Foto Pedro Coelho
Tenho setenta anos. Tinha apenas seis quando comecei a servir na igreja de Nossa Senhora do Carmo da Beirã, como acólito.
Estávamos em 1958 e era pároco o Reverendo Joaquim Caetano, já falecido. Foi ele que me escolheu para ser um dos seus acólitos nesse ano,
mal comecei a frequentar a escola e a catequese. Ensinou-me princípios e
transmitiu-me valores tais que a ele devo também muito do que sou, quer na minha
formação como pessoa, quer no carácter e integridade. Por tudo isso guardo por
ele ainda hoje uma amizade, um respeito e uma consideração sem limites.
Mas voltemos um
bocadinho atrás no tempo. Contava a minha falecida mãe que desde
mui tenra idade eu desatava a
correr rua abaixo mal ouvia tocar os sinos:
- Zéi, mas aonde é
que tu vais a correr?
E que eu, eufórico, lhe respondia:
- Vou à micha, mãe! Vou à micha…
Tinha que
ser algo assim. Há de facto coisas inexplicáveis. Tudo indica que o meu fascínio pelo divino e pela Senhora do Carmo, começou logo na inocência da mais tenra idade.
Veio depois passados mais dois
ou três anos o convite para acólito do padre Caetano que me tratava como
a um filho. E porque a minha mãe não tinha posses para me comprar roupas finas
para o ir acolitar, era ele quem comprava tecidos e mandava fazer as roupas domingueiras às costureiras que naquele tempo abundavam na aldeia. Calções
e calças de terylene, camisas de popelina, casacas e blusões quentinhos. E comprava-me também sapatos na fábrica Ebro de Santo António das Areias, a única que por aqui
existia nesse tempo, pois só alguns anos mais tarde foi construída a Celtex.
Não haverá já por cá muita gente
que se recorde destas coisas e as que houver se calhar não vão ler estas minhas
memórias porque ou serão já muito velhinhas ou provavelmente nem saberão ler
nem escrever. Quem me conhece minimamente sabe, com toda a certeza, que não faço uso de mentiras, que sou frontal e digo sempre o que tenho a dizer cara a cara seja o que for e a quem for, além de que não faço também prática do detestável costume de andar a dar palmadinhas nas
costas das pessoas fingindo amizade, para a seguir, quando se vão embora, ficar a
cortar-lhes na casaca, como tanta gente faz e me tem feito a mim.
É certo, porém, aquele velho ditado que diz: "Cada um só pode dar aquilo que tem". E cá continuo no meu
tranquilo dia a dia completamente indiferente a todas essas ignomínias e falsidades. Por isso o que digo e escrevo é, por norma, a verdade, apenas a verdade e só a verdade. Sempre que tiver que dizer, seja o que for, mostro a cara, levanto a
voz, falo sem medo e sem má-fé, dizendo tudo quanto tiver que ser dito. É assim
que as coisas devem funcionar numa sociedade minimamente decente e bem formada.
Pese embora a
minha saúde ultimamente não tenha ajudado muito, tenho continuado a
colaborar em tudo o que posso e sei como tenho feito desde que vim morar definitivamente
para a Beirã em 1 de Novembro de 1992 e imediatamente me "alistei", com a minha esposa, quer no coro paroquial, quer como leitor e salmista até 1999. No ano 2000, 2001 e 2002, por indisponibilidade do então Conselho Económico Paroquial, foi-me solicitado pelos Revºs Párocos Tarcísio e Luís Ribeiro que tomasse temporariamente ao meu cuidado as contas da Paróquia até à nomeação oficial que só foi efetivada em 2003, a partir de quando integrei o Conselho Económico Paroquial oficialmente nomeado por Sua Eminência o Bispo da
Diocese para tais funções e por mandatos sucessivos, até ao dia de hoje.
Tenho guardados em suporte
informático e também em papel, todos os processos que justificam
escrupulosamente cada cêntimo de receita, cada cêntimo de despesa, semanais, mensais e anuais,
desde 2000. A contabilidade da igreja, das obras de restauro e conservação realizadas,
dos donativos, da instalação do relógio e automatização dos sinos, da colocação
das luzes LED, das despesas com vencimentos dos sacerdotes e todas as outras.
Ao pormenor, limpinhas e fáceis de entender. Tudo pronto a entregar a quem de
direito. E mais. Este cargo no CEP da Paróquia da Beirã, está, como sempre esteve, disponível todos os dias e a todas as horas, ao completo dispor de quem me escolheu e nomeou, prontíssimo a entregar a quem se oferecer para me substituir. É só chegar-se
à frente quem o quiser e seja muito bem-vindo.
Sei que sempre cumpri as minhas obrigações com lealdade, dedicação, esforço e empenho. Sei também que nunca
cobrei um cêntimo sequer por nada do que fiz. Ofereço, desde o já longínquo ano 2000, gratuitamente,
os meus serviços e tempo, o meu computador, tinteiros e resmas de papel da impressora, o combustível do
automóvel nas deslocações ao banco, às reuniões a Portalegre, a São Tiago, a Mem Soares, a Nisa, a Castelo de Vide, a Marvão e a muitas outras localidades onde
os párocos me solicitaram que fosse. Sozinho, ou quando muito, acompanhado apenas
e só pela minha esposa, a qual, por sua vez, cuida ainda também gratuitamente
do asseio e arrumação da igreja e dos altares em conjunto com outras duas
senhoras, para além de passar horas a conferir, a separar e a acondicionar as moedas dos
ofertórios e das caixas que posteriormente eu vou depositar no banco e na conta da paróquia
que está sempre em dia.
Paguei ainda do meu bolso o curso para ministro extraordinário da comunhão e para ministro da
celebração da palavra na ausência do presbítero - MECDAP - o curso para aprofundamento da
fé - CAF - que teve a duração de três anos letivos no Seminário de Portalegre, de muitas outras formações em Mem Soares, em Alcains, Abrantes e Proença-a-Nova. Deslocações, alimentação, combustíveis e pagamento
individual de cada curso ou formação. Com que intenção? Única e
exclusivamente formar-me minimamente para melhor conseguir colaborar em tudo o que me era proposto pelos párocos no serviço à comunidade paroquial a que pertenço e que, muitas vezes, em
vez de reconhecer a minha disponibilidade, a criticaram e botaram abaixo.
É
mais que verdade que "na sua terra ninguém é profeta". Muitas vezes me senti
triste e desmotivado por tudo isso. Muitas vezes também me apeteceu mandar tudo às
malvas, ir-me até embora de cá. Mas a sempre reiterada confiança e sincera amizade dos párocos Tarcísio e Luís Ribeiro, aliada à minha fé e à forte convicção de missão e de serviço à comunidade a que pertenço, conseguiram superar sempre a vontade
de desistir.
Até quando?
Neste preciso momento estou quase completamente desmotivado e afastado da Paróquia. Há mais de um ano que fico por casa limitando-me a fazer a contabilidade escrita mensal em conformidade com os registos semanais feitos pelas senhoras do CEP, após o que, em ato contínuo, vou depositar os valores na conta bancária da Paróquia, como sempre fiz. Entretanto e como escrevi no início, comecei nestas "andanças" com seis anos de idade. Estávamos, portanto, no Outono de 1958. Estamos no Outono de 2022. Passaram sessenta e quatro anos e continuo cá. Hoje só já não desato a correr pela rua abaixo quando ouço repicar o sino da igreja que ainda continua a ser o mesmo, mas as minhas pernas é que já não conseguem agora correr como corriam então.
Hoje sinto-me triste. Provavelmente a melhor forma de ilustrar o meu estado de espírito talvez seja reescrever aquele poema encontrado na parede de um dos dormitórios para crianças no campo
de extermínio nazi de Auschwitz:
“Amanhã fico triste… Amanhã!
Hoje
não… Hoje fico alegre!
E
todos os dias, por mais amargos que sejam, eu digo:
Amanhã
fico triste, hoje não…”
Desculpem a seca, mas quando começo a
escrever, perco-me no tempo.
José Coelho