domingo, 14 de janeiro de 2024

Lugares que povoam a minha memória

Casa da Meirinha - Beirã 

 

Fica para lá da Murta, depois da Anta, quase encostada à Estrada da Herdade como a gente por aqui lhe chama. Foi morada de famílias durante décadas. A última, se bem me lembro, era eu ainda cachopo, foi a numerosa família do ti João e da ti Maria José. O ti João trabalhava “à jorna” na casa do senhor João Dinis e a ti Maria José vinha todos os dias da Meirinha à Beirã – cerca de 2 km – trazer-lhe o almoço à cabeça, com os filhos atrás ou ao colo.

Depois que essa família de lá saiu e veio morar para a aldeia, não me recordo de lá morar mais ninguém. Já agora um pouco de história ainda que reduzida à dimensão dos meus humildes conhecimentos. Chamava-se “à jorna” o trabalho que era pago ao dia sem qualquer outro vínculo que não fosse apenas os dias e o ordenado ajustados pelas duas partes, trabalhador e patrão.

Tanto podia ser um dia só como uma semana ou duas ou três, dependendo do tempo necessário para fazer o serviço. Normalmente eram tarefas exclusivamente agrícolas e sazonais. Cavar ou semear um quintal, uma horta ou uma vinha, arrancar ou colher legumes, sachar um jardim ou uma belga de qualquer coisa, ceifar uma seara, gadanhar uma tapada...

Por sua vez, os trabalhadores com vínculos mais duradouros recebiam ao mês não só o ordenado combinado com o patrão, como também as comedías ajustadas. Não, não confundam com comédias. Eram mesmo comedías com acento agudo no i por se tratar de coisas de comer – géneros alimentares – que eram pagos juntamente com o ordenado e do qual faziam parte integrante.

A esses assalariados permanentes chamava-se “os justos” e os ajustes destes homens eram apenas verbalmente firmados e aceites por ambas as partes, sendo tão ou mais respeitados do que são hoje os que se fazem por escrito. Tinham normalmente a duração de um ano, que se iniciava e terminava de S. Pedro a S. Pedro, ou seja, de 29 de Junho do ano do ajuste a 28 de Junho do ano seguinte mas eram sucessivamente renovados por igual período de tempo enquanto as partes assim o quisessem.

O meu avô José Lourenço e os meus tios maternos, enquanto solteiros, tiveram sempre esse vínculo de justos e assim se mantiveram assalariados por anos sucessivos, décadas até e quase sempre por conta do mesmo patrão. Os ordenados eram pequenos porque cada lavrador pagava o menos que conseguia. Para compensar depois essas fracas pagas e serem capazes de manter por meses ou anos os guardadores dos gados, os ganhões do amanho das terras, os carreteiros das carretas de vacas e os carreiros dos carros de bestas, acresciam os ordenados das tais comedías, que normalmente se compunham de um saco de centeio em grão para moagem e fabrico do pão - só os patrões comiam pão de trigo – uma almotolia com azeite, alguns litros de grão de bico ou de feijão frade – normalmente um alqueire – e dois ou três queijos secos.

Sei isso porque eram essas as comedías que o meu avô trazia para casa no fim do mês, juntamente com a sua magra mesada de justo, no Matinho. Logo no dia seguinte lá tinham que as mulheres ir de talêgo de centeio à cabeça a caminho dos moinhos no rio Sever para trazerem a farinha do pão que alimentava a família todo o mês seguinte. Curiosamente, as pessoas eram aparentemente felizes e não faltava trabalho a ninguém um pouco por toda a parte. Bem diferente dos dias de hoje.

Todas as casas, em todos os lugares, por mais ermos que fossem, eram habitadas como a da Meirinha que ilustra esta prosa. Não se consegue ver na foto, mas ao lado da casa está também um forno de lenha onde era cozido o pão. Poucas são as casas por esses campos que não têm um forno e uma eira por perto, porque eram essenciais à sobrevivência dos seus moradores.

E também uma horta com uma fonte, um tanque ou um poço nas redondezas, para abastecimento de água potável para o seu consumo e regadio dos alimentos que metiam na panela para as suas refeições. Basta-me fechar os olhos e pensar um pouco: na Murta, a eira é também muito perto da estrada antes das casas e o forno era ao lado da casa principal. Um pouco mais acima, na Anta, a eira é no cimo de uma laje e o forno em frente da casa. No Penedo da Rainha, a eira faz parede com a estrada e o forno é ao lado da queijeira. Na Tapada do Cabeço, a eira fica a dez metros da estrada do Pereiro, o forno na empena da casa.

No Cancho de Ruivo, na Torre, no Pereiro, na Broca, no Maxial, no Vale do Cano, no Cabril, na Bica... Em tantos outros lugares da minha freguesia existem estas estruturas, para um imprescindível apoio doméstico às antigas donas de casa, quase sempre mães de numerosas famílias. Jazem hoje por aí abandonadas, quase todas em ruínas, principalmente os fornos de lenha que vão abatendo por força das intempéries e do abandono.

Já as circunferenciais eiras, onde, ano após ano, foram sendo amontoados e debulhados searas e grão, porque construídas sobre o imortal granito, ficarão, como as antas ou dólmens milenares que por aí abundam também, a testemunhar pelos séculos fora os usos e costumes das humildes gentes que por estas bandas conseguiam sobreviver do que a terra dava e serem felizes com o pouco que tinham.

Refém de tão queridas memórias a minha alma só vai deixar de chorar no dia que eu morrer.

José Coelho in Histórias do Cota

(Texto e foto)