Casa da Avó Amélia - Cavalinha - Foto José Coelho
Muito cedo comecei a alimentar o
sonho de um dia conseguir alcançar uma vida menos sacrificada do que a dos meus pais e
avós, e, se possível, não muito longe da terra nem deles, porque sinceramente nunca me senti tão bem em lado nenhum como me sinto na minha
aldeia e junto dos meus.
Sou descendente de duas famílias
de modesta condição económica, quer a materna Lourenço, quer a paterna Coelho.
Mas ambas desfrutavam da suprema felicidade de serem abastadas em valores e princípios. De trato afável e semblante por norma feliz, aceitavam
sem complexos a sua condição social com dignidade e sem invejarem ou cobiçarem
a vida da outra gente.
Dos meus avós paternos pouco pude desfrutar porque viviam em Castelo de Vide de onde eram naturais. O avô Faustino Coelho era o cantoneiro da Estrada da Póvoa e Meadas e veio morar connosco nos últimos anos da sua vida. Já a avó Adelina, faleceu quando eu era ainda bebé e por isso não consegui guardar dela qualquer memória visual, a não ser em fotografias.
Os meus avós maternos, que me ajudaram a criar, viviam o
seu dia a dia com uma simplicidade que ainda hoje recordo carinhosamente
e com imensa saudade. Não passavam fome e a avó Amélia nunca deveu nada a
ninguém, conseguindo até amealhar, das suas pequenas reformas, o
pezinho-de-meia que tinha guardado para prevenir eventuais necessidades imprevisíveis.
Era uma mulher pequenina, amorosa, de trato meigo e muito carinhosa com os netos. Uma formiguinha trabalhadeira
que sempre arranjava algo para fazer nas suas lides caseiras, que ia a pé, e a
pé voltava, da Cavalinha ao mercado de Santo António das Areias todos os sábados,
para “mercar” muitas vezes apenas algum queijo e mais dois ou três litros de milho para as suas galinhas
poedeiras.
O meu avô Zé Lourenço, grande e querido
amigo, não só de mim como de todos os outros netos, era quase cego – tal como
aconteceu depois às suas duas filhas, a minha mãe e a minha madrinha Jacinta – por isso desde muito novo raramente deixava o seu cantinho na
Cavalinha. Partiu inesperadamente aos 67 anos, vítima de uma bronquite
asmática. E foi a mim que calhou, nessa triste manhã, levar à sua companheira de uma
vida, a notícia do seu falecimento no hospital de Portalegre, onde se encontrava internado já há duas semanas em estado muito grave.
A partir daí todos os fins de
semana passei a ir ter com a avó Amélia porque adorava a sua companhia e almoçar ou jantar com ela as
paparocas deliciosas que ela cozinhava nas panelas e tachos de barro em lume de
chão, para o qual eu ia sempre buscar-lhe dois ou três feixes da lenha que ela necessitava e nunca mais deixei que lá se lhe acabasse. Mais tarde já bastante velhinha e muito
perto dos 90 anos, acolhi-a definitivamente em nossa casa onde a minha mãe, que
também connosco morava, cuidou amorosamente dela até ao dia em que nos deixou e para ir ao
encontro do meu avô.
A pequena casa onde viviam junto
ao fresco ribeiro da Beirã, por detrás da caseta
da passagem de nível da Cavalinha, era imaculadamente branca por dentro e por
fora. Aquela varanda estava sempre impecavelmente caiada, limpa e arrumada, coberta por
uma frondosa e fresca latada que dava uns deliciosos cachos moscatel brancos.
Na grande janela alinhavam-se vasos com manjericos, cravos e flores de cera. E
havia ainda um canteiro com flores de noiva, dálias, açucenas e um cheiroso
alecrim, no ajardinado canto existente entre a casa e a cancela que dava para
o Caminho da Retorta.
Aquela casinha branca era um
pequeno paraíso de paz e de harmonia, habitado por duas criaturas maravilhosas com
quem dava gosto conviver porque eram o exemplo perfeito da honradez, da honestidade
e da perfeição humanas. Nunca tínhamos pressa de os deixar. E quando por
fim tínhamos que vir embora de ao pé deles, trazíamos sempre o desejo de lá voltar o mais depressa
possível.
O meu avô foi sempre um hábil
artesão manual. Mesmo sem ver quase nada, fazia uns pássaros de cortiça
muito bonitos, que, por meio de uma guita com um chumbo na ponta, ao balançar-se
o chumbo, este fazia com que os pássaros ganhassem vida baixando alternadamente
a cabeça e o rabo.
Havia também aquela melodiosa escaravela de lata em frente da casa com
uns pequenos badalos de madeira dispostos no seu eixo, que, ao rodar movida
pelo vento, produzia uma música engraçada. Consoante o tamanho do badalo, ao embaterem na chapa, um após o outro, faziam mais ou menos assim: Tec-tac-toc-tec-tac-toc…
Tec-tac-toc-tec-tac-toc… Sempre que
podia, passava com eles dias inteiros. Nem dava pelo passar das horas!
O meu avô era um grande
companheiro e um grande contador de histórias. Da guerra civil espanhola e de muitas
outras coisas que viveu e sabia. Tinha um dom tão especial para as contar que
nos prendia a atenção por completo. De tal maneira que ao ouvi-lo no mais
profundo silêncio, era como se estivéssemos a ver tudo aquilo que ele narrava.
Quando eu era mais pequeno ia com
ele algumas vezes para as tapadas onde ele era guardador de gados. Recordo particularmente aquele dia em que, junto aos Três Pontões, sentados os dois na parede da linha férrea e ao ouvir o zumbido dos cabos telefónicos que bordejavam a linha, lhe perguntei admirado:
- O que é que soa, avô?
Então ele pegou na minha mão, levou-me até ao poste que
sustentava as canecas dos fios telefónicos de cobre e mandou-me encostar o ouvido ao poste.
E o tal zumbido que ao longe era discreto, ali, com o ouvido encostado ao ferro,
fazia uma algazarra estranha, contínua e melodiosa, mais ou menos assim:
- Ziiinnng-zeennng-zoonnng-ziiinnng…
- Sabes o que estás a ouvir?
Perguntou-me a sorrir, divertido.
- Parece música. Respondi eu.
- Ah pois é! São meninas a cantar! Concluiu, rindo ainda mais divertido da minha cara de espanto.
É curioso como nunca mais esqueci esta história. Não teria decerto mais de 3 ou 4 anos. Ainda hoje lá
estão os três pontões, a parede onde nos sentávamos e o poste de ferro a olhar o céu, mas já sem os fios. Não sei se foram retirados quando encerrou o ramal ou se terão sido
roubados, mas cada vez que por lá passo basta-me cerrar os olhos por um momento para facilmente reconstituir mentalmente a cena que ali vivi há tantas décadas.
Os meus queridos avós partiram para sempre. Com eles foi, inevitavelmente, um pedacinho de mim. A casa onde eles moravam está hoje em ruínas, como a foto documenta. Mas aos olhos do meu coração a casa continua
branquinha, acolhedora. E eles permanecem lá, vivos na minha memória e no meu
amor que jamais os esquecerá. Consigo até vislumbrar a minha avó sentada
na sua cadeirinha de bunho na empena da casa, a costurar ao solinho da tarde.
E o meu avô sentado na parede a aparar a cortiça para construir os seus
engraçados passarocos. As rosas de Alexandria e as perfumadas açucenas
conseguem sobreviver há décadas e continuam a florir todas as primaveras por
entre o emaranhado de silvas e mato que quase cobrem a casa.
Inventei ainda outra maneira de
os ter mais cerca de mim. Antes que a parreira da velha latada da varanda secasse fui
lá buscar um garfo que dispus no meu quintal e por sorte pegou. Já colhi dela os tais doces cachos moscatel. E, como
não tenho a habilidade do avô Zé, comprei no mercado franco em Castelo de Vide
uma escaravela de lata parecida com dele e tem no meio uns arames que ao rodarem movidos pelo vento fazem um barulho parecido àquele que fazia a dele, mas muiiiito
menos musical.
Limita-se a um monótono tec-tec-tec… tec-tec-tec…
Dá, contudo, para os "sentir" próximos de mim.
Concretizei, entretanto, o meu sonho de menino. Consegui a duras penas alcançar a tal vida menos sacrificada do que a de todos eles. Consegui também não me afastar muito, nem deles, nem da aldeia. Mais ainda consegui vir viver definitivamente para cá porque consegui também comprar a casa onde nasci.
Todos, entretanto, foram partindo. Um após outro e já não tenho cá nenhum. Sei que um dia voltaremos a ficar juntos, mas às vezes é complicado gerir tantas perdas, tantas ausências, tanta falta dos afetos genuínos e puros que a vida me foi levando.
José Coelho in Histórias do Cota
José Coelho in Histórias do Cota