Ao tio António Coelho faltam os óculos. A mim, o bigode!
Fotomontagem José Coelho - 06.12.2022
Boa noite, velho amigo. Não penses que por me teres deixado há tantos anos me esqueço de ti. Pelo contrário. Quanto mais o tempo passa, mais sinto a tua falta e mais me pareço contigo. Quando corto a barba pela manhã, a imagem que o espelho me devolve é a tua cara escarrapachada. Já tenho comentado em voz alta:
- Zé, tás a ficar igualzinho ao tio António Coelho!
Sou-te infinitamente grato por tudo o que contigo aprendi. Éramos unha com carne. Sempre fomos. Gaiato com apenas 13 anos que feliz fiquei quando me tiraste daquela lonjura do Monte dos Pavios do tio José Bonacho onde andava a guardar vacas e de onde só podia vir a casa de quinze em quinze dias, para me levares a trabalhar contigo para a pedreira da Lagem do Sapato.
A seguir fomos para a Portagem a abrir o enorme buraco no leito do rio Sever onde construíram a grande piscina que lá existe. Os dois de madrugada de casa para o local do trabalho e no final do dia do local do trabalho para casa, a pé por caminhos e "atravessos". Mais tarde, rumámos a Campo Maior, sempre por conta do engenheiro Ventura do Porto da Espada de quem foste muitos anos subempreiteiro.
Éramos inseparáveis, exceto numa coisa. Aos sábados, no regresso a casa, tu ias mais os nossos camaradas de trabalho que connosco andavam lá, beber o vosso copinho e eu nunca queria ir contigo porque não gostava de vinho nem de tabernas. Ficava por isso sentado no banco traseiro da camioneta sozinho até vocês voltarem depois de "molharem o bico", o que às vezes demorava uma ou duas horas.
Se calhar o vinho era como as sardinhas e tinha muitas espinhas que vos empatavam tanto tempo!
Também nunca esqueci a ajuda cúmplice com que enfrentaste a teimosa relutância da senhora minha mãe e tua companheira de vida, quando assim que completei dezassete anos quis ir voluntário para a tropa e ela não queria que eu fosse com medo que morresse lá prá guerra, mas tu, mais atento à minha necessidade de mudar de vida do que em dar razão aos mesmos receios que ela tinha, não hesitaste em acompanhar-me à Câmara de Marvão para "assinares" com o teu dedo indicador direito untado de tinta preta, a necessária autorização paterna em virtude de eu ser de menor idade.
São inexplicáveis as saudades que tenho de falar contigo e daquele carinho que sempre nos uniu. Hoje, como o tempo está chuvoso, sentei-me no sofá à lareira. Inesperadamente veio-me à lembrança aquele dia em que eu estava sentado exatamente no mesmo sítio a aquecer-me ao lume e tu, já bastante doentinho e a preparares-te para me deixares órfão, vieste em pijama do teu quarto sentar-te no outro sofá ao meu lado e puseste sobre o meu joelho a tua mão, para me dizeres, bastante lucidamente:
- Isto está mal, filho. Os remédios já não me fazem nada…
E continuaste:
- Venho pedir-te uma coisa, filho. Não deixes que me levem para o hospital para ir lá morrer sozinho no meio de estranhos em cima de alguma maca, num corredor. Deixem-me ficar aqui na nossa casa onde eu gostava de poder morrer na minha cama e ao pé de vocês.
Tu sabias, Pai.
Sabias que o teu fim estava próximo.
E eu também sabia.
Todas as manhãs, antes de me ir embora para Portalegre, ia dar-te um beijinho, com receio que não resistisses e partisses antes de eu regressar à noite. Mas não. Esperaste por mim, dia após dia, todos aqueles que ainda te restavam, até à madrugada de 23 de Janeiro de 1994.
Eu estive no sofá a vigiar o teu agonizar até às duas da manhã para a Mãe Florinda poder ir dormir e descansar um pouco, entre as nove da noite e as duas da manhã. Depois veio ela para o meu lugar para ir eu descansar, porque tinha de levantar-me às seis e meia como todos os outros dias para ir trabalhar.
Ainda quase não tinha pousado a cabeça na almofada quando a Mãe Florinda tocou ao de leve na porta do quarto e chorosa me chamou:
- Zé, levanta-te filho, o pai já faleceu.
Que momento tão dramático da minha vida meu santo pai.
Não consigo esquecer tamanha angústia passados todos estes anos. Fui ter contigo, cerrei-te as pálpebras e abracei-te num pranto impossível de conter. Nesse dia não só perdi o meu melhor e maior amigo, como também parte do meu coração que levaste contigo. Nunca mais consegui ser mesma a pessoa, porque não há nada nem ninguém que te substitua no meu coração.
Por muito que ame os meus filhos e netas, teus netos e tuas bisnetas, o meu amor e gratidão por ti viverão comigo enquanto eu viver também. Hoje tinha de escrever-te esta carta, igual a muitas outras que já escrevi, mas depois apaguei. Esta não irei apagar. Não tenho de ter vergonha por sentir saudades tuas, meu velho e querido amigo.
Voltaremos a encontrar-nos, assim o creio.
Um beijo onde quer que estejas, do filho que nunca te esquece e continua a amar-te como se estivesses ainda aqui.
José Coelho