quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Uso e abuso da caridade...

Foto José Coelho

Para vigilância e controle das minhas fragilidades na saúde faço desde 2016 viagens periódicas à capital do reino nos auto-expressos entre Portalegre e Sete Rios ou vice-versa. Quase sempre, porque é mais cómodo e muito mais económico também.

Sete-Rios e a sua estação intermodal de transportes públicos é simultaneamente um ponto diário de convergência de milhares de pessoas de todas as nacionalidades que chegam e partem em direção a todos os pontos cardeais deste jardim à beira mar plantado, tal é a diversidade na oferta de destinos.

Foi numa das minhas últimas viagens de 2019 em finais do verão que me foi dado observar o que hoje me ocorre escrever. Passava pouco das quatro da tarde quando aportámos eu e a minha companheira ao sempre muito concorrido bar que fica do lado oposto da gare, junto da passadeira para peões.

Quase sempre ali somos abordados por um sem-número de aparentes indigentes (também das mais diversas nacionalidades) que com os seus semblantes teatral e deliberadamente contritos para causarem mais dó suplicam uma moeda porque…

“Ainda hoje não comi nada!”

É absolutamente notória a forma como vestem e calçam roupas mais ou menos asseadas, mais ou menos desleixadas, fazendo talvez tudo aquilo parte da “encenação” para ludibriar as pessoas mais caridosas, mais incautas ou menos atentas. De ambos os sexos, são tantos a abordar-nos assim que nos apeamos do autocarro que é evidente que aquilo não é feito por indigência mas sim como forma de vida.

Na tarde quente, acomodámo-nos numa mesa da esplanada a beber algo fresco enquanto aguardávamos a hora de partida do “nosso” Expresso para o regresso a casa. Imediatamente fomos abordados já pela segunda ou terceira vez em poucos minutos, por um dos “pedintes” a quem também pela segunda ou terceira vez respondi com um seco “não tenho moedas”. Foi um modo de me ver livre dele, mas não tinha mesmo.

Numa das mesas ao nosso lado, duas senhoras de ar cândido lanchavam placidamente enquanto nos observavam também. E ao darem conta da minha recusa em ajudar com uma moeda aquele “pobrezinho”, quiçá indignadas pela minha “insensibilidade”, imediatamente o chamaram:

- Psst… Psst… Ó senhor, chegue aqui!

E ele acercou-se. Convidaram-no a sentar-se coisa que ele não fez, enquanto uma das senhoras se levantou e dirigiu ao balcão a pedir uma sanduiche e uma bebida para o “infeliz”. Todos estes movimentos estavam a ser observados por um dos empregados de mesa que por ali andam sempre atentos para não permitirem que aqueles falsos “pedintes” incomodem os clientes.

A senhora no seu acto caridoso regressou do balcão e pousou sobre a mesa o prato com a sanduiche mais a lata do refrigerante. O “pedinte” retrucou um sumido “preferia uma moedinha” enquanto pegava na sanduiche e na lata para em seguida se afastar.

Logo a seguir, ainda dentro do alcance visual de todos os presentes e antes de desaparecer pela escada abaixo em direção à gare dos comboios, atirou a sanduíche e a lata do refrigerante para o contentor do lixo, sem as ter aberto sequer. As caridosas senhoras exclamaram um desolado “oooohhh” enquanto o rapaz das mesas as consolava no seu acentuado sotaque brasileiro:

- São uns “cafagestxes”…

Não sei se para se confortar a si própria, se em jeito de resposta ao rapaz das mesas, a senhora que tão generosamente tentou "matar a fome" ao “desgraçado” murmurou:

- Fiz o meu dever e isso é que me importa.

Prezo muito a minha forma de estar na vida na qual sempre dou, dei e darei supremacia absoluta ao respeito e amor pelo próximo entre outras, mas tento também nunca me deixar “comer por parvo”.

Ah pois…   

José Coelho
15.01.2020