quinta-feira, 31 de março de 2022

Há sempre algo mais

Foto Pedro Coelho

Rodeado das minhas coisas preferidas passo grande parte dos meus dias a sós com elas. Estantes repletas de livros, os meus mais fiéis e silenciosos amigos de uma vida inteira que não só me instruíram como ajudaram a conseguir quase tudo o que conquistei na vida. Sobre as estantes, junto aos livros, algumas relíquias da profissão que abracei, e, entre elas, outras que herdei da minha mãe e das quais não consegui ainda separar-me, nem separarei porventura nunca, enquanto viver.

Fui sempre um pouco dado à solidão provavelmente em consequência de uma meninice e juventude extremamente pobres onde quase tudo faltou menos o amor da família. Nunca tive brinquedos, não aprendi sequer a andar de bicicleta, porque nunca tive nenhuma. E jamais alguém me ouviu queixar, assim como nunca invejei ou me senti menos gente do que os meus amigos filhos de pais mais abastados a quem nunca faltava nada.

Terminei a escola primária aos onze anos e no dia imediatamente a seguir comecei a ganhar cento e cinquenta escudos por mês como assalariado porque cada centavo a mais era bem-vindo para ajudar no sustento de todos e porque não só não sobrava como continuava a ser insuficiente. Nunca fiquei com um centavo sequer do meu parco ordenado. Em vez disso entregava-o feliz à minha mãe, na certeza que era uma ajuda ainda que pequenina para as inúmeras necessidades do governo da casa. E ajudá-la foi sempre a minha maior felicidade. Ela gostou sempre muito de mim, mas eu gostei toda a minha vida muito dela também. Era recíproco.

Cedo percebi e sem que ninguém me explicasse que não podia ir com os outros moços da minha idade para as farras e petiscos nos domingos pois o que ia gastar dava para em casa se comprar o pão de toda a semana. Talvez por isso mesmo cedo o fascínio pelas letras e pelos livros tomou conta de mim. Primeiro as histórias infantis, depois já mais rapazote os livros de cow-boys que alguns amigos me emprestavam e por fim, milagre dos milagres, da biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian que vinha todos os meses à Beirã.

Aí começaram as minhas mais emocionantes aventuras imaginárias. Vinte mil léguas submarinas, Viagem ao centro da terra ou a Ilha misteriosa do Júlio Verne com centenas de páginas, Guerra e paz de Tolstoi, Os Miseráveis de Vitor Hugo, Retrato de uma Senhora, O Monte dos vendavais, Camilo, Herculano, Camões, Junqueiro, Garret, e mais, mais, mais, muitos mais autores de centenas de livros que literalmente "devorava" numa ânsia de conhecer, mas, sobretudo, de esquecer as incontáveis dificuldades do meu mundo real.

Namorisquei por aqui e por ali, ofereci-me ainda quase garoto voluntário para o serviço militar que me levou para aquela puta de guerra que me tornou ainda mais cioso do sossego e paz destas minhas paisagens Beiranenses. Fui mineiro cinco anos a respirar pó de pedra a três mil metros de profundidade. Casei, e, sem nunca ter imaginado tal profissão para mim, alistei-me nas fileiras da GNR onde injustamente fui perseguido até a minha inocência e razão vencerem. Com o decorrer do tempo a minha vida evoluiu inquestionavelmente para melhor, mas foi deveras difícil.

Não é humanamente possível enfrentar tantas vicissitudes sem se ficar marcado para sempre. Cada filhadeputice vencida não deixou no meu coração apenas o doce sabor da vitória. Deixou também uma profundíssima amargura por tão inexplicáveis injustiças, porque nunca encontrei resposta para as razões ou motivos que as justificassem. 

E continuo até hoje a procurar no sossego e silêncio dos "meus" campos, a paz e harmonia que a vida não me facilitou nunca. Porque há sempre alguma coisa nova para doer, magoar e entristecer.


José Coelho