sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando


Cumpriram abnegada e honrosamente aquilo que publicamente, felizes e a plenos pulmões gritaram na formatura do Dia do seu Compromisso de Honra, "Mesmo com sacrifício da própria vida". É um dia triste e muito emotivo para todos nós, porém, o risco imprevisível e invisível, acompanha cada militar da Guarda do primeiro ao último dia da sua carreira profissional. Que os nossos heróis descansem em paz, que cada familiar seu seja confortado e encontre a força necessária para aceitar com resignação tão injusta perda. E os camaradas que irão continuar a exercer tão nobre missão que nunca deixem de se sentir motivados e muito honrados por servirem o seu Povo e o seu País, na Guarda Nacional Republicana.

José Coelho 

Bom fim de semana


"O PRAZER DE ESCREVER

A vocação para a escrita é um chamado que ressoa profundamente na alma daqueles que se sentem compelidos a traduzir o mundo em palavras. Não é apenas uma habilidade técnica ou um dom natural; é uma necessidade interior, uma forma de expressão que se torna essencial para quem escreve. A escrita é tanto um ato de criação quanto de descoberta. Por meio dela, o escritor não apenas constrói universos, personagens e enredos, mas também desvela partes de si mesmo que, de outra forma, poderiam permanecer ocultas.

A vocação para a escrita manifesta-se, muitas vezes, como uma inquietação, um desejo insaciável de registar pensamentos, sentimentos e observações sobre o mundo ao redor. Aqueles que possuem essa vocação sentem, frequentemente, que as palavras são a melhor maneira de se conectar com os outros, de compartilhar as suas perspetivas e de deixar uma marca no tempo. Escrever é, em muitos aspetos, um diálogo com o mundo, uma tentativa de compreendê-lo e de ser compreendido.

Para alguns, a escrita é um refúgio, um lugar onde podem explorar as suas emoções e experiências mais profundas. Para outros, é uma forma de ativismo, de dar voz a causas e questões que consideram importantes. Mas, independentemente da motivação, a escrita exige disciplina, paciência e um compromisso constante com a melhoria e a autodescoberta.

A verdadeira vocação para a escrita é reconhecida naqueles que, apesar das dificuldades e dos desafios, continuam a escrever. Para eles, a escrita não é apenas uma escolha ou um hobby, mas uma parte essencial de sua identidade, algo que precisam fazer para se sentirem completos. É um caminho muitas vezes solitário, mas também profundamente gratificante, onde cada palavra escrita é um passo mais próximo de se entender, de entender os outros e o mundo ao redor.

Helena Sacadura Cabral"

Em 25. 08. 2024

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Coisas (bué da giras) que li


Os Lambe-cus

Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.

Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.

Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço».

Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores, os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc. ..

Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso. Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada.

O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava de um engraxador.

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até ao cu.

O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu.

Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu.

Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing. Os praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.

(…) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional.

O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês.


Miguel Esteves Cardoso, in “Último Volume”

Eu Navegarei - Hélio Borges (Ao vivo)

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Ser capaz de ser feliz

Foto da autoria da neta Francisca em 15 de agosto de 2024



Nunca o meu sorrir foi forçado. Nunca na minha vida esbocei sequer um sorriso com vontade de chorar, como já ouvi pessoas dizerem que o fazem. Se rio é porque estou feliz e no meu íntimo reina a serenidade. É porque estou bem. Não faço favores desses a ninguém. Em mim tudo é genuíno, ou nem sequer existe. De igual modo também não sei disfarçar a tristeza, a preocupação ou a indignação. Se alguma coisa me perturba, a minha expressão facial dizem que muito mal-encarada, revela e não deixa dúvidas que estou preocupado ou mal disposto.

Nunca deixei de dizer cara a cara e fosse a quem fosse, o que tinha de ser dito. Lamber botas, dar palmadinhas nas costas de qualquer pessoa para logo a seguir ir dizer mal dela não faz o meu género, porque a má-fé e a cobardia nunca habitaram o meu coração. A quem gosta de mim tento sempre retribuir em dobro. E quem não gosta, ponha no bordo do prato. Estou-me nas tintas.
Aprendi a lutar pelo que queria desde muito pequeno. De pezitos descalços e calças remendadas que luxos não havia e a tia Florinda não dava baldas, nem poupava nas nalgadas quando eram precisas para nos ensinar que quem mandava era ela.
Fizeram-me tão bem!
Ainda assim não deixei de levar sempre "a minha" avante. Com apenas cinco anos, uma tarde fugi à Mestra, a querida senhora Vicência Olivença, para me apresentar na Sociedade Recreativa num dia em que começaram os ensaios das crianças da catequese para um serão recreativo que se fazia todos os anos na Beirã para a população.
Eu não andava ainda na catequese porque também ainda não frequentava a escola, mas queria lá saber disso. Se as outras crianças podiam lá estar eu também tinha de poder. E como ninguém me chamou fugi à mestra e fui lá ter.
Com tal sorte que a D. Mimi e o Sr. Cardoso acharam que eu era capaz de ficar bem no papel de um Beirão de Monsanto a interpretar uma cantiga ao desafio com uma das netas da vizinha Joaquina Servo que era da minha idade e altura. E de tal modo aquilo correu bem que logo naquele primeiro arremedo de ensaio assinámos contrato artístico com a produção do evento.
Devia ser hilariante porque toda a gente ria à gargalhada. Eu era baixote e a miúda também, vestidos de Beirões e com o sotaque de Monxanto a condizer, aquilo correu mesmo bem. O pior foi a cara indignada da Mestra Vicência quando terminou o ensaio. Dera pela minha falta e sabendo que havia ali atividades com crianças logo imaginou para onde eu me tinha escapulido sem a sua licença.
E não achou graça nenhuma.
Fui agarrado por uma orelha até sua casa e à noite queixa formal à mãe Florinda que me proibiu de voltar a por os pés na Sociedade sob pena de levar uma sova. Valeu-me a diplomacia da senhora D. Mimi e do Sr Cardoso que lá conseguiram convencer Mãe e Mestra a deixarem-me participar.
Depois...
Toda a minha vida foi uma luta constante para alcançar metas, como a vida de todos aqueles que tiveram a sina de nascerem pobres. A vida dura do campo e mais tarde a de cabouqueiro nas pedreiras com o meu pai, não me seduziam nem um pouco. Não me sentindo mais corajoso ou ousado do que qualquer outro gaiato da minha idade, sabia com toda a certeza que iria ser capaz de arranjar uma vida melhor.
Pesei sempre na balança da prudência todas as possibilidades, sem nunca subestimar as naturais dificuldades. Foram infinitas as inquietações. Os medos. As noites mal dormidas. Mas tudo valeu a pena porque infinitos foram depois os momentos da mais profunda felicidade por cada conquista, por cada obstáculo vencido, por cada "porra, consegui!".
Poetizando um pouco...
"O tempo passou e veio a idade,
como vem a noite ao cair da tarde".
Mas com a idade vieram outras coisas inesperadas, absolutamente dispensáveis e com as quais tenho de conviver agora no silêncio dos meus dias. Acabaram-se as lutas que foram sendo substituídas pela simplicidade de aprender a viver um dia de cada vez.
E não sendo possível melhor, que ao menos se mantenha assim.
Neste cair de tarde da minha vida com a noite a aproximar-se, continuo apesar do já longo caminho percorrido o mesmo petiz de pés descalços que corria rua abaixo para fugir à mestra, que agora já não corre mas continua a descê-la em passo tranquilo e já pode ir para onde quer sem que ninguém lhe ralhe ou o prenda por uma orelha.
Não foi fácil.
Muito pelo contrário.
A minha mais sincera gratidão vai direta para a maravilhosa Família em cujo seio nasci e a quem devo tudo o que sou. Depois à Vida pelo tanto que me deu, bom e mau. Guardo no coração sempre em primeiro lugar as memórias mais felizes, mas foram sem dúvida os tombos e as dificuldades que me ensinaram a lutar, a resistir e a nunca desistir. Porque felizmente em momento algum perdi de vista aquele que me parece ser o objetivo principal na vida de qualquer um de nós:
O de sermos capazes de ser (e porque não de fazer também os outros) felizes...

Sê humano e íntegro


Honra sempre a tua palavra, sê sempre grato com quem te ajudou, correcto com quem te relacionas e honesto na tua vida.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa

SALMO RESPONSORIAL DO XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM 

Boa semana

E boas escritas, ou leituras... 
Foto José Coelho

Não somos o que temos, mas aquilo que deixamos.


A Sócha e o Miradouro da Beirã são um legado de dois Conterrâneos Beiranenses de gema, que tiveram, durante o mandato autárquico de Presidente da Junta de Freguesia da Beirã de um deles, a feliz inspiração de conferir alguma dignidade e embelezar o gigantesco Cancho plantado no centro da aldeia entre a Avenida Dr. António de Matos Magalhães a poente e a Rua Miguel Barcelos Maia que lhe fica paralela, a nascente.

Os dois foram grandes amigos toda a sua vida e nutriam, como eu, um profundo amor por esta aldeia onde nasceram. Um dos dois ao chegar a moço, optou pela carreira militar e foi um distinto Oficial Paraquedista mas nunca deixou de regressar frequentemente sempre que podia em visita à sua mãe, a querida Mestra que tomou conta de mim entre os 2 e os 6 anos para que a minha mãe pudesse ir trabalhar. O segundo dos dois, ao terminar o SMO (serviço militar obrigatório) ingressou na Guarda Fiscal sem também nunca perder a sua Beirã de vista.

E foi já na situação de aposentados os dois que um deles foi eleito Presidente da Junta de Freguesia. Nada daquilo que estou a escrever é fruto da minha imaginação porque sendo amigo dos dois quase desde que nasci, sempre os estimei e respeitei. E um dia em amena conversa com o então Presidente da Junta, ele disse-me que o nosso amigo de infância lhe dissera que era capaz de ficar bonito um Miradouro no Cancho da Escola. 

Foi nesse dia nasceu a ideia que frutificaria e daria azo à sua construção. Já a Sócha, terá sido uma também muito feliz ideia do então Presidente da Junta e que, tão harmoniosa e esteticamente ali ficou enquadrada a embelezar ainda mais o local pois como se pode ver as paredes circulares das duas construções foram executadas em pedra pedra seca respeitando os usos e costumes das ancestrais construções de toda esta região, tendo ficado ambas exatamente iguais. 

Ouro sobre azul, acho eu!

Pena que, alguns anos mais mais tarde, o Município de Marvão, através de um projeto financiado maioritariamente por fundos europeus, decidiu ajardinar o local e seus acessos. Mas foram tantos os acessórios modernos e inadequados à rusticidade e simplicidade daquele local, que, como se pode verificar, retiraram muito encanto e feriram a harmonia às construções já existentes.

Corrimões que ninguém usa, papeleiras de acrílico, chafarizes ultramodernos que não funcionam, placa informativa metálica quase maior do que a porta de madeira da Sócha, iluminárias inestéticas nos acessos quase sempre sem luz, enfim, em vez de um modesto e rústico miradouro ficou a parecer uma árvore de Natal permanente. 

Manda quem pode, mas nem sempre bem...

Nunca fui e continuo a não ser adepto da crítica bacoca, como infelizmente tanta gente o faz só porque sim. Amo a minha terra como a amavam aqueles dois ilustres Beiranenses que já não se encontram entre nós mas cuja memória continuo a estimar, a respeitar e não esqueço. Tal como eu, também eles nunca abandonaram a Beirã, por ela deram o melhor de si, sem estarem à espera de com isso alcançarem lucros ou vantagens, sempre mais atentos ao Bem da Comunidade do que aos seus próprios interesses.

Infelizmente nestes tempos estranhos que vivemos cada um olha apenas para o seu riquíssimo umbigo, nada faz se não tirar disso alguma vantagem para si ou para os seus. Propositadamente não vou referir o digno nome dos dois ilustres Beiranenses que neste escrito quero honrar e homenagear, porque continuo a ser seu amigo e eles merecem. As pessoas naturais da Beirã, da velhinha e modesta Beirã daquele tempo, sabem exatamente quem são sem qualquer sombra de dúvida.

Porque nós não somos o que temos mas aquilo que deixamos. E qualquer dos dois foram pessoas de bem, disponíveis, atentos, generosos, amigos leais. Estejam em paz. Eu continuo a ser-vos grato pela vossa amizade e até ao dia em que talvez possamos voltar a encontrar-nos de novo nessa outra dimensão onde reina a paz e terminam a ganância, a falsidade, a desunião.


José Coelho

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Bom Fim de Semana

A neta Filipa estava lá, é muito bonita, mas é pouco dada a estas cenas!
Foto Pedro Coelho

Só para pessoas cuscas e más línguas

O cachopo que teve pressa...

Cachopo ainda mas já Primeiro Cabo na guerra de Angola 

A gente muda. Muda tanto! Mas não mudamos porque queremos. É a Vida que nos obriga a mudar. Os tombos que damos, os abanões que levamos, as certezas que deixamos de ter, as injustiças e as deslealdades oriundas tantas vezes de pessoas insuspeitas, a perda e ausência daqueles que amávamos, tudo isso e muito mais faz com que as nossas convicções oscilem, abram brechas irreparáveis ou desabem de vez. E das duas uma. Ou tudo aquilo que nos feriu, nos sarou, nos solidificou, tornou mais forte a nossa estrutura física e moral, nos fez ficar mais resistentes aos infortúnios, mais imunes ao desassossego e mais seguros de nós mesmos, ou estilhaçou as nossas convicções em mil pedaços fragilizando-nos, transformando-nos em seres indiferentes, apáticos e conformados com a nova ordem das coisas em que acreditávamos, sem força anímica para resistir ou lutar seja pelo que for.
Na minha meninice e adolescência fui uma pessoa completamente diferente daquela que sou hoje. Até ir para a tropa fui um moço alegre e bem-disposto, sonhador e cheio de projetos. Nem a humildade do meu berço ou precaridade das minhas habilitações literárias me toldavam o pensamento ou diminuíam no coração a enorme esperança que depositava numa vida melhor e num futuro não muito distante que tencionava alcançar. Ansiava por ir à luta e batalhar pelo que queria para mim mas tinha plena consciência que havia um obstáculo incontornável a vencer para conseguir conquistar as minhas metas e objetivos. E esse obstáculo nada tinha a ver com as parcas habilitações literárias ou com a humilde condição social de que era detentor.
Chamava-se "tropa".
Em finais dos anos sessenta e com a guerra de África no seu auge, o serviço militar resolvido era meio caminho andado para novos rumos de vida e para a realização (ou não) de muitos projetos ou sonhos de qualquer jovem em idade de incorporação nas fileiras das forças armadas. Porém essa idade parecia ainda distante para mim até ao dia em que um Edital a convocar os mancebos da freguesia da Beirã que haviam sido apurados nas “sortes” no ano de 1968, para apresentarem nas unidades que a cada um era indicada, afim de darem início ao cumprimento do seu Serviço Militar Obrigatório.
O conteúdo daquele papel timbrado com o escudo da República Portuguesa exposto na vitrina da Junta de Freguesia espicaçou por completo o meu espírito aventureiro e nunca mais me deu sossego.
Sabia lá eu então provinciano ingénuo do Norte-Alentejano de onde quase nunca tinha saído o que era a tropa, o que era o mundo, o que era a guerra. Mas decidi que estava na hora de vencer o intransponível obstáculo que se agigantava entre mim e o meu futuro, como também de todos os mancebos da minha geração. Porque cada um sabia de si, na parte que me dizia respeito eu estava absolutamente determinado a meter os pés à ribeira para resolver o assunto o quanto antes, pois naquele Edital constava também o convite e condições obrigatórias a quem estivesse interessado em requerer a sua incorporação como voluntario para cumprir antecipadamente o serviço militar em qualquer dos ramos das Forças Armadas.
Com tão só os meus sonhadores 17 anos recém cumpridos dei por mim poucos dias depois a pedir ao meu pai que me autorizasse ir voluntário para a tropa. Sim, tive de pedir-lhe, porque naquele tempo qualquer jovem só era dono do seu nariz a partir dos 21 anos. Até esse dia era menor e dependente da autorização dos progenitores para quase tudo. Depois de vencidos os protestos da tia Florinda que não compreendia nem se conformava com a maluquice do seu menino querer ir já para a tropa padecer, como se não tivesse muito tempo para isso quando chegasse a sua vez, lá levei comigo o meu pai – grande e inesquecível amigo sempre pronto a apoiar-me – a Marvão na “cámionete da carrêra” meter os tais papéis que ele teve de assinar com o dedo porque não sabia escrever, a conceder-me a sua autorização.
Estávamos em meados de 1969.
Tardou muito pouco a convocatória logo acompanhada de uma guia de marcha a mandarem-me apresentar em 22 de dezembro desse mesmo ano para ser submetido a Inspeção Médica no já extinto Regimento de Infantaria 16 em Évora. Apurado sem qualquer problema como era expectável, em maio do ano seguinte frequentei a recruta no BC8 de Elvas, seguindo-se a especialidade de transmissões no BC5 em Campolide, onde por motivo das boas notas nos testes fui promovido a 1º Cabo.
Ainda mal havia terminado a especialização quando fui mobilizado para integrar o BCAV3871 que se formou no RC3 em Estremoz e passou depois por Santa Margarida até embarcarmos num Boeing 747 a caminho da guerra em Angola com destino ao Belize e às profundezas do Maiombe no enclave de Cabinda, a floresta do povo fiote, do abacaxi doce como açúcar, do pau-que-dá-tesão, do pau preto para as mobílias caras, do petróleo da Cabinda Gulf Oil, do minimosquito miruim quase invisível à vista mas que nos picava e deixava todos cobertos de comichosas bolhas, das jiboias e jacarés, dos gorilas e saguis, do calor sufocante e do cacimbo pegajoso entre outros mimos incontáveis.
A Zona de Ação do BCav3871 no Alto Maiombe era comunicável apenas por uma estrada alcatroada recentemente inaugurada com duzentos e muitos quilómetros desde o Miconje a norte até à cidade de Cabinda a sul, toda ela bordejada de cima a baixo por aquela imponente segunda maior floresta do mundo, de mato denso e impenetrável, de árvores gigante cujas copas parecem tocar o céu, entrecortada aqui e ali por muitas e pantanosas picadas onde os Unimogs e Berliets se atascavam até à carroçaria, mas também profícua em imperceptíveis carreiros ou veredas por onde os guerrilheiros – nós chamávamos-lhes turras – do MPLA, da UPA ou da UNITA se emboscavam, se escondiam, colocavam minas e armadilhas para nos fazerem ir pelos ares ao menor descuido ou nos esperavam emboscados no mato como se nós fossemos animais de caça para abate, tornando com isso num inferno completo muitos dias das muitas semanas e dos muitos meses das nossas então jovens e inexperientes vidas.
Aquele inferno na terra mudou para sempre a maneira de ser, de estar, de ver, de encarar o mundo e a vida, do cachopo ingénuo que quis armar-se em adulto antes do tempo e para o conseguir se vestiu de soldado. Foi alto o preço pago por essa sua pressa de chegar ao futuro.

Continua, no livro Histórias do Cota

José Coelho                                                      

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Amigos de verdade são difíceis de encontrar. Mas existem...


Não vou mencionar o seu nome. É um velho e estimado amigo desde agosto de 1985. Já foi por isso e como usa dizer-se por estas bandas, há um bom par de anos. Eu tinha acabado de ser promovido a sargento e colocado por motivo da promoção, no mesmo local onde ele já prestava serviço. A profissão era a mesma, só as responsabilidades de um e de outro eram um bocadinho diferentes. Mas o objetivo profissional era também o mesmo. Nos oito anos seguintes formei com ele e com os outros 35 camaradas do efetivo, uma equipa de trabalho excelente onde a motivação e coesão entre todos deram azo a muitos sucessos profissionais na área sob a nossa alçada.

Mal "aterrei" na nova colocação e por ser o mais maçarico na classe de sargentos, nem tive tempo de aquecer o lugar porque fui imediatamente escalado pelo comando para marchar em reforço eventual às praias algarvias acompanhado por duas dezenas e meia de subordinados oriundos dos outros postos da subunidade que me competia comandar naquela missão. Entre eles e por mera casualidade marchou comigo na qualidade de condutor da minha viatura, este velho e estimado amigo que hoje quero enaltecer. Alvor que ainda não tinha forças de segurança permanentes, era o nosso destino. Lá chegámos por volta do meio dia depois de uma cansativa viagem de trezentos quilómetros nos velhos Land Rover com aquelas abafadas coberturas de lona e plástico, duros como pedras, nos primeiros dias daquele agosto. 

A receber-nos estava o presidente da Junta de Freguesia para nos indicar a Escola Primária mesmo no centro da vila onde iríamos ficar instalados para ali "montarmos" o primeiro Posto Eventual da GNR do Alvor. Fomos pois os pioneiros, a primeiríssima força de segurança a assentar arraiais naquela emblemática vila piscatória, entretanto já promovida a cidade. Eu não conhecia nenhum dos elementos que levava sob o meu controlo. Era muito novo, quer na idade, quer no desempenho das funções. Porém, a vontade de assumir sem hesitar qualquer desafio que surgisse naquilo que eram as minhas responsabilidades, deu-me o ânimo e a força mais que suficientes para de imediato meter mãos à obra. Não tive qualquer dificuldade porque a excelente "equipa" que me coadjuvava, sendo cada um de seu lado, "funcionava" harmoniosamente como se fôssemos um só. Não sei se por ter sido a minha primeira missão como "chefe" de equipa, sei que ficou gravada no meu íntimo como uma das melhores recordações da minha vida profissional.

E foi em Alvor, muito longe do nosso ambiente habitual e das nossas famílias, que tive a sorte e o privilégio de iniciar esta amizade que dura até hoje quarenta anos depois, com a pessoa mais íntegra, leal, frontal, sensível e honesta que conheci em toda a minha vida. Nos poucos momentos disponíveis entre o corre corre de um lado para o outro numa vila a abarrotar de turistas e de problemas para resolver, talvez também por sermos camaradas do mesmo posto, começámos espontaneamente a falar das nossas vidas e famílias um com o outro. Eu, porque queria saber coisas sobre Nisa, as gentes e os camaradas que iriam ser o meu dia a dia quando regressássemos a casa. Ele, talvez porque se sentisse um pouco sozinho no meio de camaradas que não conhecia de lado nenhum e com quem não tinha a menor afinidade. 

Fosse pelo que fosse estabeleceu-se entre nós alguma empatia e confiança, se não mesmo uma já uma sincera amizade. Dali até eu ficar a saber de onde ele era, que tinha uma filha linda que adorava e muitas outras confidências suas, foi um pequeno passo. Obviamente também eu retribuí com as minhas confidências familiares e quando regressámos às nossas normais funções, a confiança e a amizade mútuas foram-se consolidando de tal modo que ao fim de poucos meses as nossas esposas e filhos se tornaram também bons amigos passando a ser normais os convívios familiares ora em nossa casa, ora em casa deles. Mas o mais gratificante para mim foi o facto de nunca este incomparável amigo se ter tentado aproveitar da situação em seu benefício. Muito pelo contrário. Se alguém pecou por excesso de confiança, fui eu. 

Não o fiz por mal, mas sei que fiz.

Por exemplo naquele dia em que lhe sugeri que fosse fazer uma guarda de honra no lugar do camarada a quem calhava o serviço por ordem de escala mas que queria ir a Lisboa ver um jogo do seu Sporting e por isso me pediu se não haveria alguém que quisesse trocar. E eu, irrefletidamente, sugeri-lhe: 

- Podias ir tu depois quando te calhar a ti, vai ele no teu lugar!

Sério e íntegro até à medula, olhou-me surpreendido e com a frontalidade que todos sempre lhe conheceram respondeu decididamente:

- Não meu sargento, não acho que deva ir eu. O camarada não está doente e não é justo que eu vá fazer um serviço duro que lhe pertence a ele, para ele ir ver um jogo de futebol!

A lógica do argumento deixou-me embaraçado e não pude evitar dar-lhe razão. Mas fiquei ligeiramente melindrado com a recusa como se o proveito ou o prejuízo fossem meus. Porém, com tempo e reflexão percebi que o erro havia mesmo sido meu. E ainda hoje agradeço aquela frontalidade sem medo muito própria dos homens com carácter e integridade moral como ele sempre foi, é, e irá sê-lo, até ao fim dos seus dias. 

Prova do que acabei de afirmar foi a atitude deste amigo invulgarmente leal na tarde do dia em que eu fui promovido ao posto seguinte. Já nem era sequer seu "chefe" por ter pedido transferência para mais perto da terra natal e da restante família. No decorrer desse ano fui nomeado para o curso de promoção ao posto seguinte e rumei a Mafra onde o frequentei e concluí com sucesso. Dali a poucas semanas veio a promoção, numa tarde em que havia instrução de tiro na carreira de tiro da subunidade e as tropas se reuniam em redor dos jipes para o regresso cada um ao seu posto de origem. Como os rádios dos jipes ficam permanentemente ligados, eis que no sitrep diário o operador radio transmitia: "promovido ao posto de sargento-ajudante o primeiro sargento Coelho contando a antiguidade..."

Do meio do ajuntamento de tropas ouviu-se uma voz depreciativa da minha pessoa, provavelmente por alguma razão que eu teria causado pois nem que um chefe se pinte, nunca conseguirá agradar a todos porque em todos os rebanhos há sempre alguma ovelha ronhosa. Não sei e nem quero saber porque assentou mal àquele fulano a minha normal promoção ao posto seguinte. 

Ainda a "boca" depreciativa da minha pessoa fazia eco e já o meu leal amigo, indignado com o que ouvira, estava diante do gajo para lhe dizer cara a cara: 

- Na minha presença não voltas a insultar esse homem estando ele ausente sem se poder defender! 

O mal-falante, por sinal mais graduado que o meu leal amigo, retorquiu meio atarantado:

- Isso! Defende o teu padrinho...

 E o meu amigo respondeu no mesmo tom indignado:

- Não, não é meu padrinho! Mas é meu amigo, como eu sou amigo dele. E não é de homem  que o insultes nas suas costas quando na frente dele lhe lambias as botas. Ficas já avisado que ele vai ficar a saber o que tu disseste, porque sou eu que o vou informar...

- Mas não informou. 

- Nunca me falou em tal coisa.

- Ainda hoje não sabe que eu sei.

Quem me contou algumas semanas depois essa história foi um dos subordinados que eu comandava e tinha sido nomeado também para ir fazer tiro naquela tarde. Assistiu a tudo e ficou francamente admirado quer com a atitude honesta do meu leal amigo que não se intimidou com a patente do outro e lhe meteu o dedo no nariz, quer com a indiscutível amizade para comigo assim provada, mais de um ano depois de eu ter deixado de ser seu chefe. 

Não digo o seu nome. Não por que ele não mereça, muito pelo contrário, mas por respeitar o seu direito à privacidade, como ele sempre me respeitou a mim. Tive a honra e o privilégio de estar presente no casamento da filha que ele adora e merecidamente o adora também a ele, tal como ele me deu a honra e o privilégio de festejar comigo o casamento dos meus dois filhos.

O tempo passou. Muito tempo mesmo. Décadas já. Mas a nossa amizade permanece intacta. Intocável. Rara. Não existem no mundo muitas pessoas assim. Infelizmente. Obrigado meu leal amigo por tudo o que me ensinaste. Se sou hoje uma pessoa melhor, aprendi também contigo a sê-la.

José Coelho

sábado, 17 de agosto de 2024

Coisas (muito bonitas) que leio


Há pessoas que preferem ser temidas. Há outras que preferem ser amadas. E tu, o que preferes? Não procures ganhar a atenção, procura antes ganhar o respeito. E se falarem de ti pelas costas é porque te respeitam a cara e é respeito igual. O respeito dura muito mais tempo! Infelizmente, hoje em dia, a consideração tem a velocidade de um espirro ou a rapidez de um piscar de olhos. A consideração pelo outro tornou-se temporária, porque hoje, mais do que nunca ela depende da utilidade que tu podes ser ou dar para o outro. Um dia tu és tudo, no outro não és nada. Mas não te prendas a isso, nem ao que possam falar de ti. Sabes, tu tens tantos lugares novos para viver… não mores naquilo que não existe mais, não te prendas ao passado, quer ele tenha sido bom ou menos bom. É para a frente que a vida segue. Permite-te buscar mais além do que já conheces, explorar o que nunca viveste antes. Deixa também que a vida te surpreenda. Tudo é possível para quem confia que é capaz. E eu sei do que tu és imensamente capaz.

RicardoEsteves.padre
- 17. 08. 2024

Há que cuidar


Pintura e manutenção periódica da Toca dos Coelhos. Há que cuidar do que é nosso e tanto custou a erguer...

- 17. 08. 2024

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Quem dá o que tem, mostra o que deseja


Bom fim de semana ou continuação de Boas Férias, Família & Amizades. Descansem, divirtam-se, sejam genuinamente felizes. E se não puderem ser ainda mais, sejam-no pelo menos tanto como nós.

José e Maria Coelho

Há gestos que dizem mais que mil palavras


Este foi o bolo do nosso 48º Aniversário de Casamento, as denominadas Bodas de Granito, executado pelas hábeis mãos de uma profissional por excelência, imaginado e encomendado por uma pessoa que me é próxima e gosta muito de mim, à qual eu retribuo todo o carinho na mesma conta e medida. 

É um bolo único porque nunca houve outro igual ou parecido sequer. Entendi por isso que mesmo sem a conhecer devia contactar a sua autora para agradecer, elogiar a perfeição do seu trabalho mas também e sobretudo, reiterar quanto o apreciámos e nos encantou. É provável que agora alguém o encomende e outros iguais ou semelhantes sejam executados porque esse é o seu trabalho, mas este será sempre o primeiro, o original.

Quem o encomendou fê-lo por gostar de mim como já escrevi mas também por saber quanto eu gosto da Estação da Beirã e quanto queria voltar a vê-la de novo ativa, pese embora as hipóteses de que tal aconteça sejam escassas senão nulas. Pela sua arquitetura que faz dela uma das mais bonitas do nosso País, pelos magníficos azulejos da autoria de Jorge Colaço e finalmente pelo amor que tenho por ela enquanto Beiranense.

Neste lado do bolo são perfeitamente visíveis os painéis com o Castelo de Marvão no cimo da serra, com o Convento de Nossa Senhora da Estrela em Marvão, com o Templo de Diana em Évora e com a Torre de Belém em Lisboa. Os painéis axadrezados verde-brancos eram os que decoravam a Sala de Espera, da Bilheteira e de outras dependências da Estação. 

Ficou lindo, surpreendente, uma autêntica obra de arte.

Independentemente da celebração a que se destinava, podia ter sido uma peça vulgar, mais ou menos decorada mas igual a tantos outras bem bonitas e originais também. Porém quem na sua mente o imaginou, quis fazer algo diferente, quis que tivesse alguma coisa a ver com "a minha cara" com "a menina dos meus olhos" quis que fosse esta surpresa cheia de simbolismo que mexesse comigo e me chegasse ao coração. 

Chegou mesmo! 

Fez toda a diferença e tornou a nossa celebração familiar muito mais bonita e afetiva. 

Proferir ou escrever apenas um "obrigado" a quem o merece é demasiado curto e insignificante, porque foi inquestionavelmente a "prendinha" mais especial que poderíamos imaginar. Ser Família é isto. Chamam-se a estes gestos Amor Fraterno. Foi sempre isto que eu vi fazer em casa dos meus pais, era este sentimento, este bem-querer mútuo que senti sempre presente enquanto eles foram vivos.

Nunca houve dinheiro de sobra na sua casa mas nunca lhes faltou o amor por cada um de nós.

Infelizmente eles partiram e com eles levaram muito do que nos ensinaram e praticaram toda a vida. Na minha casa e com a Família mais próxima, esposa, filhos, noras e netas, tento, quanto posso, que esse vínculo de Família e esse amor fraterno não se perca. Nem sempre consigo porque está tudo tão diferente tão modificado e frio que até os valores e princípios estão fora de moda.

Fazer o que?

Por isso fico de coração cheio e a transbordar de felicidade quando alguém me diz sem proferir uma só palavra, que me quer bem. Porque há gestos mais explícitos do que quaisquer palavras. Já não devo ter uma vida muito longa porque o outono da minha vida está a chegar às portas do inverno. Sinto isso a cada dia, semana e mês que passam. 

Mas enquanto Deus me der alguma energia e raciocínio, a Família será sempre a minha maior prioridade e mais preciosa riqueza.


José Coelho

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Palavras para quê?



 48 anos, 576 meses, 2 504 semanas, 17 532 dias e 420 768 horas depois, 
 as mesmas pessoas e o mesmo sorriso. Mais palavras para quê?

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Bodas de Granito


Foi no dia 13 de agosto de 1976 e véspera do nosso casamento que festejámos a despedida de solteiros na esplanada do então Restaurante Sever, hoje Hotel Rio Sever, na Portagem. Com um punhado de malta amiga e familiares. Às onze da noite desatou inesperadamente a chover e tivemos de bazar todos. Em jeito de consolo alguém disse:
- Casamento molhado, casamento abençoado!
Esta foto não é dessa noite mas é também de uma data e festa muito felizes para nós. Um pé de dança no batizado da nossa primeira e querida neta. E amanhã 14.08.2024, iremos celebrar as nossas Bodas de Granito, se Deus quiser. Haja saúde...
A foto deve ser da autoria do Pedro Coelho