À porta da igreja da Beirã - Janeiro de 1976
José Coelho in Histórias do Cota
Os meus avós maternos – com quem me criei – viviam o seu dia a dia
numa tão tranquila simplicidade que ainda hoje os recordo carinhosamente, com
imensa saudade. Nunca passaram fome e a minha avó Amélia nunca deveu um tostão
a ninguém, conseguindo pelo contrário, amealhar o pezinho-de-meia que tinha
sempre guardado para prevenir eventuais ou inesperadas vicissitudes.
Era uma senhora pequenina de trato meigo e muito carinhosa. Qual
formiguinha trabalhadeira arranjava sempre algo para fazer nas suas lides
domésticas. Ia e voltava a pé da Cavalinha ao mercado de Santo António das
Areias todos os sábados para “mercar” muitas vezes apenas algum queijo, mais
dois ou três litros de milho para as suas galinhas poedeiras.
O meu avô José Lourenço (mais conhecido por ti Zé Cabreiro) grande
e querido amigo não só de mim como de todos os seus netos, muito novo ficou
quase cego dos dois olhos – tal como aconteceu depois às suas duas filhas, a
minha mãe e a minha madrinha Jacinta – e por isso raramente deixava o seu
cantinho na Cavalinha. Faleceu inesperadamente aos 67 anos vítima de uma
bronquite asmática. Foi a mim que calhou, nessa triste manhã, levar à sua
companheira de quase toda a sua vida a má notícia do seu falecimento no
hospital de Portalegre onde se encontrava havia duas semanas em estado crítico.
A partir daí todos os fins de semana ia visitá-la porque adorava a
sua companhia e saborear as deliciosas comidas que ela cozinhava nas panelas ou
tachos de barro em lume de chão e para o qual eu ia sempre buscar-lhe dois ou
três feixes de lenha que nunca mais deixei que lá se lhe acabassem. Mais tarde,
já muito perto dos 90 anos, recolhi-a definitivamente em minha casa onde a sua filha
mais velha e minha mãe também já morava e dela cuidou amorosamente até
ao dia em que a tia Amélia decidiu ir ao encontro do seu Zé Lourenço.
A pequena casa onde viviam junto ao ribeiro da Beirã por detrás da caseta da
passagem de nível da Cavalinha era imaculadamente branca por dentro e por fora.
Todas as divisões da casa e aquela magnífica varanda estavam sempre meticulosamente caiadas e esfregadas à mão, num asseio exemplar. Sobre a porta de
entrada, uma frondosa e fresca latada que dava uns deliciosos cachos moscatel
brancos. No parapeito da grande janela da sala alinhavam-se vasos com
manjericos, cravos e flores de cera que impregnavam com o seu perfume tudo em
redor. E havia ainda outro canteiro com flores de noiva, dálias, açucenas e também um cheiroso alecrim no ajardinado canto existente entre a varanda da casa
e a cancela que dava para o caminho.
Aquela modesta e branca casinha era um pequeno paraíso de paz e
harmonia, habitado por duas criaturas maravilhosas com quem dava gosto conviver
porque eram o exemplo perfeito da honradez da honestidade e da perfeição
humanas. Nunca tínhamos pressa de os deixar. E quando por fim tínhamos que
vir embora de ao pé deles trazia-mos sempre vontade de lá voltar o mais
depressa possível.
O meu avô era também um hábil artesão. Mesmo sem ver quase nada,
fazia uns pássaros em cortiça muito bonitos, os quais, por meio de uma guita
com um chumbo na ponta, fazia com que os pássaros ganhassem vida baixando
alternadamente a cabeça ou o rabo ao ritmo do vaivém do pêndulo. Havia
também aquela melodiosa escaravela de lata em frente da casa com uns
pequenos badalos de madeira em tamanhos vários dispostos no seu eixo, que, ao
rodarem movidos pelo vento, produziam uma música engraçada. Consoante o tamanho
de cada badalo, ao baterem na chapa um após o outro, faziam mais ou menos
assim:
- Tec-tac-toc-tec-tac-toc… Tec-tac-toc-tec-tac-toc…
Sempre que podia, ia passar com eles dias inteiros. E nem dava pelo
passar das horas! O meu avô, para além de um grande
companheiro era também um grande contador de histórias. Da guerra civil
espanhola e de muitas outras peripécias que viveu e sabia. Tinha um dom tão
especial para as contar que nos prendia a atenção por completo. Ao ouvi-lo no
mais profundo silêncio era como se estivéssemos a "ver" tudo o que
ele ia narrando.
Quando eu era pequenito às vezes acompanhava-o no pastoreio pelas
tapadas onde ele guardava o gado. E recordo perfeitamente um dia, na
Tapada dos Três Pontões, os dois sentados na parede da linha férrea. Ao ouvir o
zumbido dos cabos telefónicos que bordejavam a linha, perguntei-lhe, admirado:
- O que é que soa, avô?
Ele pegou-me na mão, levou-me ao poste que sustentava as canecas
dos fios de cobre e mandou-me encostar lá o ouvido. E o tal zumbido que ao
longe era discreto, ali, com o ouvido encostado, transformava-se numa contínua e
melodiosa algazarra:
- Ziiinnng-zeennng-zoonnnng…
- Sabes o que estás a ouvir? Perguntou-me a sorrir, divertido.
- Parece música. Respondi eu.
- Ah pois é! São meninas a cantar! Concluiu rindo da minha cara de
espanto, ainda mais divertido.
É curioso como nunca mais me esqueci de tal coisa! E não teria
decerto mais de 3 ou 4 anitos. Ainda hoje lá estão os pontões, a parede e o
poste de ferro a olhar para o céu mas já sem os fios. Não sei se foram
retirados quando encerrou o ramal, ou se terão sido roubados. Porém, cada vez que lá
passo, basta-me cerrar os olhos para ir ao encontro da voz e do riso do meu
querido avô:
- "São meninas a cantar"...
Partiram há muito tempo na sua viagem sem regresso.
Inevitavelmente com eles foi um enorme pedaço de mim. A casa onde moravam
está agora em ruínas. Mas aos olhos do meu coração continua branquinha e
acolhedora. E eles permanecem lá. Vivos na minha memória e no meu amor, incapaz
de os esquecer. Consigo até vislumbrar a avó Amélia sentada na sua cadeirinha
de bunho na empena da casa, a costurar ao sólinho da tarde. E o meu avô sentado
na parede aparando pedaços de cortiça para construir os seus animados
passarocos. As rosas de alexandria e as perfumadas açucenas do velho canteiro
ajardinado conseguem milagrosamente sobreviver há décadas e continuam a florir
em cada primavera por entre o emaranhado de silvas e outro matagal que já quase cobrem as ruínas da casa.
Inventei uma maneira de os conservar mais perto de mim. Antes que
a velha parreira da latada da varanda secasse fui lá buscar um garfo que pus no
meu quintal e que por sorte pegou. Já comi dela os doces cachos
moscatel. E como não tenho a habilidade do avô Zé para as fazer, comprei no
Mercado Franco em Castelo de Vide uma escaravela de lata parecida com as que
ele fazia e até tem no meio uns arames que ao rodarem movidos pelo vento fazem
um barulho parecido àquele que fazia a dele, ainda que muito menos musical.
Limita-se a um monótono tec-tec-tec… tec-tec-tec… Dá, contudo, para sentir os
dois mais próximos de mim.
Sei que um dia voltaremos a ficar todos juntos. Mas às vezes é
complicado gerir tantas perdas, tantas ausências, tanta falta dos afectos puros
e genuínos que a Vida me foi levando...
José Coelho in Histórias do Cota
(Adaptado)