No casamento de um sobrinho do qual fomos padrinhos
Assim
que fechei a porta da minha casa atrás das costas desatei num pranto
incontrolável e profundo. Chorei como nunca me lembro de ter chorado até àquele dia. Chorei pela injusta e maldosa falsidade acabada de
acontecer. Chorei por todos os enxovalhos que até ali sofrera desde a hora em
que pus os pés na Guarda Republicana e chorei de indignação por nunca
mais me ver livre de tantas e tão injustas agressões verbais.
Suportara melhor ou mais mal todas as calúnias por serem falsas, concebidas apenas por má fé e sem o menor fundamento. Mas chamarem-me desonesto? Afirmarem que eu era capaz
de “engendrar” um golpe sujo para ficar com… quinhentos escudos?
Não,
mas não mesmo!
Doía mais que uma unha arrancada e eu não ia consenti-lo, nem pintado.
Tinha que tirar aquilo a limpo. Aquele assunto tinha que ser muito bem
esclarecido e muito bem resolvido cara a cara para que não restasse qualquer
hipótese de dúvida acerca da minha honestidade e integridade de carácter. Nem
que para isso tivesse que partir as ventas ao “inteligente” camarada que fora
capaz de inventar tamanha sacanice…
Porque,
diz o povo, quem cala consente.
Não
podendo imaginar nem pouco mais ou menos, o que de tão grave pudesse ter sucedido,
a minha companheira ficou obviamente muitíssimo alarmada ao ver-me assim. Por isso
e para não a assustar mais, quer a ela, quer aos miúdos, tentei acalmar-me o
suficiente para lhe dizer que não havia nada de mal com a nossa gente e que já
lhe contaria tudo, conforme um pouco mais tarde aconteceu.
Depois de adormecerem os filhos, seguiu-se
uma longa noite de vigília a dois, enquanto ao nosso lado os dois pequenitos descansavam tranquilamente no seu soninho inocente.
Incapaz
de conter novamente um pranto deveras sentido à medida que ia avançando na minha
narrativa, provocado mais pela raiva de tantas injustiças sucessivamente
cometidas do que propriamente pelos vexames sofridos, foi ali e pela primeira
vez desde que ingressara na Guarda que contei em pormenor à minha companheira o inferno que havia sido todo meu o alistamento em Portalegre. E
expliquei-lhe que tinha guardado tudo isso apenas para mim por amor a eles,
mas sobretudo para lhe evitar a ela desgostos e preocupações não só pelo
enorme empenho que ela tinha em me ver lá, como ainda também pela felicidade
que isso manifestamente lhe causara.
Depois
e para terminar expliquei-lhe o caso do porta moedas com mil escudos perdido naquele dia no mercado pela
nossa prima Fernanda e um camarada tinha cobardemente alvitrado que fora tudo combinado com a prima para ela me dar depois metade. Fora essa a gota d’água a fazer ruir o dique das minhas forças e emoções,
incapaz de suportar mais heresias. E que no dia seguinte
tencionava esclarecer muito bem aquela calúnia nem que fosse à cacetada,
porque não admitia nem pintado a filho de puta nenhum que me acusasse de ser desonesto.
Nessa tormentosa noite, tive a maior prova da grande senhora que é a minha, a doce mãe dos meus filhos, a companheira discreta e portadora da maior simplicidade, mas capaz de se dispor a fazer o que quer que fosse para me
ajudar a ser feliz ao seu lado. Abraçada a mim, acariciando-me com a
mesma meiguice com que muitas vezes a vi acariciar os nossos filhos, repetia
carinhosamente para me sossegar, quando eu desatava de novo em pranto:
- Não chores mais que a gente vai resolver isso…
Quando
finalmente consegui sossegar, senti-me de facto melhor, invadido por um enorme
alívio interior. Com o seu braço sobre mim, a minha companheira ficou um bom bocado
em silêncio a pensar só para si.
Por fim foi a sua vez de
falar e a minha de a escutar.
E que bom foi ouvir tudo aquilo que ela foi capaz de me dizer a seguir.
Começou
por me afirmar que sim, que era verdade que se sentira muito feliz por eu ter
ingressado na guarda. Pelo futuro dos nossos filhos, pela nossa estabilidade como família, mas principalmente por mim, porque achava que eu merecia uma vida
melhor do que a vida do campo ou de mineiro, uma vez que nem uma nem outra
eram grande coisa. E que achava que apesar das dificuldades que parecia ter, a vida
de um guarda era um pouco mais “estimadinha” do que todas que eu tivera até ali.
Mas também que nunca lhe passara pela
cabeça as “brutidades” que na Guarda eram capazes de fazer contra mim ou contra qualquer outra pessoa. Talvez por isso mesmo tinham tão má fama e quase ninguém gostava deles.
Que
tudo aquilo era inadmissível e eu nunca devia ter ficado calado, devia
sim ter-lhe sempre contado tudo porque era para isso que éramos marido e
mulher. Para dividirmos o bom e o mau e para nos ajudarmos e aconselharmos sempre um ao outro. Que não queria que ninguém fizesse pouco de mim, nem daquela, nem de
outra maneira, porque se tivesse sabido de tudo isso durante o alistamento, teria
sido a primeira pessoa a dizer-me que desistisse do curso e os “mandasse cagar”
a todos.
E
continuou na sua inigualável e magnífica simplicidade com
a mesma veemência:
-
Peço-te agora que não te armes de pancada com ninguém. Não é assim que as
coisas se resolvem Zé. Porque depois seria pior e quem acabaria por perder a
razão serias tu.
-
Não digas nada por enquanto, telefona ao teu capataz Zé Moura e ao primo João Gaspar das Minas da Panasqueira. Vê se há hipótese de voltares
para lá. De certeza que eles te vão ajudar porque via-se que eram teus grandes
amigos. Depois de os ouvires e se eles te disserem para voltares, mete então o
papel e sai da guarda que eu e os nossos filhos iremos contigo como tu querias, porque para nos governarmos e criarmos
os nossos filhos não precisamos que andes a levar pontapés de quem é tanto
ou menos do que tu.
- Que me vai dar muita pena, isso vai, mas não quero de maneira nenhuma que
por nossa causa continues a ser maltratado por um mal que nunca fizeste. Esses senhores haviam era de ir ouvir uma a uma todas pessoas que tu tanto ajudaste. Sempre fomos pobres e não havemos de morrer à fome. Pode ser que até eu por lá arranje também algum trabalho na lavandaria do clube desportivo como a tua prima Maria José arranjou, para ajudar nas despesas da casa.
Muitas outras coisas esta minha extraordinária companheira me foi sugerindo durante toda aquela
madrugada para me animar, acalmar e confortar. Porém, a frase que nunca mais pude
esquecer por ser de todas a mais generosa, a que mais me comoveu e caiu bem,
foi ela dispor-se voluntariamente sem que eu o tivesse sequer sugerido para irmos
todos viver definitivamente para as Minas da Panasqueira, coisa que ela
sempre detestou e recusou a pé firme, apenas com o nobre intuito de me tirar de
lá para fora.
O seu seu generoso sacrifício só não foi necessário porque ao ser por mim confrontado cara a cara no dia seguinte perante todo o efetivo do posto e do comandante do mesmo, o camarada linguarudo mudou várias vezes de cor mas confessou "ter dito aquilo apenas da boca para fora e sem pensar" reconheceu a maldade que cometera e perante todos pediu-me desculpa e mais ainda que pudéssemos continuar amigos...
José
Coelho in Histórias do Cota