sexta-feira, 8 de julho de 2022

A Festa da Beirã (ou a festa do pau caiado)

A Senhora do Carmo sobre os ombros dos meus dois filhos, o Pedro de polo verde
e o Manel de t-shirt branca, a última vez que a Virgem saiu à rua no seu andor. 


Com data fixa a 16 de julho de cada ano, a sua preparação começava a bulir logo em fins de maio, princípios de junho. A Comissão de Festas composta por um punhado de pessoas de todas as forças vivas da terra, CP, Alfândega, Despachantes Oficiais e seus respectivos colaboradores, comerciantes e trabalhadores rurais, quase todos transitados dos anos anteriores e acrescida esporadicamente por um ou outro novo elemento, convocava as reuniões preparatórias na Sociedade Recreativa para se debater o programa da festa e distribuir as diversas atividades por grupos de pessoas como o peditório para festa e para quermesse por todos os povoados vizinhos, quem iria tratar da ornamentação das ruas, da montagem do palco, quermesse e bar no recinto da festa, etc, etc.. 

Iniciava-se desde logo a feitura de centenas de rifas e de bandeirinhas de papel colorido coladas depois em novelos de cordel com uma massa de farinha e água e que depois de secas eram enroladas em novelos nuns grandes pedaços de cartão. Dezenas de postes de madeira de pinho guardados todo o ano no “casão dos Vivas” eram transportados pouco a pouco para as ruas da aldeia para serem caiados pelas senhoras um a um, a pincel com cal branca, matéria barata e abundante nas caleiras da Escusa. Daí nasceu o “apelido” de “festa do pau caiado” que dava jus a muitas piadas carregadas de brejeirice entre a rapaziada moça do burgo e arredores. 

À medida que iam ficando prontos, os paus imaculadamente brancos eram cravados de x em x metros nos dois lados das ruas principais previamente ornamentados já com duas bandeirolas de pano azuis e brancas. Depois, de um para o outro lado da rua, eram pregadas em zigue-zague as tais centenas de metros de cordel com as bandeirinhas coloridas de papel, intercaladas por miríades de lâmpadas elétricas coloridas também e que davam à aldeia um ar solene de traje de gala.

Eram ainda colocadas algumas faixas de pano branco com frases litúrgicas - Bendita És Tu entre as mulheres, ou outras - pelas ruas por onde iria passar a Senhora do Carmo no seu imponente andor todo coberto de flores naturais e iluminado por quatro portentosos candelabros elétricos ligados a uma bateria, carregado em ombros por oito homens de cada vez que se iam revezando por outros tantos durante o percurso. Era uma das maiores festas do concelho, equiparada ao S. Marcos de Santo António das Areias em 25 de Abril e à Senhora da Estrela, Padroeira do Concelho de Marvão, em 8 de Setembro.

As décadas de 50, 60 e 70 foram décadas de ouro para a Beirã em termos de população, emprego e atividade comercial. Era uma comunidade muito viva e quase auto-suficiente com um mercado semanal à segunda-feira onde se vendia de tudo. Produtos frescos das hortas e pomares, aves vivas e ovos, enchidos e queijos caseiros de altíssima qualidade. De todos os lugares da freguesia vinham hortelãos vender os produtos das suas hortas e frutas, assim como alguns feirantes vinham também vender roupas e calçado nas suas carrinhas.

Além deste mercado semanal existia também o diverso comércio local com cinco ou seis tabernas-mercearias, dois talhos, uma padaria, dois alfaiates, dois barbeiros, um carpinteiro, mestres-de-obras, um restaurante, duas pensões, a Loja Grande que era uma espécie dos actuais super-mercados onde se vendia de tudo, duas escolas – uma para os rapazes outra para as raparigas – um cartório do Registo Civil, uma Sociedade Recreativa onde quase todas as semanas havia bailes e cinema na grande sala de espetáculos e na qual também se podia assistir tranquilamente às emissões diárias da RTP.

Havia ainda um Clube Recreativo privado só acessível a sócios com quotas pagas em dia e que eram selecionados e aprovados pela direção do mesmo após requererem a sua inscrição. Era o “Clube dos ricos” como comummente se comentava entre a malta “menos rica”. Nesse tempo a Beirã era talvez uma das aldeias mais emblemáticas e desenvolvidas do Concelho de Marvão. O intenso tráfego ferroviário de mercadorias e passageiros entre Portugal e Espanha e vice-versa, promoviam todo esse desenvolvimento.

A sua população, em virtude dos inúmeros Serviços que aqui tinham sede – ferroviários, pessoal aduaneiro, guarda-fiscal, Pide/DGS, despachantes oficiais e seus colaboradores – era oriunda um pouco de todos os cantos de Portugal. Havia gente das Beiras, do Minho e Trás-os-Montes, do Douro, do Baixo e Alto Alentejo e do Algarve. Aqui colocados em serviço, aqui se estabeleciam e aqui nasceram muitos dos seus filhos que depois aqui cresceram, frequentaram a escola e catequese em saudável convivência e vizinhança com os Beiranenses de todas as classes sociais dos quais passavam, sem qualquer dificuldade, a fazer parte.

O Dia Maior da Beirã foi e tem sido até hoje o Dia da sua Padroeira. Em 2019 como em 2009, 1999, 1989, 1979, 1969 e 1959 – ou seja desde que me conheço – a Beirã chama a si neste dia muitos dos seus filhos onde quer que se encontram. E é inexplicável, especialmente agora que somos por cá já tão poucos a morar e a ir à missa, como no Dia da Padroeira a igreja se enche por completo. Filhos da Senhora que vivem longe e só cá vêm no Seu dia. Ao cair da noite então, a procissão junta ainda mais e mais gente. É um enigma que nunca consegui entender. Amor de filhos? Fé? Saudades? Não sei...


José Coelho - Julho19 - (ligeiramente modificado)


Notas

1. Por motivo da acentuada e visível deterioração do seu pedestal, e, consequentemente, das condições de segurança da imagem extremamente pesada, a Virgem do Carmo teve de ser enviada para restauro em atelier certificado na cidade de Fátima. Após o dispendioso restauro, o pároco Pe Luís Ribeiro decidiu mandar fazer uma réplica mais pequena e mais capaz de ser facilmente transportada num andor também mais leve. Desde então - meados da década de 90 - a imagem original da Senhora continua a ser festivamente ornamentada e venerada pelos seus inúmeros devotos todos os anos, mas sem ter voltado a sair do seu pedestal no altar-mor da igreja a que preside e dá o nome desde 1943.

2. Na foto que ilustra este escrito pode observar-se ainda a beleza do velho andor original que havia sido também restaurado recentemente e modificado com a finalidade de o tornar menos pesado. Foram-lhe retirados os quatro candelabros elétricos de metal, assim como passou a ter apenas duas varas em vez das quatro iniciais para ser transportado por apenas quatro homens em vez dos oito, porque os voluntários que o costumavam transportar foram diminuindo proporcionalmente com a população, após o encerramento da Estação ferroviária e do Ramal de Cáceres.