Fica para lá da Murta, depois da Anta, quase encostada à Estrada da Herdade como a gente por aqui lhe chama. Foi morada de famílias durante décadas. A última, se bem me lembro, era eu ainda cachopo, foi a numerosa família do ti João e da ti Maria José. O ti João trabalhava “à jorna” na casa do senhor João Dinis e a ti Maria José vinha todos os dias da Meirinha à Beirã – cerca de 2 km – trazer-lhe o almoço à cabeça, com os filhos atrás ou ao colo.
Depois que essa família de lá
saiu e veio morar para a aldeia, não me recordo de lá morar mais ninguém. Já
agora um pouco de história ainda que reduzida à dimensão dos meus humildes
conhecimentos. Chamava-se “à jorna” o trabalho que era pago ao dia sem qualquer
outro vínculo que não fosse apenas os dias e o ordenado ajustados pelas duas
partes, trabalhador e patrão.
Tanto podia ser um dia só como
uma semana ou duas ou três, dependendo do tempo necessário para fazer o
serviço. Normalmente eram tarefas exclusivamente agrícolas e sazonais. Cavar ou
semear um quintal, uma horta ou uma vinha, arrancar ou colher legumes, sachar
um jardim ou uma belga de qualquer coisa, ceifar uma seara, gadanhar uma
tapada...
Por sua vez, os trabalhadores
com vínculos mais duradouros recebiam ao mês não só o ordenado combinado com o
patrão, como também as comedías ajustadas. Não, não confundam com comédias.
Eram mesmo comedías com acento agudo no i por se tratar de coisas de comer –
géneros alimentares – que eram pagos juntamente com o ordenado e do qual faziam
parte integrante.
A esses assalariados
permanentes chamava-se “os justos” e os ajustes destes homens eram apenas
verbalmente firmados e aceites por ambas as partes, sendo tão ou mais
respeitados do que são hoje os que se fazem por escrito. Tinham normalmente a
duração de um ano, que se iniciava e terminava de S. Pedro a S. Pedro, ou seja,
de 29 de Junho do ano do ajuste a 28 de Junho do ano seguinte mas eram
sucessivamente renovados por igual período de tempo enquanto as partes assim o
quisessem.
O meu avô José Lourenço e os
meus tios maternos, enquanto solteiros, tiveram sempre esse vínculo de justos e
assim se mantiveram assalariados por anos sucessivos, décadas até e quase
sempre por conta do mesmo patrão. Os ordenados eram pequenos porque cada
lavrador pagava o menos que conseguia. Para compensar depois essas fracas pagas
e serem capazes de manter por meses ou anos os guardadores dos gados, os
ganhões do amanho das terras, os carreteiros das carretas de vacas e os
carreiros dos carros de bestas, acresciam os ordenados das tais comedías, que
normalmente se compunham de um saco de centeio em grão para moagem e fabrico do
pão - só os patrões comiam pão de trigo – uma almotolia com azeite, alguns
litros de grão de bico ou de feijão frade – normalmente um alqueire – e dois ou
três queijos secos.
Sei isso porque eram essas as
comedías que o meu avô trazia para casa no fim do mês, juntamente com a sua
magra mesada de justo, no Matinho. Logo no dia seguinte lá tinham que as
mulheres ir de talêgo de centeio à cabeça a caminho dos moinhos no rio Sever
para trazerem a farinha do pão que alimentava a família todo o mês seguinte.
Curiosamente, as pessoas eram aparentemente felizes e não faltava trabalho a
ninguém um pouco por toda a parte. Bem diferente dos dias de hoje.
Todas as casas, em todos os
lugares, por mais ermos que fossem, eram habitadas como a da Meirinha que
ilustra esta prosa. Não se consegue ver na foto, mas ao lado da casa está
também um forno de lenha onde era cozido o pão. Poucas são as casas por esses
campos que não têm um forno e uma eira por perto, porque eram essenciais à
sobrevivência dos seus moradores.
E também uma horta com uma
fonte, um tanque ou um poço nas redondezas, para abastecimento de água potável
para o seu consumo e regadio dos alimentos que metiam na panela para as suas
refeições. Basta-me fechar os olhos e pensar um pouco: na Murta, a eira é
também muito perto da estrada antes das casas e o forno era ao lado da casa
principal. Um pouco mais acima, na Anta, a eira é no cimo de uma laje e o forno
em frente da casa. No Penedo da Rainha, a eira faz parede com a estrada e o
forno é ao lado da queijeira. Na Tapada do Cabeço, a eira fica a dez metros da
estrada do Pereiro, o forno na empena da casa.
No Cancho de Ruivo, na Torre,
no Pereiro, na Broca, no Maxial, no Vale do Cano, no Cabril, na Bica... Em
tantos outros lugares da minha freguesia existem estas estruturas, para um
imprescindível apoio doméstico às antigas donas de casa, quase sempre mães de
numerosas famílias. Jazem hoje por aí abandonadas, quase todas em ruínas,
principalmente os fornos de lenha que vão abatendo por força das intempéries e
do abandono.
Já as circunferenciais eiras,
onde, ano após ano, foram sendo amontoados e debulhados searas e grão, porque
construídas sobre o imortal granito, ficarão, como as antas ou dólmens
milenares que por aí abundam também, a testemunhar pelos séculos fora os usos e
costumes das humildes gentes que por estas bandas conseguiam sobreviver do que
a terra dava e serem felizes com o pouco que tinham.
Refém de tão queridas memórias
a minha alma só vai deixar de chorar no dia que eu morrer.
José Coelho in Histórias do Cota
(Texto e foto)