sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Memórias (e amizades) perenes


Comandante do Posto da GNR de Nisa de 1985 a 1992


Dois anos depois da minha permanência no comando do posto de Nisa, mercê de porfiados esforços e de muito trabalho colectivo de todos os que ali prestávamos serviço, conseguimos pacificar um pouco a Zona de Acção sob a nossa responsabilidade. Até à minha chegada a escala de serviço seguia sempre o mesmo ritmo, os mesmos horários, os mesmos giros, ainda que muitos deles não fossem já sequer viáveis. Até a vizinhança do Posto sabia mais ou menos a que horas normalmente saíam e regressavam as patrulhas. 

Por isso, em primeiro lugar e durante os primeiros meses, dediquei-me a conhecer pormenorizadamente a enorme área do Posto, desde os locais mais povoados até aos mais recônditos, para poder, in loco, aperceber-me onde seria mais necessária a nossa presença assídua e onde ela se poderia restringir apenas a uma ou outra passagem lá muito de vez em quando. Interessava-me sobremaneira conhecer as acessibilidades de e para a Beira Baixa, de e para as áreas dos outros postos confinantes com o de Nisa, estudando hipóteses de poder, a tempo e horas, “cortar” o caminho à gatunagem que por ali proliferava, porque dava para perceber que não era “prata da casa” e que vinham de outras bandas com viaturas adequadas às suas intenções, carregavam tranquilamente o que roubavam nesses transportes e esfumavam-se mais tranquilamente ainda pelos inúmeros caminhos e atalhos da zona, muitos dos quais não eram policiados há anos. 

Muitas vezes lhes apanhei o rasto, que, não raro também, coincidia com os rastos recolhidos em roubos anteriores, porém, chegados às estradas alcatroadas, era impossível determinar o rumo que a partir dali tinham tomado. É que Nisa tem acessos que podem levar em pouco tempo para Espanha, para a Beira Baixa, para Portalegre, Elvas ou Estremoz, ou para Abrantes e Ponte de Sor, com enormes extensões desses mesmos percursos cobertos por enormes, contínuas e cerradas manchas florestais que permitiam a deslocação camuflada de uma estrada a Norte, para outra a Sul, Este ou Oeste.

Depois de me parecer que já conhecia mais ou menos a área e os pontos sensíveis, avancei para uma total remodelação dos giros das patrulhas, optimizando os meios disponíveis, muito razoáveis já nessa altura, porquanto tinha ao dispor, para a policiar, pelo menos duas patrulhas a cavalo diárias, outras duas apeadas, uma ou duas motorizadas e ainda mais outra auto, sem contar com a minha permanente participação nesse esforço quer de dia, quer de noite, pois assim que terminava as minhas tarefas diárias no gabinete logo me fazia também ao policiamento da área em conjunto com o restante pessoal.

Ensinei-lhes tudo o que sabia, tudo o que me tinham ensinado a mim, mas, sobretudo, fiz-lhes sentir que podiam contar sempre comigo para os ajudar no que eles não soubessem, assumindo com eles e por eles toda e qualquer responsabilidade desde que as coisas seguissem os trâmites legais e desde que eles agissem em conformidade com as determinações dimanadas do Código Penal, do Código do Processo Penal e de todas as leis e regulamentos aplicáveis, tendo em conta também a regra de ouro que consistia no expresso dever de imediatamente fazer saber ao detido a razão da sua detenção, bem como os seus direitos e deveres, formalidade que era fundamental nunca deixar de cumprir.

Dizia-lhes sempre:

- Ninguém deve tomar iniciativas, seja sobre o que for se não estiver bem dentro do assunto. Na dúvida, não se faz. Mas se temos plena consciência de que aquilo que se apresenta perante nós é um ilícito, seja criminal ou meramente contra-ordenacional, ninguém deve recear usar da competência em que está investido, pedindo, se disso necessitar, a ajuda que julgar conveniente e necessária para a boa execução daquele serviço.

Esse foi sempre o meu método de trabalho. Ensinar, responsabilizar, incentivar, mas, acima de tudo, valorizar e promover a auto-estima individual de cada um daqueles excelentes militares, pessoas disponíveis, generosas e de bem, que um dia resolveram, como eu, abraçar a profissão de representantes da autoridade do Estado para fazerem cumprir as suas Leis, tantas vezes incompreendidos não só pelas populações a quem servem o melhor que são capazes, como ainda também pelos chefes que os comandam e os tratam com desnecessária aspereza, como se eles fossem máquinas infalíveis, em vez de os estimularem com os seus ensinamentos, com o seu exemplo diário, com a sua ajuda, até mesmo com a sua amizade e compreensão.

Com essa forma de agir, consegui reunir à minha volta uma equipa extraordinária de belíssimos profissionais motivados, operacionais, responsáveis e muitíssimo competentes. Juntámos sinergias e os resultados não tardaram em se fazerem anunciar. Reduziu-se significativamente  o número de roubos, recuperámos coisas roubadas e sossegámos as populações. As patrulhas apareciam inopinadamente e a qualquer hora do dia ou da noite nos locais mais impensáveis àquelas horas e deixou de haver as velhas rotinas, passando a  estar cobertas as vinte e quatro horas de cada dia por patrulhas sempre no exterior.

E tanto podia ser para ir policiar o Arneiro a 15 km de Nisa às três da manhã, como podíamos aparecer na Barca da Amieira para ver se o Rio Tejo levava muita água ao quarto para a meia noite. De igual modo, tanto podia ser apenas uma discreta patrulha apeada mas estrategicamente autotransportada em tempo oportuno até às redondezas dos locais a vigiar, como uma patrulha a cavalo, motorizada ou auto. Ainda dentro da mesma estratégia, tanto podiam ser dois ou três guardas, como podiam ser dois cabos com dois ou três guardas e eu próprio à frente deles. 

Nunca, jamais ou em tempo algum, mandei os meus militares para a rua para o frio do inverno ou para o calor do verão, de dia ou de noite, deixando-me ficar comodamente instalado no conforto do meu gabinete. 

Nunca! 

Recordo, a título de exemplo, o recado que a minha esposa certo dia me deu:

- Zé, já reparaste que esta semana ainda não jantaste nenhum dia com os teus filhos?

Tinha razão, sim!

Mas comandar fazendo uso de um constante exemplo, era responsabilidade que me era exigida a mim, mais do que a qualquer outro militar daquele Posto. E jamais me demiti dela. Jamais. Poderia referir nomes de alguns desses mais de trinta profissionais de mão cheia que comandei e mantêm por mim, até aos dias de hoje, passadas são mais de três décadas, a sua amizade, a sua consideração e o seu respeito, o que muito me sensibiliza, orgulha e agradeço, retribuindo na íntegra a mesmíssima amizade, consideração e respeito a todos e a cada um deles.

Valeu a pena!


José Coelho