terça-feira, 12 de julho de 2022

Velhos (como eu) os verões quentes

Foto "Almoço dos Ganhões in O melhor Alentejo do mundo"

Primeiro vou dizer-vos que sou um alentejano à antiga - velho como a malta nova nos chama muitas vezes num tom depreciativo, esquecendo que também um dia irão sê-lo e Deus queira que sim - porque tenho setenta anos. Sei por isso e pela minha experiência de vida aquilo que vou escrever sobre calores iguais aos de agora no verão com os campos cheios de gente a trabalhar de sol a sol, mas também e principalmente, da ausência total de incêndios rurais ou nas florestas.

Comecei a "trabucar" no campo no dia imediatamente a seguir àquele em que fiz o exame da quarta classe na Escola Primária de Marvão - sede do concelho - sob a orientação da Senhora Professora D. Liberdade. Nesse tempo era assim e ponto final. Eu ainda fiz a quarta classe, mas muitos cachopos da minha idade nunca sequer puseram os cotos numa escola porque moravam longe ou porque os pais pelas mais diversas razões assim decidiam.

Em 1962 ter a quarta classe como eu tinha era quase ser doutor (em ponto pequeno, mas pronto). Não estranhei por isso ter de começar a ganhar o pão de cada dia depois daqueles quatro anos de "curso". Pelo contrário, aquilo era o primeiro passo para deixar de ser um cachopinho e começar a ser um mocinho já com direito de ir aos bailes e a deitar o olho às cachopas. Era tão mais descomplicada a vida de todos nós, santo Deus!

Fui pastor, ajuda de vaqueiro, depois aprendiz de ganhão e finalmente ganhão também, agarrado à rabiça do arado atrás de uma junta de vacas. E foi nesses "cursos" profissionais que me calhou algumas vezes ter de cuidar dos "jantares" dos mais velhos e fazer exatamente o que mostra a imagem que ilustra este escrito. Cada ganhão levava de casa a sua panela de barro já preparada com grãos, feijões ou hortaliças e um naco de toucinho mais um dos enchidos da matança a coroarem "o petisco" e eu tinha de "botar-lhes" água suficiente, fazer o lume e vigiar a cozedura.

Curiosamente - ou não - a improvisada "cozinha" tanto podia ser num local abrigado entre algumas pedras, como no meio de uma seara seca a perder de vista. Para isso era previamente ceifado um redondel de tamanho julgado suficientemente seguro para depois com uma enxada se preparar um aceiro de terra sem qualquer pasto, no centro do qual se fazia o lume que iria cozer os "jantares". E porque é que no campo ao almoço se chamava jantar? 

Fácil de compreender e eu explico.

Como escrevi no primeiro parágrafo, trabalhava-se de sol a sol. No verão o "mata-bicho" era às seis da manhã. E nos Pavios do tio José Bonacho que Deus tem, esperava-nos, ainda lusco-fusco, um alguidar de feijão-frade guisado com arroz e farinheira já primorosamente cozinhados pela tia Jaquin'àBonacha, de onde comíamos todos. Não havia pratos individuais para ninguém. Era "comer de barranhão" sempre. Nesse tempo não havia tantas esquisitices como há hoje e éramos todos rijos e saudáveis como peros. 

Por isso àqueles madrugadores "mata-bichos" diários de alguidar, dava-se o nome de "almoço" em todas as casas de lavoura da região. Depois por volta das dez da manhã fazia-se uma pausa para descanso e "uma bucha" onde se comia pão com queijo e com azeitonas. Logo, por volta da uma da tarde, era então a hora de "jantar". Quase sempre sopa grossa de grão com legumes e duas monumentais talhadas de carne de porco, uma das quais toucinho da salgadeira e a outra podia ser mouro, chouriço ou morcela, tudo cozido com os grãos, para fazer melhor tempero e dar ainda mais gosto.

Seguia-se uma sesta até às três da tarde. Desde o início de maio até finais de julho. Mais uma pausa para descanso e outra bucha por volta das seis da tarde que era a hora da merenda e à noite a ceia. É preciso ter em conta que da alvorada às seis da manhã até às dez/onze da noite que se ia para a cama, eram quinze/dezasseis horas a pé e a trabalhar duro todo o dia. Andei por lá nessas lides até depois dos treze anos. Por ser muito longe só podia vir a casa ver a família, trazer a roupa suja e levar roupa lavada, de quinze em quinze dias. 

Salvou-me daquele isolamento o melhor amigo de toda a minha vida. O meu pai. Não era para me castigar que ele não me tinha metido ainda na sua equipa. Era por o seu trabalho ser bem mais duro e pesado que o que eu tinha como guardador de gados e ganhão. O meu pai, para além de ser um agricultor de mão cheia, tinha o ofício de cabouqueiro, ou seja, a arte de transformar blocos de granito com toneladas em rachão para alicerces de obras, em calçada para calcetar as ruas, e em brita para os mais diversos usos. Sendo sub-empreiteiro de engenheiros-empreiteiros responsáveis por obras públicas, tinha a sua equipa de artesãos, cinco ou seis homens da sua idade com os quais trabalhava dia a dia e ombro a ombro, como apenas mais um deles.

A minha estreia de aprendiz de cabouqueiro foi assaz dolorosa. Mas talvez deva explicar primeiro um pouco melhor. Os blocos de granito de várias toneladas eram primeiro rachados à força de dinamite depois de feitos furos com um martelo-compressor e respetivas brocas a diversas profundidades. Depois dos blocos já separados das suas mães entravam em função os guilhos batidos um a um com uma maceta no granito, para, em seguida e com um martelão de oito quilos à força de braços, fracionar a pedra em blocos menores até se converter no tal rachão para alicerces. 

Finalmente e aí entrei eu com os meus treze anos a experimentar a dureza daquilo. Aproveitar as lascas mais pequenas e sobrantes do rachão e transformá-las em brita, foi a minha estreia. Agarrado a uma pequena marreta de cabo fino e comprido, ao fim de quatro dias as palmas das minhas duas mãos não tinham pele. Eram duas bolhas pegadas. Só conseguia pegar no cabo da marreta com as mãos envoltas em ligaduras. Aguentei, porque voltar para o Monte dos Pavios e vir a casa só duas vezes por mês, seduzia-me muito menos do que aquelas chagas das mãos, que, entretanto, calejaram. E por lá andei com o meu pai e a sua excelente equipa até ir para a tropa.

Também aqui, como na agricultura, algumas vezes me calhava cuidar do almoço que a minha mãe nos mandava já pronto a meter ao lume, bastando juntar água. Nunca vi ou ouvi falar que estes lumes diários - e necessários - tivessem alguma vez provocado incêndios. E sim, já estavam estes calores, porque sempre os houve. Provavelmente e acredito que esse fator teria algum peso, haveria mais humidade no ar. Chovia copiosamente de setembro a maio, os rios ribeiros e regatos corriam quase todo o ano, as fontes e poços tinham sempre água. E tudo isso amenizava o ambiente, tornando provavelmente o ar mais húmido. 

Mas acima de tudo havia mais responsabilidade individual, muito mais respeito de uns para com os outros e muito mais cidadania ainda que a população fosse maioritariamente analfabeta. Aquilo a que assistimos todos os verões logo que se aproxima o calor é inexplicável em termos racionais, porque o verão existe desde que o mundo é mundo e eu já o habito há mais de sete décadas. O estado de emergência teve de ser inventado e posto em prática pelos governos porque infelizmente e de forma geral, os valores e princípios de muita gente, a isso obrigam. 

Irremediavelmente.


José Coelho
12.07.2022