domingo, 30 de abril de 2017

Saudades de ti...

Foto by Pedro Coelho


Quando Eu For Pequeno


Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

 Quando eu for pequeno, mãe,
 os teus olhos voltarão a ver
 nem que seja o fio do destino
 desenhado por uma estrela cadente
 no cetim azul das tardes
 sobre a baía dos veleiros imaginados.

 Quando eu for pequeno, mãe,
 nenhum de nós falará da morte,
 a não ser para confirmarmos
 que ela só vem quando a chamamos
 e que os animais fazem um círculo
 para sabermos de antemão que vai chegar.

 Quando eu for pequeno, mãe,
 trarei as papoilas e os búzios
 para a tua mesa de tricotar encontros,
 e então ficaremos debaixo de um alpendre
 a ouvir uma banda a tocar
 enquanto o pai ao longe nos acena,
 lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
 anunciando que vai voltar porque eu sou
                                                        [pequeno
 e a orfandade até nos olhos deixa marcas.


José Jorge Letria

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

Não foi fácil a minha vida. Mas venci. 



Ajuste de contas



Exactamente como havia decidido não prescindi de maneira nenhuma de “acertar” contas com o camarada que inventou a hipótese de eu ser desonesto. Porém, depois de tão ponderadamente aconselhado pelo outro camarada, pessoa idónea e muito, muito acertada, deixei fluir normalmente as coisas, aguardando pacientemente o momento certo.

Sempre acreditei que, como diz o ditado, a verdade é como o azeite. Vem sempre ao cimo. Convicto disso, acalmei um pouco o meu espírito e conversei de novo com a minha mulher a quem narrei os conselhos que tinha tido a sorte de receber do camarada Marques e que a deixou bastante mais animada, confiando na minha capacidade para ultrapassar tudo aquilo da melhor maneira para todos nós.

Era óbvio o seu imenso alívio pelo facto de eu ter decidido ficar e continuar a lutar pelo nosso futuro sem ser preciso andar de novo com a trouxa às costas. E os dias prosseguiram o seu percurso normal. Pelo facto de permanecermos todo o dia no posto nas horas de expediente entre as horas das patrulhas, um dos entreténs preferidos da malta era um joguinho de sueca e não só. Naturalmente eu alinhava com todos os outros nesse entretém, cuja modalidade mais frequente era o “bota fora” em que o perdedor saía e dava o lugar a outro, permitindo assim que fosse “rodando” a vez por todos.

Porém, desde o dia em que aquele camarada ousou duvidar da minha idoneidade, nunca mais quis confianças com ele. Para tal, deixei de participar nas “esforçadas” tardes "desportivas" para me dedicar exclusivamente a estudar tudo quanto me parecia que me iria fazer falta para o próximo concurso de admissão a cabo cujo convite deveria estar prestes a sair.

Por isso mesmo mas não só afastei-me quase sem dar por isso de toda a normal convivência com os outros camaradas nas semanas seguintes. E parece que a minha atitude não caiu lá muito bem principalmente naqueles que não sabiam que eu sabia das tais “bocas” foleiras havidas por ali anteriormente, apesar de nunca mais me ter apercebido de qualquer conversa a esse respeito. Pelos vistos, aquela semente venenosa caíra em terra árida e morrera sem dar fruto. Do mal o menos!

Mas, como eu me afastei, foram picando daqui, picando dali, para verem se eu me descosia com alguma queixa ou lhes apontava o motivo da minha atitude. Demais sabiam eles que ali havia gato. Só os meus dois vizinhos nunca se pronunciavam. Aquele que me tinha vindo contar tudo e o outro que me aconselhou depois a não desistir da minha profissão por causa de mexericos. A esses dois só ouvia às vezes dizerem aos outros:

- O homem é que sabe. Se prefere ler em vez de jogar às cartas, isso é lá com ele…

Entre umas coisas e outras fui-me esquivando a explicações até um belo fim de tarde em que, estando como de costume todos eles reunidos na caserna a jogarem a dita cuja sueca numa mesa estrategicamente colocada pertinho da janela sobre a entrada do posto para vigiarem a rua, não fosse o diabo tecê-las e aparecer um oficial rondante sem ninguém se aperceber e apanhar a rapaziada com a boca na botija em plena “endurance”...

Eu estava do outro lado, na mesa do plantão disposta no corredor mesmo ao cimo das escadas – nesse tempo o posto era todo no 1º andar, hoje é também no rés-do-chão – e, como já antes referi, à minha volta eram só pastas, livros e cadernos. Completamente absorto na minha luta com as raízes quadradas e as regras de três simples, eis senão quando o nosso cabo comandante se acercou, e, como quem não quer a coisa, perguntou:

- O senhor Coelho parece que anda mal-disposto co'a gente!

Olhei-o com o (pouco) respeito que me merecia a sua atitude e sem me intimidar com a sua expressão manifestamente provocatória, respondi-lhe, apesar de tudo, educadamente:

- Não, nosso cabo. Estou até muito bem-disposto. Só não fiquei nada satisfeito aqui há umas semanas atrás quando um nosso camarada andou a dizer mal de mim para si, coisas que o senhor deve ter achado serem verdade, pois não só não foi capaz de me chamar á frente dele para esclarecer esse assunto, como ainda lhe achou imensa graça.

(Eu tinha-o visto a rir-se nesse dia, quando cheguei da patrulha ao mercado, lembram-se?)

- Ai sim? E quem foi esse seu camarada? A mim ninguém me veio dizer mal de si, ora essa! Respondeu-me num tom irónico e a gozar ainda mais com a minha cara.

Entretanto do outro lado o jogo das cartas tinha parado subitamente. Toda a gente estava já muito atenta ao meu bate-boca com o cabo.

Parecia até que todos esperavam o desencadear daquela tempestade e ninguém a queria perder. Entre eles estava o meu ilustríssimo conterrâneo, o tal que tinha achado que eu teria feito um acordo sujo com a minha prima Fernanda para depois ficar com metade daquela imensa fortuna encontrada no mercado franco sobre a bancada do honesto feirante.

Estava pois chegado o momento exacto de esclarecer todas as dúvidas acerca desse tão lamentável como indecoroso incidente! Estranhamente, ao contrário da agitação e nervosismo que aquele imbróglio me tinha provocado no dia que aconteceu, eu andava agora tranquilo e sem qualquer indício de perturbação.

Por isso, mal o cabo me desmentiu descaradamente para proteger, obviamente, o que tinha metido a pata na poça, levantei-me da cadeira para os poder olhar na cara e de frente, quer a um quer ao outro, para lhes responder taco a taco.

Havia passado horas a conjecturar o que lhes iria dizer olhos nos olhos quando chegasse este momento mas não contara com a estranha atitude do cabo, que, não só o estava a encobrir, como ainda e o que era pior, me estava a chamar mentiroso a mim. E isso, tivesse ele santa paciência por mais cabo que fosse, por mais que eu lhe devesse respeito e obediência, jamais lhe permitiria que me fizesse passar por parvo ou me chamasse mentiroso. Calhou mesmo bem a conversa ter tomado aquele rumo:

- Pér'aí que já te cóço!  Cogitei para comigo sem me deixar perturbar.

E sem pensar duas vezes, mal ele me respondeu "que ninguém lhe tinha ido dizer mal de mim” retorqui-lhe alto e em bom som:

- Faz muito bem defender o meu camarada nosso cabo! Mas já que é tão amigo dele fique sabendo que, da mesma maneira que ele lhe foi dizer mal de mim, também já me veio dizer a mim e muitas vezes, bastante mal de si…

- Toma e embrulha!  Pensei consolado.

Que bem me soube dizer aquilo! O cabo primeiro abriu a boca, depois fechou-a, parecendo ter ficado sem fôlego. Mas, ainda não convencido, voltou à carga:

- Ora essa! E que mal é que o senhor (…) tem para dizer de mim?

E eu, mais uma vez sem hesitar, respondi-lhe no mesmo tom:

- Muitas coisas nosso cabo...

- Muitas coisas mesmo e todas muito feias! 

- Que o senhor é um mau exemplo para todos nós, que o senhor vem para aqui a mandar vir connosco porque vem picado pela sua mulher lá de casa porque ela é que manda, que o senhor vai para a Póvoa multar os comunistas de propósito porque não os grama mas na Páscoa vai lá de propósito também buscar os borregos que eles lhe oferecem e aí já não faz mal que sejam comunistas, e… Olhe! Muitas, mas muitas outras coisas mais que eu agora não digo só mesmo porque não quero!

Nesse momento e sentindo-se picado, o meu conterrâneo linguarudo não se conteve e disse-me:

- Isso é jogo sujo senhor Coelho. Você é você e os outros são os outros. Não misture porque uma coisa não tem nada a ver com a outra!

- Na muge! Pensei, regalado.

Era exactamente aquilo que eu queria. Puxar conversa àquele com quem eu tinha as contas por saldar. E, sem ligar mais importância ao estupefacto cabo, dirigi-me desta vez cara a cara ao outro para lhe dizer, de uma assentada, tudo quanto me ia na alma, não me coibindo sequer de lhe esfregar no nariz o quanto lamentava o seu fraco juízo a meu respeito quando eu tinha por ele a maior das considerações por julgar que ele era um exemplo de virtudes.

E mais lhe disse ainda que, se não lhe tinha enfiado com a coronha da espingarda pela cabeça abaixo logo naquele dia, bem podia agradecê-lo a outro camarada que me tinha feito ver as coisas com mais calma e aconselhado com serenidade.

Porém, avisei-o:

- Não ouse nunca mais repetir insinuações desse ou de outro teor a meu respeito, porque aí teremos mesmo o caldo entornado. Era, evidentemente, uma ameaça clara e objectiva, feita com todas as sílabas e com deliberada intenção. Era fazer-lhe ver que não temia as consequências fossem elas quais fossem. Porque, de facto, com todo o apoio que tinha da família, já não as temia mesmo.

Evidentemente aquele homenzarrão muito maior do que eu não se mostrou intimidado mas também não manifestou qualquer interesse em medir forças comigo. Em vez disso, provavelmente para me acagaçar de outra forma, não sei bem se com verdadeira intenção de o fazer ou se foi apenas bluff, dirigiu-se em seguida ao cabo, que, apanhado de surpresa pela minha desbocada revelação se mantinha desde então muito calado e com cara de poucos amigos:

- Temos aqui um problema muito grave nosso cabo. Havendo já ameaças de agressão com arma temos que chamar o nosso capitão para lhe ser dado conhecimento disto…

De novo sem qualquer sombra de receio e sendo eu muitíssimo mais torto do que ele – ainda hoje sou – não só não me assustei como aceitei a sugestão e concordei imediatamente com ela, muito ao contrário do que se calhar ele pensava:

- Acho muito bem, nosso cabo. Telefone-lhe imediatamente para o nosso capitão vir cá hoje ainda pois eu também tenho umas coisas para lhe dar a conhecer porque só já mesmo ele é que pode ter mão na pouca-vergonha que grassa por este posto!

Nessa altura, acho eu que pelo o rumo que as coisas estavam a tomar, os outros camaradas que assistiam mudos a todo este confronto verbal devem ter ficado alarmados e imediatamente intervieram no sentido de apelar à calma e ao bom senso, achando em uníssono que a roupa suja se devia lavar mesmo só ali em casa e entre todos nós, até porque o assunto não era assim tão grave que fosse preciso sair da porta do posto para fora!

E aquele camarada que me tinha aconselhado na Senhora da Penha, por ser um dos mais antigos no posto, tomou a palavra. Censurou cara a cara também e muito duramente a atitude daquele que me tinha difamado salientando que por um camarada ser mais novo e inexperiente não tinha que ser considerado menos sério e menos competente que os mais velhos e que a obrigação dos mais velhos era sim ensinar e encaminhar os mais novos em vez de se andar a espiolhar o que eles faziam mal para depois os criticarem. E mais afirmou que naquele posto havia o mau costume de julgar toda a gente pelas aparências e de se falar demais na vida dos outros como as belhardeiras. Por fim rematou o seu ácido e contundente discurso aconselhando aquele que me ofendeu a ter a humildade de reconhecer que tinha procedido mal e a pedir-me desculpa.

De tal modo foi convincente no seu discurso que o outro a quem ele “ripou” daquela maneira se dirigiu em acto contínuo a mim para me pedir desculpa diante de todos os presentes, alegando que, na verdade, nem sequer pensava mal de mim pois me conhecia desde gaiato e também à minha família, e que tudo aquilo fora uma parvoíce sua como qualquer outra daquelas que todos nós cometemos de vez em quando, mas sem aquela maldade que eu lhe tinha atribuído. E em acto contínuo estendeu-me a mão direita aberta em sinal de reconciliação e de paz. E eu, porque também já tinha digerido toda a minha raiva e já tinha dado o meu recado conforme pretendia, não hesitei e aceitei, sem pronunciar qualquer palavra mais, aquele aperto de mão que me estava a ser solicitado, numa muda confirmação: 

- Ok, assim seja.  Assunto encerrado…



José Coelho in Histórias do Cota

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

35 anos depois, em primeiro plano e em minha casa,
a amizade mantém-se. Grande homem, o Marques!


A conversa que tudo mudou 


Conhecem a citação “quando Deus fecha uma porta, abre sempre uma janela”? Eu tenho todas as razões do mundo para acreditar nisso, conforme irão perceber depois de lerem o que vou hoje contar.

No dia seguinte àquela noite, indiferente ao facto de eu mal ter pregado olho, a escala de serviço nomeara-me de patrulha aos campos para sair logo de manhã cedinho com outro grande homem da guarda e também uma extraordinária pessoa: O Marques, do Chão da Velha. Grande amigo desde a primeira hora que pus os pés naquele posto, assim permanece até ao dia de hoje, apesar de ele ser um pouco mais velho do que eu e de se encontrar há anos aposentado e a viver tranquilamente numa bonita vivenda que comprou no novo Bairro da Cevadeira em Nisa.

A minha expressão taciturna devia com certeza mostrar o que me ia na alma. Saímos mudos e continuámos calados em direcção à Fonte da Mealhada, Pouso, Quinta do Pasmar e serra da Penha. Eu caminhava anormalmente silencioso, já que por norma era um tagarela. Ia absorto a pensar em tudo o que a minha mulher me tinha dito ao longo dessa comprida noite e sinceramente sentia alguma relutância em deixar a guarda porque já me tinha adaptado a tudo o que ela significava para mim, quer pessoal quer profissionalmente.

Era inevitável reflectir também no facto de me dar muito bem com quase todos os meus camaradas que eram para mim como que a extensão da minha família. Mas, sobretudo, pensava que desistir agora, faria com que tudo o que eu já tinha suportado para chegar até ali tivesse sido desnecessário, senão completamente inútil. Mais valia ter desistido logo no fim do primeiro mês. Tinha pelo menos evitado todas aquelas chatices.

Por outro lado, invadia-me uma sincera felicidade pelo incontestável apoio que a minha Maria me tinha afirmado. Fora para mim uma enorme surpresa. Uma grata e indescritível surpresa. Quem diria! Grande mulher e amiga, hein? Nesta altura do campeonato eu achava já que com um bocadinho de jeito ela seria até capaz de pôr o dedo no nariz a todos aqueles “burgessos” que me haviam enxovalhado injustamente:

- A guarda é uma carrada de brutos… Repetira ela várias vezes, completamente indignada!

Entretanto o meu camarada também nada dizia enquanto caminhávamos por decerto se ter apercebido que alguma coisa me perturbava e também porque, disse-me depois mais tarde, desconfiava que eu já saberia daquela infeliz conversa havida na véspera no posto e da qual ele próprio fora testemunha.

Subimos assim a serra por carreiros e veredas até alcançarmos mais de uma hora depois a capelinha de Nossa Senhora da Penha. Tal como me acontece sempre em Marvão, quantas mais vezes lá vou mais deslumbrante acho a paisagem que me cerca e mais gosto de tudo aquilo que os meus olhos me oferecem.

Sentámo-nos à sombra da capela naquela espécie de poial de pedra que a rodeia virados para norte e com a verdejante zona da encosta do Martinho bem como as hortas do Brejo a nossos pés, enquanto a vista alcançava mais além a Póvoa e Meadas, Montalvão e as terras da Beira Baixa até aos cumes da Gardunha e da Estrela onde se situam as “minhas” inesquecíveis Minas da Panasqueira, cujos perfis se vislumbravam muito longínquos a quererem tocar o céu daquela ensolarada manhã.

- Pouse a espingarda e sente-se aqui ao pé de mim! Sugeriu algo cansado da subida o meu camarada e comandante de patrulha.

Assim fiz continuando no entanto absorto e pouco comunicativo.

- Coelho, tem alguém da sua família doente? Perguntou ele.

- Não. Graças a Deus está tudo bem! Respondi.

- Então porque vem assim a modos que apoquentado? Volveu ele sem desistir.

Permaneci num silêncio indeciso entre o desabafar ou ficar calado. Gostava dele como pessoa, como amigo, como camarada no serviço e como bom vizinho que era também. Mas da maneira que as coisas estavam eu já não sabia se não seria melhor falar só o necessário.

Porém, eu e a minha Maria, tínhamos para com a esposa deste amigo uma dívida de gratidão imensa porque ao regressar do hospital depois de o Pedro nascer foi essa excelente senhora que durante mais de um mês cuidou das roupas da combalida mãe e do robusto bebé e lhes fez companhia, ajudando em tudo quanto a recém-mamã necessitou como se fossem irmãs.

E se há coisas que não se pagam com dinheiro nenhum, essa era decerto uma delas. A generosidade, a solidariedade, o cuidado e carinho daquela família que mais não eram do que ocasionais e recentes vizinhos, família de camarada de profissão que conhecíamos há pouco mais de dois anos mas que nos tinham tratado melhor do que algumas pessoas da nossa família mais próxima.

Como eu permaneci calado e absorto nos meus pensamentos o camarada rematou:

- Tudo bem! Se não me quer dizer não diga, são coisas da sua vida. Desculpe ter perguntado…

Percebi pelo tom da sua voz que ficara decepcionado com o meu mutismo e aquilo foi como que um abanão na minha consciência. Era um amigo que ali estava a falar comigo. Um amigo generoso, preocupado, que merecia por isso mesmo e não só, uma explicação.

E de repente desatei a falar.

Contei-lhe quase na íntegra a mesma coisa que contara à minha mulher durante toda a anterior madrugada. Desde o alistamento em Portalegre até à sandice da véspera ocorrida no posto pelas minhas costas. E mais lhe disse que quando no fim da patrulha chegássemos ao posto ia meter o requerimento para sair definitivamente da guarda porque estava farto de injustiças e enxovalhos embora tivesse plena consciência que a culpa não era da nobre instituição.

E mais lhe disse também que não me “ensaiava” nada para “enfiar” com a coronha da mauser na cabeça do traste que fora capaz de inventar uma calúnia daquelas. Seria muito difícil mesmo que ele não ficasse a saber com quantos paus se faz uma canoa antes de eu entregar o crachá.

Ele ouviu-me sem nunca me interromper apesar de eu ter estado bem mais de meia hora a falar emocionadamente.

Quando me calei aquela boa pessoa e extraordinário amigo apenas me perguntou tranquilamente e sem qualquer vestígio de surpresa:

- E já pensou bem no que essa sua decisão vai significar para o bem-estar da sua família e futuro dos seus filhos?

Respondi que sim, que tanto eu como a minha mulher tínhamos chegado juntos à conclusão que para sermos uma família feliz e cuidarmos do futuro deles não era necessário que eu tivesse que andar a levar pontapés de todo o fiel farrapo, daquela maneira.

Notei pelo semblante e pela forma como abanava a cabeça em sinal de desaprovação que o meu camarada não concordava nada comigo. Ouvia-me atentamente mas sempre a abanar a cabeça como quem diz não estou de acordo!

Quando por fim me calei começou ele a dizer de sua justiça:

- Coelho! Quando se soube neste posto que você vinha para cá surgiram logo algumas conversas sobre a sua pessoa. Ainda mais porque tem ali três conterrâneos seus que o conhecem desde pequeno a si e à sua família. Depois nas concentrações da reforma agrária quando nos juntávamos com os camaradas dos postos lá da sua zona, mais mexericos havia. Por isso, quando você cá chegou, eu e os outros camaradas já sabíamos de todas essas peripécias que acabou de contar e que lhe fizeram no seu alistamento…

E continuou:

Agora responda-me com franqueza! Alguma vez se sentiu maltratado por nós, desde que aqui chegou?

- Não! Nunca! Pelo contrário. Respondi-lhe.

E ele prosseguiu:

Se você é comunista ou não ninguém tem nada com isso. Em democracia pelo que dizem, tem os mesmos direitos que têm os outros de serem dos partidos que querem. A única coisa que você cá na guarda não pode, é manifestar-se publicamente nem a favor nem contra, seja por que partido for. Porque o nosso dever é sermos isentos. Ensinaram-lhe também isso no alistamento, não ensinaram?

- Sim. E de que maneira! Esclareci eu. E rematei:

- Mas no alistamento só falavam mal dos comunistas. Dos outros nunca ouvi dizer mal!

- Pois! Mas isso são outros quinhentos. Disse.

- Preste atenção ao que eu lhe vou dizer, Coelho. Desde que você para cá entrou que o querem por na rua e se não o conseguiram foi porque você soube defender-se. Se você hoje meter o papel para sair estará a fazer exactamente o que eles querem que você faça e a dar-lhes razão. E mais! Esse nosso camarada que o faz desistir da sua carreira vai ser o herói, porque consegue fazer sozinho aquilo que os graduados todos juntos não foram capazes de fazer.

- Agora diga-me. Acha que vale mesmo a pena? Acha que eles merecem que você sacrifique o seu futuro e a sua família?

Eu ouvia-o fascinado pela clarividência do seu raciocínio. No fundo, muitos dos seus argumentos eram o eco do meu subconsciente. Tinha lutado tão arduamente contra todas as tentações de responder à letra a tantas provocações... E, de facto, tinha levado a melhor protegido apenas pela força da minha razão e tranquilidade de consciência.

Como eu fiquei em silêncio a conjecturar e a assimilar o que ele me tinha dito, aquele amigo continuou.

- Eu até concordo que você deve sair deste posto. Mas não para as Minas da Panasqueira, nem sequer para outro posto qualquer porque em todos você irá encontrar coisas boas mas também as chatices normais de qualquer outra profissão. Por isso, eu se fosse a si, saía sim, mas de cabeça erguida e para melhor! Concorra a cabo. Você é capaz que eu já vi que é. E todos os anos saem convites na ordem de serviço para concorrer quem quiser. Vá-se preparando e quando chegar o momento aceite o convite. Ao menos sai por ter subido de posto e por mérito seu, dando uma valente bofetada de luva branca em todos esses que querem correr consigo!

E quanto ao nosso camarada (…) mais aquilo que ele ontem disse, eu estava lá e também o ouvi, mas ninguém fez caso nem concordou com ele. Foi uma parvoíce dele mal pensada e eu se fosse a si nem fazia caso disso. Faça que nem sabe e pronto. Quem lhe foi a correr contar é que também não procedeu lá muito bem! Às vezes penas que se não sabem, não se sentem. E coisas dessas, olhe, o desprezo é a melhor resposta.

Escusado seria dizer que a minha alma estava parva com semelhante lógica, com tão cristalino ponto de vista, com o inteligente raciocínio e ainda melhores conselhos daquele amigo ímpar, camarada de excepção, experiente e com um coração do tamanho do mundo.

Era como se mais uma vez a providência divina tivesse mandado outro anjo para afastar as pedras do meu caminho e indicar-me o melhor percurso a seguir. Obviamente não fiquei indiferente à lógica absoluta e contundente do discurso do meu camarada. Ali naquele lugar, lá bem no cimo da serra mais perto de Deus por estar tão alto e encostado à casa de Nossa Senhora da Penha, a razão desceu suavemente sobre o meu até então conturbado espírito e senti uma benfazeja serenidade invadir-me.

O meu camarada tinha carradas de razão. Eu estava a ver mal o filme e a deixar-me levar pelo impulso e pela agressividade. Havia de facto melhores formas de tentar sair dali e eu andara a prepará-las desde que lá chegara. Estava, nessa altura, já muito embrenhado em leis, códigos, regulamentos, isto e mais aquilo. Aquele objectivo que o meu camarada apontara era exactamente o que eu me propusera alcançar. Não parar. Não me acomodar. Trabalhar para ir mais além…

E seria isso mesmo que eu iria fazer. Concorrer a cabo assim que pudesse. E estudar mais para conseguir passar nas provas de admissão.

Só de uma coisa eu não ia abdicar de maneira nenhuma. Tinha que ter uma conversa cara a cara com o camaradinha que ousara duvidar da minha honestidade. Fosse como fosse, fosse quando fosse. Não seria capaz de fingir que nada sabia conforme me aconselhava este amigo. Eu precisava esclarecer aquela dúvida, mais que dúvida, aquilo que para mim era um ofensivo e feio insulto.

Porém, quanto a isso, mais nada disse naquela manhã na Senhora da Penha, ao meu camarada.

Quando descemos a serra pelo outro lado em direcção à Senhora da Luz parecia que o sol brilhava ainda mais, que o dia de repente tinha ficado ainda mais luminoso. E eu, de vez em quando, olhava de soslaio e profundamente agradecido o camarada que Deus mandara para me aconselhar melhor depois de uma noite de desgosto e de raiva que tanto havia preocupado a minha adorável e compreensiva companheira.


José Coelho in Histórias do Cota

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem copiada do Google


O porta-moedas


Não há bela sem senão, diz o ditado. A pacata normalidade em que a minha vida se transformara desde a colocação em Castelo de Vide foi de repente sacudida por um desagradável incidente, talvez mais fruto daquele espírito de mal dizer que todos nós praticamos um pouco de vez em quando, do que de verdadeira intenção de me caluniarem. Mas eu não gostei nem um pouco e caiu-me tão mal e tão fundo que a coisa esteve mesmo muito feia.

Mas é melhor começar pelo princípio.

Foi numa sexta-feira de mercado franco que se estendia por toda a Carreira de Baixo e Praça D. Pedro V. De patrulha pelo recinto, cirandava despreocupadamente por entre as bancadas daquele de-tudo-um-pouco quando um tendeiro me chamou para me entregar um porta-moedas que alguma freguesa deixara esquecido sobre a sua bancada repleta de tecidos.

Dizia-se (e continua a dizer-se) tão mal dos ciganos e tendeiros que a atitude honesta do homem nos surpreendeu e mostrou que afinal eles são, como toda a gente e como eu sempre pensei também, bons e maus, melhores ou piores, exactamente como o resto das pessoas. Logo ali abrimos o dito cujo porta-moedas. Continha uma nota de mil escudos, alguns trocos em moedas e um papel onde estava escrito:

“ Saia de camilha medida de 1,80 m - Fernanda Maniés.”

Mal vi o nome disse logo ao senhor que já imaginava de quem poderia ser aquele porta-moedas. Mas, pelo sim, pelo não, nada mais adiantei.

A tal Fernanda Maniés mencionada no papel que estava dentro do porta-moedas era a esposa meu primo-irmão Augusto Maniés que morava na Travessa do Forno muito perto da minha casa.

Porém e como era meu dever levei o porta-moedas para o posto no final da patrulha, registei a ocorrência no livro próprio para os achados e deixei-o ao cuidado do plantão como era uso e costume. Mil escudos no início da década de oitenta eram ainda uma mão cheia de dinheiro. Imaginei a aflição da prima e a falta que lhe deveriam fazer, por isso quando fui almoçar bati-lhe à porta e perguntei-lhe apenas:

- Fernanda, falta-te alguma coisa?

Com ar preocupado ela respondeu-me:

- Sabes lá Zé Manel! Perdi o meu porta-moedas no mercado e não há quem ature o teu primo. Até já brigámos por causa disso…

Eu poderia ter-lhe dito logo ali que devia ser aquele que o tendeiro me tinha entregue e eu deixara no posto. Mas pelo brio profissional que sempre me prezei de ter e para evidenciar o quanto era isento no desempenho das minhas funções, apenas disse:

- Está um porta-moedas no posto que um tendeiro entregou. Passa por lá, indica os sinais que identifiquem como era o que tu perdeste, porque, se for aquele, o plantão devolve-to imediatamente.

Curiosamente e porque essas coisas nos marcam profundamente, passados todos estes anos ainda me lembro que o plantão era o camarada que me tinha dado boleia a Portalegre às escondidas, para ir ver o meu filho Pedro recém-nascido.

Entretanto fui almoçar e voltei a seguir para o posto. Naquele tempo não era como é hoje. Se estivéssemos escalados para sair de patrulha às sete ou oito da tarde, tínhamos que ir para o posto a partir das nove da manhã e lá permanecer até às cinco da tarde. Depois íamos fazer a respectiva patrulha de oito horas, contínuas ou repartidas, conforme o caso.

Se pelo contrário estivéssemos a sair de madrugada e a regressar até ao meio-dia, às duas da tarde tínhamos que nos apresentar no posto à mesma e ali permanecer até às cinco. Só as patrulhas de oito horas nocturnas consecutivas davam o dia seguinte de folga porque eram quase sempre da meia-noite às oito da manhã. Porém muitas vezes acontecia por exemplo estar-se de patrulha à vila até à meia-noite, e, à meia noite e um minuto entrar novamente de patrulha nocturna até às oito do dia seguinte. Ainda assim estávamos sempre desejando fazer essas nocturnas para ficarmos em casa no dia seguinte com a família.

Era uma quase escravidão. Muitos, mas muitos dias mesmo, fazíamos dezasseis ou mais horas diárias por causa dessa permanência obrigatória no posto, fosse qual fosse o horário da patrulha em escala de serviço. Sábados, domingos e dias santos incluídos, com direito apenas a um dia de folga semanal. Por isso, estávamos no posto durante as horas do dia, nove ou dez guardas, entre plantão, apoio e piquete, para além dos que iriam patrulhar ao fim do dia, nunca sendo escaladas simultaneamente mais do que duas patrulhas. Uma à vila, outra à estrada ou aos campos. E quando aquelas regressavam saíam outras duas cobrindo-se assim normalmente as 24 horas de cada dia com pessoal sempre na rua pronto para qualquer ocorrência.

Apenas o comandante de posto era um lorde que não fazia nada. Vinha de casa às nove, dizia umas lampanas, desenrolava as cusquices que pairavam pela vila e ao meio dia ia almoçar. Depois às duas ia tomar café e saber mais umas novidades e vinha fazer a escala para o dia seguinte. E às dezassete voltava para sua casa dizendo “até amanhã, meus senhores”, voltando por ali a aparecer de vez em quando já de traje civil originando que todos nós murmurássemos em surdina:

- Quando eu for grande quero ser cabo e comandante de posto…

Mas voltando à narrativa daquela sexta feira e ao porta moedas da Fernanda Maniés, sendo o meu serviço o de patrulha à vila e, simultaneamente ao mercado, fiz quatro horas na parte da manhã e fui fazer outras quatro da parte da tarde. Entretanto a prima já tinha ido ao posto, já lhe tinha sido entregue o porta-moedas pelo plantão porque facilmente se provou que era mesmo o dela, a qual, por sua vez, já tinha ido agradecer e gratificar o tendeiro que tivera a honestidade de o entregar. 

Por isso, quando por lá passei de novo, o homem veio logo dizer-me tudo isso sem saber que a Fernanda ainda era minha parente. Nem eu lho adiantei, por o achar desnecessário.Terminei pacificamente o meu horário de patrulha e regressei ao posto sem mais novidade. Quando entrei estava o cabo comandante a rir-se muito e verifiquei que o tema da conversa era o porta moedas perdido e depois recuperado, mas não liguei.

Fiz a respectiva apresentação e o relatório verbal do costume indo em seguida arrumar a arma e o bastão. Mantive-me depois por ali mais um bocado até se fazerem horas de jantar. Entretanto a tal conversa já tinha mudado de rumo e alguns dos camaradas que nela eram intervenientes já tinham ido embora também.

Decidi por fim ir para casa acompanhado de outro camarada meu vizinho, aquele que era de Alegrete e morava na Rua Nova muito perto do "meu" Cipresteiro. Para além de ser um excelente camarada, estabelecera-se já entre nós e as nossas famílias uma boa amizade. Talvez mais por isso do que por tendência em fomentar intrigas, assim que nos afastámos um pouco do posto, começou por me dizer:

- Amigo Coelho vou-lhe contar uma coisa mas você faça de conta que não sabe. É mesmo só para você se por a pau com algumas pessoas que se fazem muito suas amigas lá dentro do posto mas depois nas suas costas…

Esperei que ele continuasse sem dar grande importância porque, de consciência tranquila em relação a tudo o que fazia e dizia no meu dia-a-dia não temia nada que pudesse perturbar esse meu sossego de espírito.

- É sobre a carteira que você hoje levou para o posto. Continuou ele.

- Quando você chegou não se apercebeu da conversa? Inquiriu.

- Sim! Respondi. Apercebi-me que estavam a falar nisso mas não prestei atenção. 

- Pois! O nosso camarada (…) estava a dizer que se calhar você combinou o jogo com a sua prima Fernanda para ela ir lá buscar a carteira e depois dividirem o dinheiro a meias. Mas você não diga nada…

Foi como se um raio me atingisse de súbito.

Não era possível que um energúmeno daqueles fosse capaz de descer tão baixo e acusar-me de uma coisa tão suja, achando-me capaz de algo tão desprezível. Logo um conterrâneo meu, cujo pai fora, segundo ele mesmo contava, o mestre pedreiro construtor da casa do meu pai e que se gabava até de a ter ajudado a construir por ter também lá trabalhado em 1950. E, como se isso não bastasse, era ainda um dos camaradas que eu mais admirava e respeitava pela sua impecável postura, pelo seu profissionalismo, pelo seu porte irrepreensível de agente da autoridade o qual me esforçava por imitar na medida do que era capaz, tendo-o mesmo eleito como o modelo de guarda perfeito que eu tencionava seguir.

Hoje à luz da maturidade e da reflexão que o tempo sempre nos traz, reconheço que aquilo foi apenas e só uma “boca” infeliz dele, um mero palpite mordaz, uma cusquice bacoca e sem qualquer fundamento, enfim, uma parvoíce daquelas que todos nós humanos pronunciamos de vez em quando em momentos menos ponderados da nossa complexa existência.

Mas naquele dia e naquele contexto, tal acusação foi para mim um poderoso veneno altamente tóxico e absolutamente impossível de digerir e ficar calado..


José Coelho in Histórias do Cota

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Beirã - Ruas vazias - Tarde de Domingo de Páscoa, 2017...

Foto by Maria Manuela Coelho

Coisas q'escrevi...

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Primeiros passos no comando


No ano de 1981 foram colocados no posto de Castelo de Vide três militares mais novos do que eu, pelo que passei a ser, a partir daí e muitas vezes, comandante de patrulha já também. E foi no final de uma manhã de inverno que, inesperadamente, tive que por à prova tudo o que até ali tinha aprendido.

Era meio-dia e estava de patrulha de prevenção (ou piquete) com um desses camaradas mais novos. Íamos já de regresso ao posto quando o plantão nos avistou no carreiro do jardim e nos chamou com notória urgência porque tinham acabado de telefonar do Pouso a informar que estavam duas senhoras idosas mortas dentro da casa de uma delas.

Cinco minutos depois estávamos lá.

Ninguém se atrevera ainda a entrar nem a mexer em nada. Viam-se as duas senhoras através da vidraça da janela sentadas num sofá e aparentemente inertes. Nem pensei duas vezes. Tinham-me ensinado que uma pessoa só pode ser considerada morta depois de observados indispensáveis e determinados procedimentos que indicam inequivocamente se há ou não sinais vitais num corpo humano. Os nossos instrutores iam ao exagero de comentar que só quando a cabeça estiver separada do corpo é que um guarda pode concluir que a vítima estará já morta.

Mas eu agi por impulso e em conformidade com o raciocínio de tudo o que os meus olhos viam e interpretavam naquele momento, porque, mal entrei, percebi de imediato a tragédia. No instante seguinte corri para as portas e janelas que abri de par em par para deixar entrar o ar puro e frio naquele exíguo espaço saturado de monóxido de carbono.

A televisão continuava ligada, mas de emissão apenas um formigueiro cinzento no ecrã. Foi no tempo em que a emissão da RTP encerrava à meia noite e não havia ainda canais privados como hoje. Uma das senhoras aparentava estar morta há algum tempo, mas ainda assim tentei encontrar-lhe qualquer sinal de vida. Sem resultado. A outra senhora ainda estava morna e não parecia ter a lividez da morte. Parecia como que adormecida e ainda com alguma cor nas faces. Corri para ela e auscultei com o ouvido o seu peito. O coração ainda fazia ouvir um fraco e irregular tum-tum. Senti como que um estertor e pensei que a senhora estava mesmo a ir-se embora. Em simultâneo pensei também que talvez eu fosse capaz de ministrar-lhe os primeiros socorros que me tinham ensinado na tropa e no alistamento da guarda.

Não perdia nada em tentar.

Pedi ao meu atrapalhado camarada que me ajudasse a carregar a senhora para a rua e estendemo-la no chão sobre uma manta do sofá ao ar frio daquele início de tarde. Desapertei tudo o que a apertava em termos de roupa pois pareceu-me que a senhora queria respirar e não conseguia. Nunca tinha feito tal coisa, apenas me tinham ensinado como fazer se um dia fosse preciso. E nem hesitei mais. Tinha mesmo que ser! Ali parados a vê-la morrer é que não me parecia o mais correto porque sou daqueles que acham que enquanto há vida, há esperança.

Ajoelhei ao lado da senhora, enchi o peito de ar e soprei para dentro dela, boca com boca. Depois parei e comprimi-lhe o tórax. Um, dois, três… E voltei a soprar-lhe mais ar na boca. Repeti a operação várias vezes e não sei se foi a minha aflição de não a deixar morrer ou se me pareceu que a senti reagir ligeiramente. Tudo parece muito fácil de fazer quando nos está a ser explicado pelos especialistas, mas na prática é bem mais complicado e difícil. A senhora parecia que tinha o queixo rígido e eu mal conseguia abrir-lhe a boca. Depois, com o volume dos seios, não sabia muito bem onde e como carregar com força suficiente para massajar o coração da senhora mas sem a magoar.

Hoje já existe um boneco de latex maleável para esses treinos em instrução, mas no meu tempo era só em teoria.

Tinha descomposto a senhora porque havia-lhe desapertado a blusa, o soutiã, a saia e as ligas de elástico das meias. Voltei a teimar e a repetir a minha inexperiente técnica de boca a boca, mais um, dois, três, sobre o tórax. Então, de repente… aleluia! A senhora deu um ai em surdina, tossiu como se estivesse engasgada e começou a respirar. Primeiro entrecortadamente com alguma dificuldade mas pouco a pouco a respiração aparentemente normalizou. E eu apenas fui capaz de pensar extremamente aliviado.

- Consegui, catano!

Nunca falei disto a ninguém na minha vida. Mas foi decerto aquele o meu primeiro momento de grande e sensibilizadora realização profissional. Senti-me tão bem comigo mesmo que só para o viver valera a pena ter passado pelo calvário que foi a minha integração na GNR. Entretanto chegaram os bombeiros com uma ambulância para levarem “os dois cadáveres" logo que o delegado de saúde e o ministério público dessem ordem para levantar os corpos, porque a voz que correra pela vila era de que estavam as duas inequivocamente já mortas.

Contudo, assim que viram a senhora já sentada a recuperar e a tentar recompor-se, meteram-na imediatamente na ambulância e transportaram-na para o hospital da vila para lhe serem ministrados os cuidados de saúde próprios e adequados para ela se recompor completamente.

Enquanto a senhora sobrevivente era transportada para o hospital eu e o meu camarada de patrulha continuámos por ali até à chegada das entidades competentes para se poderem efetuar os trâmites seguintes. E, enquanto eles não chegavam, iniciei de imediato um inquérito sumário sobre a causa do funesto acontecimento que até nem fora nada difícil de concluir.

Averiguei que as senhoras costumavam passar os serões invernais a ver a série Dallas na televisão naquela pequena salita e que, ao cair da noite na véspera, estivera um frio tão cortante que decidiram fazer um braseiro para se aquecerem e ficarem mais confortáveis. Porém, antes de se instalarem no sofá para o seu televisivo serão, fecharam cuidadosamente todas as portas e janelas.

Erro fatal.

Dada a exiguidade da sala o resto aconteceu sem se aperceberem que se tinham fechado numa armadilha mortal, silenciosa, inodora e que não emite qualquer sinal de aviso. O confortável calorzinho do braseiro foi aquecendo o ambiente mas simultaneamente foi também envenenando o oxigénio vital substituindo-o pelo perigoso dióxido de carbono que traiçoeiramente as intoxicou.

Inexplicavelmente, uma das senhoras deve ter sucumbido logo às primeiras horas porque estava já em rigidez cadavérica quando eu cheguei e os líquidos que expeliu na sua agonia já estavam completamente secos e agarrados à pele, enquanto a outra senhora conseguira resistir durante todas aquelas horas, sendo possível reanimá-la e trazê-la de volta. A anormal ausência das duas só fora detetada porquanto tinham combinado irem à missa com umas vizinhas do lado, as quais, como elas não apareciam, foram procurá-las a casa e deram o alarme.

Alguns dias depois fui visitar a sobrevivente ao hospital. Sentia uma enorme paz interior cada vez que memorizava os meus atabalhoados esforços para a reanimar e como naqueles aflitivos momentos a gente é capaz de fazer tudo quase automaticamente para tentar salvar uma vida.

A senhora permanecia ainda muito combalida e confusa não se sabendo até que ponto o seu cérebro teria sido afetado pela falta de oxigénio no ar que ela respirou durante horas. Um dos filhos que estava presente agradeceu-me encarecidamente pois os bombeiros tinham-lhe contado tudo. Disse-me que jamais esqueceria isso e queria recompensar-me pelo que eu tinha feito pela mãe.

Disse-lhe que apenas tinha cumprido o meu dever e que a minha recompensa já a tinha recebido no momento em que a senhora sua mãe se recompusera. Agora só o tempo e os adequados cuidados de saúde a que estava a ser sujeita fariam o resto. O senhor compreendeu. Ficámos amigos até hoje apesar de a senhora já ter falecido depois de ter vivido bem e com saúde mais uma boa dúzia de anos depois daquele dia. Onde quer que me vê o senhor faz questão de vir cumprimentar-me e convidar-me para um cafezinho que eu umas vezes aceito, outras vezes retribuo.

São passados quase quarenta anos desde que aquilo aconteceu. Ainda há por aí gente portadora de nobres sentimentos, felizmente.

Foi também nessa manhã e no meio daquela tragédia que percebi toda a complexidade que encerra a vida de um guarda. Nos anos seguintes pude testemunhar e até intervir novamente em situações semelhantes. E, cada vez que isso aconteceu, senti sempre que mais do que uma profissão, ser-se agente da autoridade é, sobretudo, uma missão muito nobre na vida de todos os homens e mulheres que, generosamente, se dispõem a dar a cara pelo bem-estar e tranquilidade públicos, ainda que a maioria dos cidadãos apenas se preocupe e analise a quantidade de coimas que os guardas fazem, esquecendo que essa é apenas mais uma forma de proteger quem, civilizadamente, cumpre as regras de convivência e civismo em sociedade.

Infelizmente muitas pessoas impressionam-se e questionam mais uma coima de trinta euros do que se impressionam ou questionam com aquele condutor irresponsável que atropelou e matou um pacato cidadão que atravessava tranquilamente a rua numa passadeira para peões devidamente sinalizada...


José Coelho in Histórias do Cota

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

O Pedro já com 3 meses e o Manel amuado porque queria
a bicicleta que estava no estúdio do fotógrafo



A família cresceu


O melhor desse ano de 1980 que começara para nós tão bem estava ainda para vir. Pouco tempo depois, aquele que viria a ser o quarto elemento da nossa família, anunciou que vinha a caminho. Que coisa melhor pode acontecer a um casal do que essa verdadeira bênção? Mais um filho. Que maravilha! Menino ou menina, não fizemos nunca escolhas antecipadas. Viesse o que viesse seria muito bem-vindo. Que tivesse perfeição e saúde, era a única coisa que nós pedíamos a Deus.

Foi aquele um tempo muito duro para todos os gnr’s. A reforma agrária continuava pelas herdades do distrito com as habituais tensões e conflitos a originarem inimizades com tudo o que era guarda. Curiosamente, tal facto era gerador de uma unidade interna e familiar muito forte. Confiávamos uns nos outros, sentíamo-nos seguros uns com os outros, éramos unidos como uma grande família. Por sua vez as nossas famílias davam-se também muito bem, o que gerava de facto um ambiente muito íntimo, muito nosso e muito acolhedor.

O serviço era exigente e rigorosíssimo. Não havia facilidades para ninguém. Casa, posto, e posto, casa. Nem vagar havia para se estar doente. Uma folga por semana e se pudesse ser, porque o serviço tinha prioridade. Quem lhe calhasse a folga à terça ficava “ad-eternum” a folgar às terças, enquanto os sortudos que lhes calhava o domingo, idem, idem, aspas, aspas.

Tínhamos que fazer 72 horas consecutivas duas a três vezes por mês, porquanto o plantão era 24 horas de permanência no posto, seguido do apoio ao plantão, com outras 24. Para rematar entrava-se de piquete com outras 24 horas de serviço mas já com a benesse de se poder ir dormir para casa, mantendo-se no entanto atento e sempre pronto para resolver qualquer ocorrência até ao dia seguinte quando os outros camaradas nos substituíam.

A escala era por isso muito exigente. Mas era assim em todo o lado. O serviço era o dono e senhor da vida de cada guarda. A família tinha que se contentar com as sobras de Sua Excelência, o Serviço. Festas e fins de semana eram coisas para civis porque nós éramos militares. E um militar da guarda tinha que estar sempre pronto fosse para o que fosse, 24 sobre 24 horas. O militar está sempre de serviço. Era o lema, a disciplina de ferro. E diziam os oficiais rondantes nas suas visitas para que ninguém duvidasse:

- Quem não estiver bem, meta o papel e vá-se embora…

A comprovar a prioridade exagerada e desumana que era dada na GNR ao serviço diário naquele tempo, vem a propósito referir o facto de o meu segundo filho ter nascido exatamente num dia em que eu estava de plantão ao posto. O parto correra normalmente embora a mãe ficasse bastante combalida porque o gaiato nasceu com mais de quatro quilos e a pobre viu-se e desejou-se para o trazer ao mundo. Em consequência do tamanho e peso anormais o Pedro teve que ir para a incubadora e ser mantido em vigilância permanente durante alguns dias afim de ser monitorizado para despiste de algum eventual problema cardíaco ou respiratório. Só depois seria entregue à mãe.

Eu estava evidentemente feliz mas algo preocupado com o facto de o menino ter ido para a incubadora. E naturalmente desejoso de lá ir vê-lo, animar a mãe e falar com o médico pediatra, para esclarecer as minhas naturais inquietações. Mas não pude ir. Estava na tal “quarentena” das 72 horas inseparável do posto. O Pedro nasceu no dia 22 de Abril. Para completar o meu castigo, no dia 23 saí do serviço de plantão às nove da manhã e entrei às nove e um minuto para mais 24 horas no apoio ao plantão que era exatamente a mesma treta e só mudava o nome. Nem dava sequer para ir tomar o pequeno-almoço a casa.

Eram 48 horas batidinhas e seguidas sem tirar aqueles suspensórios pretos horríveis e herdados do III Reich, tal como as espingardas Mauser, de tal modo que ostentavam ainda o monograma da águia sobre a cruz suástica gravado na zona da culatra. Aliás, todo o nosso uniforme nesse tempo era uma inspiração quase fiel do equipamento militar nazi. Felizmente alguém teve o bom senso e ainda o melhor gosto de o mudar e humanizar mais um pouco, porque todo aquele visual nos fazia parecer uma gestapo portuguesa.

Como consequência do meu azar na maldita escala de serviço, só pude conhecer o meu segundo filho quando ele tinha já três dias. Valeu-me um camarada da Ranginha, que, sabendo o que se estava a passar se ofereceu para me levar no seu carro ao hospital de Portalegre às escondidas e sem ninguém saber, pois nem sequer podíamos sair da área do nosso posto sem autorização superior. Seis anos depois do 25 de Abril de 1974 a GNR continuava parada no tempo e quase igual ao que era antes dele.

Inacreditável!

Fui encontrar o meu menino ainda dentro da incubadora. Tive que colocar uma touca, calçar pantufas e colocar uma máscara, tudo esterilizado, para entrar naquela sala cheia de balões de vidro com bebés lá dentro. E lá estava o meu matulão a chorar que nem um desalmado.

- Deve ter medo do meu estranho traje! Pensava eu, feliz.

Como gritava a plenos pulmões! Não parecia nada um bebé com problemas de saúde. Parecia, isso sim, um refilão de primeira. A enfermeira veio ao meu encontro e disse-me que sim, que ele era muito refilão porque não parava quieto nem calado.

Pouco depois veio também o pediatra ter comigo para me informar o motivo porque o miúdo ali permanecia. Que era apenas mera precaução, em virtude de algum excesso de peso. Mas não havia qualquer problema e que fosse para baixo para junto da mãe que o bebé já lá iria ter connosco.

E assim foi.

A mãe, coitada, é que ainda não se tinha recomposto. Parecia que tinha sido atropelada por um camião. Passara mesmo um mau bocado no parto, mas, tal como eu, estava muito mais preocupada por lhe terem levado o menino do que com as suas próprias mazelas. Tranquilizei-a, disse-lhe o que o médico me tinha acabado de dizer, e, não podendo demorar muito mais porque estava ali “fugido”, regressei ao posto mais sereno e feliz.

Garanto-vos uma coisa. Todos as desumanas barbaridades por que passei, formaram no meu íntimo uma determinação inabalável. Sabendo quanto me custou tudo aquilo, jamais o esqueci, mas não só. Em consequência disso agi sempre exactamente de forma totalmente oposta quando anos mais tarde fui comandante de posto. Em vez de complicar, ajudava quanto podia, todos os subordinados, sempre que precisavam dessa ajuda. Imaginava-me no seu lugar e assumi sempre a responsabilidade de os substituir quando surgiam problemas inesperados que precisavam ser resolvidos de imediato. Porque, no dia em que adquiri a responsabilidade de comandar efectivos, assumi também no meu íntimo um solene compromisso:

- Nunca fazer a ninguém, o que me fizeram a mim.

O serviço era de facto muito exigente. Mas o cabo comandante do posto podia, se tivesse querido, dar um jeitinho para eu ir numa fugida ver o filho e a mulher, mesmo estando de plantão. Qualquer camarada me substituiria durante duas ou três horas até eu voltar. Era uma questão de mera humanidade e o serviço não parava. Felizmente, hoje a Lei concede direitos a qualquer pai e nenhum comandante prepotente pode já cometer tais atropelos e injustiças.


José Coelho in Histórias do Cota