terça-feira, 17 de setembro de 2019

A republicar o que me parece que vale a pena relembrar...

A rua e a casa continuam (quase) iguais - Foto José Coelho


A taberna da ti’Arora

Lembro-me dela, como se lá tivesse estado ontem. Era na rua da igreja como todos na Beirã sempre lhe chamámos, ou então, por ser mais fino, Rua Vivas de sua graça. Situava-se muito perto da Estação de onde recebia o seu maior fluxo de fregueses. Ferroviários e passageiros dos comboios.

Era uma taberna pequenina com uma só divisão de 5 ou 6 metros quadrados e tinha apenas uma mesa redonda de ferro onde os fregueses jogavam as cartas ao truque, às copas ou à sueca e tinha também duas pipas de vinho, daquelas grandes e antigas de madeira, uma do branco, outra do tinto, de pé no vão da janela.

Tinha ainda um balcão a toda a largura e de parede a parede em frente de uma estante de madeira com prateleiras onde se alinhavam os copos – daqueles antigos que até meio era fundo do copo – de vidro muito grosso, à mistura com as garrafas de ginja, de anis, do abafado ou da aguardente, porque os vinhos branco ou tinto, esses, eram contidos em jarros de vidro que pousavam permanentemente sobre o balcão. Na parede do lado e por dentro do balcão, tinha uma modernice para a época, uma pia de marmorite com uma torneira de água canalizada, onde eram lavados os copos.

Atrás do balcão, sentado num banquito de madeira, era comum encontrar-se quase sempre o ti Afonso, já que a ti’Arora estava sempre mais no outro lado, na divisão onde tinham também uma pequena mercearia que comunicava com a taberna por uma porta interior.

Era daquela mercearia que vinha quase tudo o que comíamos em nossa casa. Arroz e açúcar avulso, massas, farinhas, banha caseira ao quilo, manteigas, azeite e vinagre também a granel, toucinho, morcelas, chouriço e farinheiras, sal ou bicarbonato, feijão, grão, sardinhas em lata ou atum.

A pronto pagamento ou fiado porque o dinheiro nesse tempo escasseava em quase todas as bolsas, mas nunca naquela loja se negou o avio necessário ao sustento de muitas famílias, a minha incluída, sem necessidade de fiadores e sempre com bom modo, confiando na certeza do completo ajuste das contas logo que as jornas fossem recebidas pelos chefes de cada família.

E era naquela taberna que o meu pai se entretinha depois do sol-posto até à hora da janta, onde e com os seus amigos jogava cartas ou bebia um copito, algumas vezes até mais do que a conta.

Boa gente, o ti Afonso e a ti ‘Arora. Quer um, quer o outro. Abriam as portas às 6 da manhã com a chegada à estação do comboio sardinheiro – assim chamado porque era nele que vinha o peixe do litoral para os peixeiros ambulantes como o ti Carlos e a ti Perpéta venderem de porta em porta pelas aldeias ou montes - e fechavam ao serão, normalmente depois da chegada do comboio das oito da noite.

Era também a parteira da aldeia “quase diplomada” a ti A’rora. Toda a rapaziada que nasceu nas décadas de 40, 50 e 60 por estes arredores, salvo algumas normais excepções, caía nas suas mãos mal saíam do ventre materno. Por isso era a "comadre A’rora" de uma infinidade de mulheres – incluindo a minha mãe – porque era uso e costume assim ficarem a chamar-se nesse tempo as mulheres parturientes e aquelas que faziam de parteiras na hora de trazerem os filhos ao mundo.

Estava ainda também habilitada a dar injecções a quem precisava de as levar, com grande perícia e sabedoria. Não havia posto de saúde permanente na Beirã. Vinha cá o Senhor Dr. Machado uma vez por semana, esse extraordinário homem que era tudo em um porque exercia medicina geral, parteiro às vezes nos partos mais complicados e era ainda também dentista, entre outras “especialidades”. Fazia consultas numa dependência da antiga sociedade recreativa preparada para esse efeito, porém, os tratamentos por ele prescritos eram depois feitos em casa de cada um e lá se tinha que ir à ti A’rora muitas vezes, levar as injecções receitadas pelo senhor doutor.

Todas as “qualificações” que ela tinha eram, suponho eu, em grande parte devidas ao facto de ser uma das poucas pessoas do seu tempo e do seu extracto social que sabia ler e escrever, pois isso, parecendo que não, era uma mais-valia que lhe dava acesso a alguma formação, para além evidentemente do carisma bondade e jeito muito seus para desempenhar todas as funções descritas e que a constituíam um precioso auxílio para quem delas necessitava.

Não tenho dúvidas em afirmar que, quer pelo comércio por eles exercido, quer pela forma como eram prestáveis para toda a gente, este bondoso casal e a sua casa comercial farão sempre parte da memória colectiva da nossa Beirã, pese embora ainda ninguém se tivesse dado ao trabalho de enaltecer o seu contributo.

Aqui fica então, com muito respeito pela sua memória, a minha modesta homenagem aos dois.

José Coelho 
in Histórias do Cota