O rapaz com a ovelha às costas
1.
A imagem tornou-se viral.
Multiplicada por milhões de vezes.
Alterada até – há sempre quem não se contente com o que a realidade mostra por maior que seja.
Uma fotografia de Paulo Cunha que tem corrido mundo e batido audiências.
Um rapaz de tronco nu com uma ovelha às costas e um fumo de holocausto por trás. É impressionante a confiança que pressentimos nos olhos do animal, a confiança naquele jovem que o carrega aos ombros, às cavalitas, para fora de perigo.
2.
Somaram-se os comentários.
Porque ele era o símbolo da bondade que existe no ser humano. Afinal, aquele rapaz fez-nos acreditar que não podemos desistir do otimismo.
Porque ele era uma metáfora crística. “O senhor é o meu pastor, nada me faltará”. Afinal, aquele rapaz tinha essa força bíblica, ele era o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas.
Porque ele era o que simbolizava a coragem, a força do homem perante a adversidade. Afinal, por muito complicados que sejam os obstáculos, conseguimos sempre dar a volta.
Porque ele era o símbolo da generosidade para com os animais. Afinal, há razões para não temer pelo futuro e pela convivência entre seres vivos.
Porque ele era desejável e bonito. O seu corpo, as suas cuecas, o seu ar obstinado parecia saído de uma produção publicitária. Afinal, o calor não era apenas das chamas lá fora, mas também dele, do rapaz com a bezerra ao lombo.
3.
Cada um de nós vê o mundo refletido em função daquilo que é, daquilo que precisa. Do bom e do mau.
E aquele rapaz com a ovelha às costas é muito mais do que aquilo que dissemos que ele era.
Não é Cristo.
Não é o símbolo da bondade ou da generosidade.
Não é o símbolo da beleza ou uma bomba sexual.
Não é o símbolo do amor pelos animais.
Não é o símbolo do combate do ser humano contra a adversidade.
Ou o símbolo da coragem.
Acreditem, ele é mais do que isso.
Não um símbolo de coisa nenhuma, ele é um ser humano único.
Tem nome.
Chama-se João Paulo, tem 22 anos.
Mora na aldeia da Boa Vista, uma terra colada a Santa Eufémia, lugar com menos de 1000 almas, no distrito de Leiria. Uma terra com montes à volta que nasceu à força das estalagens que matavam a fome e a sede dos viajantes.
O João é um homem.
Existe.
Tinha uma casa que tentou proteger, viu os bombeiros a perderem a batalha e foi ajudá-los e salvar os cordeiros do avô, mais alguns velhotes que estavam presos nas suas casas.
Horas nisto.
E todos os animais salvos – não pela generosidade, mas porque cada uma daquelas ovelhas e cabras era o que o seu avô tinha para o seu sustento.
O João Paulo ficou completamente sozinho e não pensou nas consequências ou hesitou por um segundo. Tinha de salvar as pessoas e os animais, um a um.
A todos os velhotes chamava tio ou tia – conhecia cada uma das suas histórias porque nascera naquela aldeia de antigos estalajadeiros. Ali nascera há 22 anos e sabia a história de cada dificuldade, de cada trambolhão, de cada tragédia, de cada raminho de salsa levada de casa em casa.
E a cada ovelha, a cada carneiro, o João Paulo também conhecia. E quando os carregou sabia o seu peso de cor, o seu cheiro, o seu medo e necessidade de proteção.
Por favor, não digam que ele é símbolo do que precisamos que seja.
Ele é mais do que isso.
Ele tem nome e uma história.
É o que temos mais valioso. O que carregamos em cima do nosso nome.
E o João Paulo, nascido na aldeia da Boa Vista, paredes-meias com Santa Eufémia, carrega agora muito mais do que antes da sua aldeia ter sido devorada pelas chamas.
Luís Osório