quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Vou, frequentemente, onde a saudade me leva... (II)

 Tubérculos de açucena que há mais de 40 anos continuam a reproduzir-se a 
cada primavera, vencendo o mato que quase os sufocam - Foto José Coelho

(…)

Viver numa aldeia deste Portugal profundo que só é visitado pela malta do poder de quatro em quatro anos e vocês sabem porquê nem preciso dizê-lo, tem muitas limitações, muitos inconvenientes, mas tem também algumas vantagens, como, por exemplo, poder comer-se fruta directamente da árvore sem qualquer perigo de contaminação por químicos. Quando muito, haverá a possibilidade de o fruto conter algum "marisco" hospedeiro mas que também precisa alimentar-se e tem direito à vida. Além disso, já dizia o meu avô, "mal do bicho que vai para a barriga d’outro".

Caminho de vez em quando pelos campos ao redor da minha Beirã e sei exactamente onde eram as hortas e onde continuam a lutar valentemente pela sua sobrevivência muitas das velhinhas árvores de fruto plantadas pela mão de gente boa que conheci e recordo com saudade. Uma dessas pessoas foi o meu pai, exímio hortelão que tudo o que plantava na terra se multiplicava milagrosamente. As parreiras e oliveiras do nosso quintal foram plantadas por ele, a figueira pingo de mel foi obra do avô Faustino Coelho, pai do meu pai que a plantou no sítio onde está, tinha eu 17 anos.

Na horta do Cancho de Ruivo - Foto José Coelho

Na horta do Cancho de Ruivo há pereiras e macieiras, parreiras moscatel e figueiras de várias raças que são mais velhas "ca mim". E lá continuam a lutar com as silvas e a dar frutos, ano após ano. Nas margens do ribeiro da Cavalinha já não se vislumbra a terra das velhas hortas, mas em muitos locais ainda se podem ver as videiras já bravias, pereiras, figueiras, nogueiras, macieiras e romãzeiras. Junto às casetas da via férrea do velhinho Ramal de Cáceres, como por exemplo na do Maxial que já nem telhado tem, continuam de pé as cerejeiras, a darem flores e frutos cada primavera, marmeleiros e pereiras, todas enleadas nas silvas que sem o conseguirem tentam sufocá-las. 



Mais admiráveis ainda são as flores plantadas pelas mãos sábias das mulheres, esposas e mães d'outrora, pois até essas continuam a vencer o tempo e a florir ano após ano sem se deixarem morrer. As ruínas da caseta do Maxial que referi no parágrafo anterior estão cercadas de roseiras (foto acima feita por mim) de duas ou três castas, sendo uma delas a de alexandria, que, dizem, dá a rosa mais perfumada de todas as rosas, também famosa numa quadra de cariz popular do meu tempo que reza assim:

A rosa para ser rosa, 
tem de ser de Alexandria. 
A mulher para ser formosa, 
tem de chamar-se Maria.

No pico da primavera é admirável aquele bucólico quadro que exibe em simultâneo as tristes ruínas da esventrada casa e o contraste oposto de vida e beleza com todas aquelas roseiras floridas em seu redor a exalarem o seu inigualável perfume ano após ano, década após década, indiferentes ao abandono a que foram votadas.

Olá açucena da Avó Amélia! - Foto José Coelho

Mas não é só no Maxial que se desenrola este milagre da vida. Também no antigo jardim da casa da minha avó Amélia junto à passagem de nível da Cavalinha, as açucenas que ela plantou há mais de 40 anos continuam a nascer, a crescer e a florir em cada primavera. Vou vê-las sempre. Acaricio-as com as mãos como se contivessem nelas as santas mãos que as plantaram e eu amava tanto. E a minha surpresa não tem fim. Como é possível uma planta aparentemente tão frágil não morrer, sem ser tratada e regada sob os tórridos verões, no meio daquele matagal que cerca a casa? 

Sei que é uma fantasia nascida da saudade imensa que muitas vezes me atormenta o espírito, mas aquela flor é como se fosse a minha avó a vir visitar-me uma vez por ano. Tão alva e delicada, denominada também de bordão de S. José, foi obra das suas mãos. Foi ela quem a plantou e regou durante parte da sua vida. Não é por acaso que sou tão apegado àquele lugar. 

Mas...

Este texto foi originado por uns pingos de chuva que caíram inesperadamente após o almoço. Despistei-me, ou deixei-me envolver pela melancolia da tarde silenciosa.

Desculpem!


Publicação original - José Coelho às 16:14 do dia 17.09.18