mais tranquilo e à vontade. Cumprimentei-o respeitosamente fazendo a respectiva continência e apresentei-me como era da praxe.

- Então o que o traz por aqui, senhor Coelho? Perguntou, sem qualquer vestígio de arrogância, muito pelo contrário, afavelmente e com uma amabilidade que me surpreendeu, acostumado como estava ao tom irónico, gozão, mordaz e venenoso com que o outro senhor oficial do gabinete ao lado falava sempre para mim. E foi aquela atitude serena e afável que, pela primeira vez nos últimos dez meses, fez com que eu me sentisse gente, relaxasse um pouco e baixasse a minha postura autodefensiva.

Aquele excelentíssimo Senhor, que sempre o foi em todas as suas atitudes, era uma personalidade muito querida na cidade de Portalegre e correspondia exatamente ao perfil que o meu camarada me tinha descrito no decorrer da patrulha no dia anterior. Uma bondade de pessoa! Infelizmente já não está entre nós mas deixou saudades. Muitas mesmo, quer no coração dos inúmeros militares que comandou e ajudou, quer na comunidade onde quase toda a sua vida exerceu funções profissionais mas não só.

Já sem qualquer vestígio de temor, expus-lhe o que me levara à sua presença:

- Que tinha declaração de transferência pendente para o Posto de Castelo de Vide onde tinha já em vista uma casa para alugar em fase de acabamento de obras de restauro – o que era mesmo verdade – e sabia que ia dar-se uma vaga naquele Posto muito em breve;

- Que andava longe de casa da mulher e do filho desde que me tinha casado há mais de dois anos e ambicionava reunir-me a toda a família de uma vez por todas.

- E que vinha pedir-lhe, caso ele quisesse e pudesse, que fizesse o favor de me colocar naquele Posto logo que fosse possível, uma vez que na lista de transferências recentemente publicada em Ordem de Serviço da Companhia de Portalegre eu constava em número um para aquela vaga, logo, deduzia, não haveria prejuízo para terceiros.

Assim, quase num só fôlego, saiu-me aquilo tudo e também uma lágrima piegas e teimosa mas nada fingida a acusar o meu fragilizado estado de espírito por tudo o que vinha passando desde que pusera os pés naquele velho convento, julgando, como qualquer um dos meus outros camaradas, que seria simplesmente para estudar e aprender a ser um guarda republicano competente e digno.

O distinto senhor ouviu-me do princípio ao fim sem pronunciar uma só palavra. Pude perceber na sua expressão que não ficou nada surpreendido com o meu pedido. Tive mesmo uma indelével sensação que ele até estaria já à espera. A gente percebe essas coisas instintivamente. Sejam boas ou más, não sei muito bem como, mas percebe-as. Decerto também não era eu o primeiro guarda que ali ia pedir-lhe auxílio.

Assim que acabei de falar ele pegou no telefone e falou para algures. Mandou que lhe trouxessem a pasta das transferências. Pouco depois bateram à porta e um Cabo da Secretaria do Comando veio trazer o que fora solicitado. Foi mandado aguardar ali também, enquanto a pasta era consultada. O Comandante viu o que queria ver, fechou a pasta, devolveu-a e o Cabo voltou a sair.

- Fique descansado – disse-me – vou ver o que se pode fazer. Agora anime-se e volte aos seus afazeres.

Saí com uma estranha e íntima paz interior. Tinha corrido muito bem, graças a Deus.

Em boa hora lá fui.

Guardo até hoje a mais profunda convicção que aquele velho camarada de patrulha do dia anterior foi um anjo em forma de amigo que Deus enviou para orientar os meus passos e suavizar um pouco a dura caminhada que eu vinha percorrendo havia já demasiado tempo.

De tal modo foi eficaz aquele conselho que, apenas uma semana depois, fui chamado para me apresentar imediatamente no gabinete do Comandante da Companhia.

Entretanto e à cautela, não tinha falado rigorosamente com ninguém acerca da minha subida ao gabinete para evitar especulações e comentários desnecessários.

Subi as escadas do claustro a correr na expectativa que seria qualquer coisa relacionada com o pedido que tinha feito dias antes.

E não me enganei:

- Senhor Coelho, tenho muito boas notícias para si. Foi a sua resposta à minha institucional continência. E prosseguiu:

- Está já a ser preparada a publicação em ordem de serviço da sua transferência e a respetiva guia de marcha para o senhor se ir apresentar no posto de Castelo de Vide no dia um de Novembro. Vai substituir o homem que passará à reforma em Dezembro, mas você vai já andando para melhor se adaptar e conhecer o restante efetivo. É um Posto famoso pelas boas qualidades dos militares que lá prestam serviço, quase todos homens já com muitos anos de Guarda. Requere muito juízo e compostura em virtude da quantidade de turistas e outras personalidades que sempre por lá deambulam. Muitas vezes até alguns ministros ali vão passar as suas férias. Por isso porte-se bem e trabalhe melhor ainda. Pode então, a partir de hoje, começar a reunir a sua família. E boa sorte!

De uma assentada, com a sublime serenidade que caracteriza as pessoas de excepção e de boa índole, como se estivesse a anunciar-me a coisa mais simples e banal deste mundo.

O dia um de Novembro era… dali a dois dias."


José Coelho
in Histórias do Cota