sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Assino consigo, Paulo


 

A Humilhação que Não Foi

Fiquei sem ar, confesso. Mas no final, fiquei orgulhoso do Presidente Zelenski. Num mundo, cada vez mais, sem líderes, hoje senti-me representado.

Há cenas que entram para a História não pelo que se disse mas pelo que ficou por dizer. O espetáculo que se desenrolou na Sala Oval foi um desses momentos em que o mundo piscou os olhos, desconfortável, horrorizado, estupefacto, enquanto um Presidente de um país devastado pela guerra era transformado em objeto de escárnio pelo Presidente do mais poderoso país do mundo, e pelo seu fiel escudeiro, um lambedor de botas com nome de detergente.

O que se passou ali foi uma humilhação, sim, foi, mas não para Zelensky.

O Presidente da Ucrânia entrou num covil de hienas, quais marionetas, orquestradas pelo ditador russo, sabendo bem onde estava. Era uma armadilha montada com a precisão cirúrgica dos cobardes, desenhada para transformá-lo num pedinte, num cão maltratado que, na ótica dos anfitriões, deveria mendigar com as patas estendidas. Mas eis o problema dos ditadores e dos seus bajuladores: confundem dignidade com fraqueza, confundem coragem com desespero.

Zelensky ficou ali, sentado, ouvindo palavras agressivas, palavras mentirosas de gente pequena que se acha grande. Não ripostou com raiva, nem se dobrou em subserviência. Limitou-se a exteriorizar o que lhe ia no peito, com humildade mas sem ceder. A sua postura, naquele momento, foi suficiente para que a farsa se revelasse.

Trump, o eterno fanfarrão, e J.D. Vance, o seu ajudante de palco, atacaram como pugilistas furiosos cheios de coisas dopantes. Julgavam eles que, como crianças inocentes, estavam a derrubar um castelo de areia. Mas o problema, para eles, claro, é que o castelo se manteve de pé.

A guerra não terminou, a Ucrânia não caiu, eles não ficaram com os biliões do minério e o homem diante deles era a prova viva de que, afinal, nem sempre os maus vencem. Eles queriam ver um derrotado, mas o que encontraram foi alguém que, mesmo esmagado pelo peso dos que se julgam donos do mundo, se recusa a ser pequeno.

A História tem destas coisas. Quem ri hoje pode estar a chorar amanhã. E os ditadores, por mais que se armem de tanques e de asseclas servis, nunca entendem isto: quando a hora chega, os povos lembram-se de quem lutou, não de quem gritou mais alto.

Zelensky não precisou de vencer aquela batalha verbal. O embaraço ficou para os outros. A diferença entre um líder e um palhaço é que o primeiro não precisa de plateia.

E os que hoje gargalham sobre o que se passou na Sala Oval? Que aproveitem o espetáculo enquanto podem. Porque no fim, e a História nunca falha nisto, quem humilha será sempre o humilhado.

Obrigado Presidente Zelensky!

Paulo Costa

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Meu chão sagrado


Venho dos lados da aurora
Onde vi nascer as fontes
Entre o naufrágio de sonhos
Perfumados de horizontes.
Trago imagens de papoilas
E a fogueira das queimadas.
Os meus olhos já não podem
Olhar as terras lavradas...
Que caminhos de aflição
Onde as nuvens se juntaram,
Erguendo escuras bandeiras
Que à noitinha desfraldaram!
Venho do Sul, do meu povo,
E trago os ventos roubados
À natureza onde vivem
Os camponeses cansados.
Mas também trago a saudade
Das formosas madrugadas:
As cantigas do meu povo
Que em surdina são cantadas.
Antunes da Silva
Beirã - Topo Norte da aldeia.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Na simplicidade de uma foto...

... mil e uma recordações. 

A casinha onde nasci, pobre mas nossa;
A comida feita ao lume pela minha mãe;
O meu pai sentado pacificamente ao canto da chaminé a fumar o seu cigarro feito à mão com tabaco de onça Duque, aos serões;
O gato a ronronar ao borralho;
A trempe para a sertã e também para o assador de castanhas que ainda conservo velhinho mas intacto;
As cadeirinhas com assento de buinho para a gaiatada que resistiram ao tempo e ainda por aí sobrevive uma ou outra;
O ambiente acolhedor de lar e aconchego nas noites frias de inverno (mas também nas de verão);
A família, a harmonia, a benção de estarmos vivos, felizes e (ainda) todos juntos;
Tantas, tantíssimas e dulcíssimas, lembranças!

Éramos tão felizes e não sabíamos... 

José Coelho

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Só porque sim


Porque nunca fomos, não somos nem nunca seremos o que essas pessoas que não gostam de nós fal(adr)am. E ponto final. Quem não gostar passe ao lado...

Coisas (muito assertivas) que leio


 

Infelizmente não vou poder ir.

Porquê?

Porque não quero.

Vamos normalizar isto.

Vamos normalizar o “não quero”, o “não estou para aí virado”, o “não me apetece”.

Não vamos ficar magoados, revoltados, só porque aquela pessoa, que amamos e que queremos ter sempre connosco, não quer, naquele momento, estar junto a nós.

Ou porque não quer falar connosco ao telefone.

O telefonema é invasivo, é impositivo.

Quem telefona está a dizer: agora, neste instante, quero falar contigo.

Está a impor o seu timing, o seu tempo. Não atender não é prova de nada, apenas de que não quero falar nesse momento que a outra pessoa definiu. Não é por isso que amo menos, que quero menos, que preciso menos. Apenas preciso de espaço para mim, apenas quero fazer outras coisas, estar noutros lugares. Está tudo bem assim. Porque não haveria de estar?

Empatia é isso: perceber que o outro não é Eu.

Não tem de querer o que quero quando eu quero; o outro quer o que quer quando quer, é essa a sua magia também.

Vamos normalizar.

Não vamos impor companhias, decisões, escolhas.

Não vamos obrigar o outro a mentir, a enganar, a esconder o que sente, o que quer, só para não ser malvisto, mal-encarado, mal interpretado.

O amor é liberdade, jamais prisão.

O amor é alegria, jamais constrangimento.

Vamos normalizar isto.

Vamos normalizar o que é normal, o que é humano.

Somos todos diferentes, em momentos diferentes, em estádios diferentes das nossas vidas.

Entender isso é amor.

Amemo-nos assim.

 

Pedro Chagas Freitas

A RARIDADE DAS COISAS BANAIS

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Pretextos perigosos

"Vivemos num tempo em que novos muros estão a ser erigidos, quando as diferenças se tornam um pretexto para a divisão em vez de uma oportunidade para o enriquecimento mútuo".

Cardeal Tolentino de Mendonça
Na missa de domingo em Roma
- 16 de fevereiro de 2025

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Memória coletiva e amor


Tarde cálida e primaveril a fazer jus ao provérbio que diz "depois da tempestade vem sempre a bonança". É esta paisagem tão rústica quanto pacífica que me saúda em cada manhã do quintal da casa onde nasci, depois cresci e agora envelheço na paz dos meus dias.

Lá ao fundo, encostada ao Caminho Municipal 1024 (por aqui mais conhecido como Estrada da Herdade) meio encoberta pelos ramos ainda sem folhas dos choupos em pousio de inverno que bordejam as margens do Ribeiro da Cavalinha, a velha Murta toda vestidinha de novo, envolta pelas fragas graníticas e montado que abundam por estas milenares paisagens raianas.

Oculto pelos ramos dos sobreiros no lado superior esquerdo da foto, situa-se o recente Hotel Tapada da Rabela Turismo e Reserva Natural Privada, entre a via férrea do Ramal de Cáceres a nascente e a Rua Vivas a poente, da qual é a última casa habitada, a par da entrada para a quinta do seu proprietário.

Entre a Rua Vivas e a via férrea do Ramal de Cáceres que atravessa toda a aldeia de poente para nascente, assim como esta foto da direita para a esquerda, vemos, do lado nascente, pintada em cor de tijolo, a Incubadora de Empresas de Base Não Tecnológica da Beirã, obra muito recente de adaptação de um anterior celeiro pertencente à Estação ferroviária que foi adaptado à atual unidade empresarial.

Por último as modernas vivendas da Rua Vivas que são propriedade de funcionários que tinham as suas vidas nas especialidades inerentes a uma Estação ferroviária fronteiriça, tais como agentes ferroviários, pessoal aduaneiro, guardas fiscais e seus herdeiros que sendo da região mas não só, decidiram por cá ficar definitivamente.

Tudo isto foi, durante muitas décadas, um polo de vida e harmonia em redor dos comboios nacionais e internacionais de passageiros mas também de mercadorias, num vaivém ininterrupto com circulação diária 24 sobre 24 horas, até um staff de iluminados governantes decidir em 2012 encerrá-lo sem apelo nem agravo, indiferente aos danos mais que previsíveis para toda esta região e população, particularmente para quem ali ia buscar o seu ganha-pão cada dia.

Ficou o que ninguém jamais terá capacidade ou autoridade para encerrar:

A nossa memória coletiva e amor a esta terra...

José Coelho

(Texto e foto)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Penso eu de que


Não se pode obrigar ninguém a mudar. Cada pessoa é como é e tem o direito de ser como entende. Nunca se esforce por mudar quem não quer ser de outra maneira, nem desperdice o seu tempo a tentar mudá-la.

É inútil porque a porta da mudança só abre pelo lado de dentro.

Concentre-se em melhorar-se a si mesmo, em desenvolver a sua autoestima, deixe que a vida lhe traga tudo quanto necessita para se sentir completo porque é sempre ela que coloca no nosso caminho as pessoas e as coisas que se alinham com os nossos sonhos e projetos.
(Texto e foto)

In memoriam


Minha saudade não larga
Certa casa abandonada.
E sinto, na boca, amarga,
Essa lágrima chorada
Quando a deixei...

Caía, de leve, a tarde...
E, olhando para trás, vi
Aquela porta fechada.

Nesse momento, senti
Pesar-me a fatalidade
De toda a Vida passada.

Arde
Ainda, nos meus olhos,
A luz do sol que brilhava
Na janela.
Era uma luz amarela;
Uma luz de fim da tarde
Que ainda trago nos olhos...

Ficava ali,
Por detrás da porta verde,
Tudo o que a vida nos perde,
Enquanto nos vai gastando...

E triste e só me parti;
Quem sabe que outros Destinos,
Dolorosos ou divinos,
Procurando...

Francisco Bugalho, in "Margens”

Foto José Coelho

Terra amada


As margens do Ribeiro da Cavalinha cujo leito, coberto de juncos e buinho, atravessa a minha Beirã de sul para norte, bem como todo o centro desta imagem, da esquerda para a direita.

Foto José Coelho 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Coisas que leio e gosto


Com o passar do tempo, aprendi a diferença, a subtil diferença que existe entre dar uma mão e acorrentar uma alma. Aprendi que amar não significa apoiar e que companhia nem sempre significa segurança. E aprendi também que beijos não são contratos e que presentes não são promessas. Aprendi a aceitar as minhas derrotas de cabeça erguida e a olhar em frente com a graça de um adulto, não com a tristeza de uma criança.

Aprendi a construir todas as minhas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para planos e o futuro tem o costume de ser inseguro. Com o passar do tempo, aprendi que o sol queima se ficarmos expostos a ele demasiado tempo. E que não importa o quanto nos importamos porque algumas pessoas simplesmente nunca se importarão. E aceitei que por melhor que seja qualquer pessoa, alguma irá ferir-nos alguma vez e teremos de a perdoar por isso. Aprendi ainda que falar pode aliviar e muito, certas dores emocionais.

Descobri que se levam anos para construir a confiança e que basta um segundo para a destruir. E que fiz coisas num minuto das quais me irei arrepender o resto da minha vida. Aprendi que as amizades verdadeiras continuam a crescer mesmo a grandes distâncias e que o que importa não é o que temos na nossa vida, mas quem temos na nossa vida. E que os bons amigos são a família que me foi permitido escolher. Aprendi que nunca teremos de mudar de amigos se compreendermos que naturalmente eles mudam, se percebermos que com esses nossos melhores amigos se pode fazer qualquer coisa, ou nada, mas mesmo assim viver bons momentos.

Descobri que as pessoas com quem mais nos importamos na vida podem ser-nos tiradas a qualquer momento e por isso devemos deixar sempre as pessoas amadas com palavras carinhosas porque pode muito bem ser a última vez que as vemos. Aprendi que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas que somos nós os responsáveis por nós mesmos. Comecei a aprender que não devemos comparar-nos com os outros, mas sim com o melhor que conseguirmos ser.

Descobri que demora muito tempo para se conseguir ser aquela pessoa que queremos ser e que o tempo é demasiado breve. Aprendi que não importa onde já chegámos, mas onde queremos chegar. E que, se não soubermos para onde vamos, qualquer lugar serve. Aprendi que ou nós controlamos os nossos atos, ou eles irão controlar-nos a nós. E que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação onde existirão sempre dois lados.

Aprendi que os heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as consequências. E aprendi que ter paciência requer muita prática. Descobri que algumas vezes a pessoa que esperava que me ignorasse quando me visse cair, foi precisamente uma das poucas que me ajudou a levantar.

Aprendi que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que tive e o que aprendi com elas, do que com as dificuldades que venci. Aprendi que há mais dos nossos pais em nós do que supúnhamos e que nunca se deve dizer a uma criança que os sonhos não são reais porque poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.

Aprendi que quando estamos zangados temos o direito de estar zangados, mas que isso não nos confere o direito de sermos cruéis. Descobri que só porque alguém não nos ama da forma que queremos ser amados, não significa que esse alguém não nos ame, pois existem pessoas que amam mas simplesmente não o sabem demonstrar.

Aprendi que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém e que algumas vezes temos de aprender a perdoar-nos a nós mesmos também. Aprendi que, com a mesma severidade com que julgamos os outros, em algum momento da nossa vida seremos nós o julgado. Aprendi que não importa em quantos pedaços o meu coração foi partido e que o mundo não vai parar para que eu o conserte, porque o tempo não é algo que possa voltar atrás.

Portanto, plante o seu jardim e decore a sua alma, ao contrário de esperar que alguém lhe traga flores. Aprenda que pode suportar mais do que imaginava, que realmente é forte e que pode ir ainda mais longe depois de muitas vezes ter achado que já não podia mais. E que a vida tem valor, tal como nós temos valor diante da vida!

Veronica Shoffstall (Adaptado)

Foto José Coelho

domingo, 9 de fevereiro de 2025

A vida é (e sempre foi) composta de mudanças


A nossa vida muda depois de uma certa idade. Deixamos de querer conflitos e de dar explicações, optamos por rodear-nos de cada vez menos pessoas, começamos a apreciar o silêncio e a escolher a ausência para nos dedicarmos mais ao que nos concede paz.

Começamos a ver as coisas como elas são e cada vez menos como parecem, a preservar o melhor de nós apenas para quem nos conhece a fundo.

Aprendemos a ficar calados e abrir mão de muitas coisas, a fazer seleção entre o útil e o fútil, porque tudo o que é inútil deixa de nos importar.
Afastamo-nos de muitas coisas: palavras, pessoas e objetos, preferindo ficar apenas com o que nos torna melhores.
Em resumo, aprendemos a deixar ir…

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Nem tudo é o que parece...



Nem sempre quem sente saudades as manifesta. A gente pode sentir saudades em silêncio, no segredo do nosso coração. Não procurar, não significa ter esquecido. A gente pode ter uma pessoa no pensamento mas o facto de não correr atrás dela, não significa necessariamente que não sinta a sua falta. Significa que compreendemos que a vida segue em frente e que essa pessoa tem de ser deixada para trás para ficar apenas na nossa lembrança. E, ainda que a saudade doa muito, ela é necessária para sabermos que o passado valeu a pena, mas que, apesar disso, foi feito para ficar apenas lá, no passado.

José Coelho
08.02.2025 

Gente que ainda existe

Amo gente digna. Não falo de gente sem pecados, nem isenta de erros. Falo de gente limpa de coração que nos trata com verdade e respeito, que pensa no outro e não trata a vida de ninguém com leviandade. Gente de caráter, gente honesta e leal. Gente em quem posso confiar de olhos fechados. Que sorri sem falsidade e vejo nos olhos que fica feliz com a minha felicidade. Gente que sabe ser companheira. Amo e como amo gente que entende o que é dignidade.

                                                                                                               Rachel Carvalho

Foto José Coelho — em Beirã.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O irresistível apelo...

Povoado Alto-Medieval do Monte Velho - Foto José Coelho

Mais de uma vez pensei já não voltar àqueles lugares, engendrando de mim para comigo plausíveis desculpas. O facto de estar a ficar menos ágil, de já não ter a leveza de quando era moço para subir e descer canchais ou saltar paredes, de não ser aconselhável afastar-me dos caminhos já tão pouco percorridos não vá dar-se a casualidade de um inesperado trambolhão que origine necessidade de socorro urgente a que a maior parte destes ermos são praticamente inacessíveis.

Talvez por essa sua inacessibilidade tenham sido desde sempre os meus lugares de eleição. Porque lá tudo quanto nos rodeia é real e puro. O cantar da passarada pelas manhãs e também pelo silêncio dos entardeceres. A brisa suave que nos acaricia o rosto nos dias amenos ou o vento agreste que nos greta os beiços nos dias frios. Tudo é genuíno. Não existe buraco, cancho ou lapa que eu não conheça ou não tenha visitado, por mais ermo e longínquos que estejam. Cresci e fiz-me moço a percorrer estas paisagens onde apanhei tantíssimos braçados de lenha de giesta seca para a mãe Florinda e também para a avó Amélia cozinharem as nossas comidas ao lume, porque o luxo dos fogareiros a petróleo ou a gás ainda não existia.

Nestes descampados me refugiei centos de vezes em busca de tranquilidade quando me senti inquieto. Por mil e um motivos. Pela aspereza da vida daquele tempo, pelos meus primeiros amores e desamores, mas também, quantas vezes, pelo meu indomável espírito que nunca entendeu render-se, fosse qual fosse o desafio. Por estas paragens existem imensos lugares onde não chega ninguém durante semanas, meses, anos até. E quando alguém lá tem de ir, desloca-se em transportes apropriados, tratores e outras alfaias agrícolas ou carrinhas 4x4, onde, além de se transportar, leva ainda palhas e rações para o gado que por lá pastoreia todo o ano. E sítios há onde só vão para fazer lenha no outono, ou para a apanha da cortiça no início do verão, sua principal fonte de rendimentos de nove em nove anos.

São quase todos estes lugares parte integrante da minha história de vida, a começar pela Cavalinha onde me acolheram sempre com tanto amor e carinho a avó Amélia e o avô/padrinho José que me deu o nome. Também o Muro de que tanto ouvi falar a vida toda porque foi onde nasceu e se criou a minha mãe mais os seus sete irmãos e irmãs, meus tios e tias maternos. Tantas peripécias suas contadas nos nossos serões à lareira! E o Matinho, onde o avô José era guardador de gados, onde a avó Amélia mondava searas com outras companhas. E para onde foram depois também transitando para trabalharem nos campos à medida que iam crescendo, todos os meus tios e tias.

Quantos lugares conheço por estes arredores? São quase incontáveis. A Cabeçuda, a Herdade dos Pombais, as Amendoeiras, o Batão, o Bravo a Bola da Cera, o Cavalo, os Aires, a Pereira, a Nave, a Anta, a Murta, a Meirinha, a Retorta, o Monte Velho, o Pereiro Velho, a Malhadinha Alta, a Herdade do Pereiro com a sua Fadagosa, a Torre, o Vale do Cano, o Cabeço de Seixo, os Pavios, o Chão Salgado, o Santo Amador, a Saragoça, a Defesa, as Cebolas, o Vale da Amoreira, as Águas, a Castinceira, a Bica, o Cabril, a Fonte Salgueiro, o Cabeço, o Cancho de Ruivo, os Carvalhos de Roque, a Lagem Alta e tantos, tantos outros que agora não me ocorrem…

Conheço-os de cor porque os percorri a pé, sozinho e acompanhado, inúmeras vezes. Nunca tive sequer uma bicicleta quando a maior parte dos meus amigos até já motorizadas tinham. Mas nunca me senti diminuído por as não ter. Cedo me foi ensinado e compreendi que a vida tem prioridades. E que a família é, era entre todas, a primeira. O pouco que ganhava da minha magra jorna fazia falta para essas prioridades e não havia sobras para mais luxos. Por isso, sozinho ou acompanhado, quase sempre com algum livro a tiracolo, marchava pelos campos e perdia-me horas a fio na companhia do vento até ao pôr do sol, quantas vezes a noite me rodeou ainda longe de casa.

Havia veredas tão seguras como as estradas e nelas eu sabia onde estava cada obstáculo para contornar. Hoje nem com óculos graduados vejo já bem, mas naquele tempo, no meio do mato e no escuro das noites cerradas via a vereda, os contornos de tudo ao meu redor e os obstáculos. Mais do que uma boa visão aquilo era puro instinto. E que bem me sabia o sossego dos campos, a companhia das furtivas raposas, o monótono piar dos mochos ou o gorjeio dos melros e rouxinóis, o cantar dos grilos e dos ralos. Só não achava muita graça ao grito agourento das corujas que tinham o péssimo costume de soltar o seu gu-ru-ru algo sinistro quando me sentiam passar mesmo por baixo das pernadas e ramos onde espreitavam os movimentos de algum ratito no solo para o seu jantar. 

O meu mundo foi quase sempre por aqui e nele fui infinitamente feliz. Por isso depois de tantos sóis já passados, venho ainda visitá-lo mesmo com as pernas a doer e os pés quase a arrastar. Ontem voltei de novo ao antigo povoado do Monte Velho, acompanhado pela minha inseparável companheira. Fomos demasiado longe mas apesar do cansaço, adorei. Enchi os olhos de beleza, a alma de harmonia e o coração de serenidade. Após demorada visita ao que resta dele, encetámos o regresso a casa acariciando as primeiras alvas e delicadas maias que começam já a despontar pelas giestas, pensando com alguma nostalgia:

- Será que irei voltar aqui mais alguma vez?

Disse olá a uma bonita vitela que assim que nos viu logo se encaminhou para nós pregando um monumental susto à minha companheira que pensou que ia levar alguma marrada. Mas claro que não.

- Não tenhas medo, Maria! Tranquilizei-a…

A vitela pastoreava com mais duas ou três irmãs, e, habituada a que os humanos lhes levem sempre algum miminho em forma de feno ou granulado da ração, dirigiu-se a nós à espera do seu “presente”. Quando viu que não lhe levávamos nada, seguiu o seu caminho e nós o nosso.

Esteve uma tarde esplêndida e no ar pairam já por toda a parte os primeiros aromas primaveris. Aqueles cenários transportaram-me à minha meninice quando passei pelo carcomido toco do sobreiro que um raio derrubou quase ao meu lado quando eu era pastor. Vencido pelos temporais, ainda negro por dentro pela descarga incandescente que o derrubou, lá continua, indiferente ao tempo e às nossas memórias. A seguir passámos pela Tapada da Lagem Alta, muito perto da pedra onde eu pulava na brincadeira e me picou um lacrau num pé, enquanto a minha mãe mondava milho um pouco mais abaixo. É tão bom recordar.

- Se puder vou voltar. Decidi.

José Coelho 

Agradecimento


Uma constipação daquelas chatinhas que demoram a ir embora tem-me mantido afastado das minhas escritas que retomarei assim que melhorar. Agradeço a quem continua a vir visitar este blogue mesmo sem nada de novo para ler e é para esses visitantes, sejam quem forem, que vão o meu obrigado e o meu apreço também. Bem hajam.

José Coelho