terça-feira, 27 de setembro de 2022

Amanhã fico triste. Hoje não.

Foto Pedro Coelho

Tenho setenta anos. Tinha apenas seis quando comecei a servir na igreja de Nossa Senhora do Carmo da Beirã, como acólito. Estávamos em 1958 e era pároco o Reverendo Joaquim Caetano, já falecido. Foi ele que me escolheu para ser um dos seus acólitos nesse ano, mal comecei a frequentar a escola e a catequese. Ensinou-me princípios e transmitiu-me valores tais que a ele devo também muito do que sou, quer na minha formação como pessoa, quer no carácter e integridade. Por tudo isso guardo por ele ainda hoje uma amizade, um respeito e uma consideração sem limites.

Mas voltemos um bocadinho atrás no tempo. Contava a minha falecida mãe que desde mui tenra idade eu desatava a correr rua abaixo mal ouvia tocar os sinos: 

- Zéi, mas aonde é que tu vais a correr? 

E que eu, eufórico, lhe respondia: 

- Vou à micha, mãe!  Vou à micha… 

Tinha que ser algo assim. Há de facto coisas inexplicáveis. Tudo indica que o meu fascínio pelo divino e pela Senhora do Carmo, começou logo na inocência da mais tenra idade.

Veio depois passados mais dois ou três anos o convite para acólito do padre Caetano que me tratava como a um filho. E porque a minha mãe não tinha posses para me comprar roupas finas para o ir acolitar, era ele quem comprava tecidos e mandava fazer as roupas domingueiras às costureiras que naquele tempo abundavam na aldeia. Calções e calças de terylene, camisas de popelina, casacas e blusões quentinhos. E comprava-me também sapatos na fábrica Ebro de Santo António das Areias, a única que por aqui existia nesse tempo, pois só alguns anos mais tarde foi construída a Celtex.

Não haverá já por cá muita gente que se recorde destas coisas e as que houver se calhar não vão ler estas minhas memórias porque ou serão já muito velhinhas ou provavelmente nem saberão ler nem escrever. Quem me conhece minimamente sabe, com toda a certeza, que não faço uso de mentiras, que sou frontal e digo sempre o que tenho a dizer cara a cara seja o que for e a quem for, além de que não faço também prática do detestável costume de andar a dar palmadinhas nas costas das pessoas fingindo amizade, para a seguir, quando se vão embora, ficar a cortar-lhes na casaca, como tanta gente faz e me tem feito a mim. 

É certo, porém, aquele velho ditado que diz: "Cada um só pode dar aquilo que tem". E cá continuo no meu tranquilo dia a dia completamente indiferente a todas essas ignomínias e falsidades. Por isso o que digo e escrevo é, por norma, a verdade, apenas a verdade e só a verdade. Sempre que tiver que dizer, seja o que for, mostro a cara, levanto a voz, falo sem medo e sem má-fé, dizendo tudo quanto tiver que ser dito. É assim que as coisas devem funcionar numa sociedade minimamente decente e bem formada. 

Pese embora a minha saúde ultimamente não tenha ajudado muito, tenho continuado a colaborar em tudo o que posso e sei como tenho feito desde que vim morar definitivamente para a Beirã em 1 de Novembro de 1992 e imediatamente me "alistei", com a minha esposa, quer no coro paroquial, quer como leitor e salmista até 1999. No ano 2000, 2001 e 2002, por indisponibilidade do então Conselho Económico Paroquial, foi-me solicitado pelos Revºs Párocos Tarcísio e Luís Ribeiro que tomasse temporariamente ao meu cuidado as contas da Paróquia até à nomeação oficial que só foi efetivada em 2003, a partir de quando integrei o Conselho Económico Paroquial oficialmente nomeado por Sua Eminência o Bispo da Diocese para tais funções e por mandatos sucessivos, até ao dia de hoje.

Tenho guardados em suporte informático e também em papel, todos os processos que justificam escrupulosamente cada cêntimo de receita, cada cêntimo de despesa, semanais, mensais e anuais, desde 2000. A contabilidade da igreja, das obras de restauro e conservação realizadas, dos donativos, da instalação do relógio e automatização dos sinos, da colocação das luzes LED, das despesas com vencimentos dos sacerdotes e todas as outras. Ao pormenor, limpinhas e fáceis de entender. Tudo pronto a entregar a quem de direito. E mais. Este cargo no CEP da Paróquia da Beirã, está, como sempre esteve, disponível todos os dias e a todas as horas, ao completo dispor de quem me escolheu e nomeou, prontíssimo a entregar a quem se oferecer para me substituir. É só chegar-se à frente quem o quiser e seja muito bem-vindo.

Sei que sempre cumpri as minhas obrigações com lealdade, dedicação, esforço e empenho. Sei também que nunca cobrei um cêntimo sequer por nada do que fiz. Ofereço, desde o já longínquo ano 2000, gratuitamente, os meus serviços e tempo, o meu computador, tinteiros e resmas de papel da impressora, o combustível do automóvel nas deslocações ao banco, às reuniões a Portalegre, a São Tiago, a Mem Soares, a Nisa, a Castelo de Vide, a Marvão e a muitas outras localidades onde os párocos me solicitaram que fosse. Sozinho, ou quando muito, acompanhado apenas e só pela minha esposa, a qual, por sua vez, cuida ainda também gratuitamente do asseio e arrumação da igreja e dos altares em conjunto com outras duas senhoras, para além de passar horas a conferir, a separar e a acondicionar as moedas dos ofertórios e das caixas que posteriormente eu vou depositar no banco e na conta da paróquia que está sempre em dia.

Paguei ainda do meu bolso o curso para ministro extraordinário da comunhão e para ministro da celebração da palavra na ausência do presbítero - MECDAP - o curso para aprofundamento da fé - CAF - que teve a duração de três anos letivos no Seminário de Portalegre, de muitas outras formações em Mem Soares, em Alcains, Abrantes e Proença-a-Nova. Deslocações, alimentação, combustíveis e pagamento individual de cada curso ou formação. Com que intenção? Única e exclusivamente formar-me minimamente para melhor conseguir colaborar em tudo o que me era proposto pelos párocos no serviço à comunidade paroquial a que pertenço e que, muitas vezes, em vez de reconhecer a minha disponibilidade, a criticaram e botaram abaixo. 

É mais que verdade que "na sua terra ninguém é profeta". Muitas vezes me senti triste e desmotivado por tudo isso. Muitas vezes também me apeteceu mandar tudo às malvas, ir-me até embora de cá. Mas a sempre reiterada confiança e sincera amizade dos párocos Tarcísio e Luís Ribeiro, aliada à minha fé e à forte convicção de missão e de serviço à comunidade a que pertenço, conseguiram superar sempre a vontade de desistir. 

Até quando? 

Neste preciso momento estou quase completamente desmotivado e afastado da Paróquia. Há mais de um ano que fico por casa limitando-me a fazer a contabilidade escrita mensal em conformidade com os registos semanais feitos pelas senhoras do CEP, após o que, em ato contínuo, vou depositar os valores na conta bancária da Paróquia, como sempre fiz. Entretanto e como escrevi no início, comecei nestas "andanças" com seis anos de idade. Estávamos, portanto, no Outono de 1958. Estamos no Outono de 2022. Passaram sessenta e quatro anos e continuo cá. Hoje só já não desato a correr pela rua abaixo quando ouço repicar o sino da igreja que ainda continua a ser o mesmo, mas as minhas pernas é que já não conseguem agora correr como corriam então. 

Hoje sinto-me triste. Provavelmente a melhor forma de ilustrar o meu estado de espírito talvez seja reescrever aquele poema encontrado na parede de um dos dormitórios para crianças no campo de extermínio nazi de Auschwitz:

“Amanhã fico triste… Amanhã!
Hoje não… Hoje fico alegre!
E todos os dias, por mais amargos que sejam, eu digo:
Amanhã fico triste, hoje não…”

Desculpem a seca, mas quando começo a escrever, perco-me no tempo.

José Coelho