terça-feira, 31 de maio de 2022

Não é desculpa, é a verdade

Belize - Angola - 1973

Vinte e oito de maio de dois mil e vinte e dois. Esta data vai ficar para o resto da minha vida – que naturalmente não será já muito longa – como um dos dias mais emotivos e felizes que vivi, porque foi aquele em que reencontrei a minha Família de coração que nunca esqueci, mas com a qual não reunia há quarenta e oito anos.

Família de coração porque lhe quero bem e dela fiz parte desde novembro de mil novecentos e setenta e um em Estremoz onde se formou o BCav3871 com destino a Angola, até junho de mil novecentos e setenta e quatro, no RAL 1 em Lisboa, onde nos despedimos uns dos outros no ansiado e definitivo regresso a casa após vinte e sete longos meses.

Unidos na permanente saudade das nossas famílias de sangue e da pacatez das nossas jovens vidas, cercados pela insegurança diária em cada deslocamento e até mesmo dentro dos quarteis, habitámos aquele impenetrável Maiombe que cúmplice acoitou sempre nas suas entranhas o letal e permanente perigo dos guerrilheiros, das traiçoeiras emboscadas, das minas e armadilhas que profusamente semeavam pelos trilhos para matar alguns camaradas e estropear outros.

Nenhum de nós, cada vez que isso aconteceu – aposto tudo quanto quiserem – deixou de equacionar a sombria hipótese de…

- Para a próxima, posso ser eu.

Viver assim meses e meses na corda bamba sem saber onde nem quando o infortúnio poderia desabar sobre as nossas cabeças, sentir necessidade de desabafar com o camarada mais próximo, de falar dos pais, dos irmãos, da namorada ou esposa, alguns dos filhos até, gerou laços de amizade, de irmandade e solidariedade, inquebráveis. Por isso, suceda o que suceder, nem o tempo nem a distância conseguirão apagar essas memórias que viverão connosco enquanto o coração bater.

Voluntário por opção e sendo um dos mais novos Cavaleiros do Maiombe, não foi de todo mais fácil para mim do que para os camaradas mais maduros. Pelo contrário. Mas já passou. Infelizmente – ou felizmente, não sei bem – o objetivo que me levou a ser voluntário não me foi propício porque ao regressar a casa só havia abundância de slogans revolucionários, mas estabilidade e empregos, zero.

Tive por isso mesmo de voltar à estaca zero, imigrar para longe da família e da minha casa, abraçar uma profissão nunca antes imaginada – a de mineiro – na qual permaneci cinco também longos anos, casei, fui pai do primeiro filho o qual só podia visitar duas ou três vezes por mês dada a enorme distância, até que a família conseguiu convencer-me a mudar de vida e ingressei nas forças de segurança em mil novecentos e setenta e nove.

Escusado seria dizer, mas nestes primeiros cinco anos o único contacto esporádico que mantive com o BCav3871 foi através de um dos Cavaleiros do Maiombe a quem convidei para padrinho do meu primeiro filho, o qual aceitou. Depois, nos anos seguintes, já como militar da GNR entendi não me acomodar e decidi ascender aos postos imediatos possíveis. Cabo e depois Sargento. Foi duro, muito duro, porque as habilitações literárias eram as reduzidas ao menor denominador comum.

A quarta classe.

Tive em consequência disso de “marrar” feio e forte durante três anos e meio no Centro de Instrução da GNR da Ajuda, depois na Escola da Guarda em Queluz e posteriormente na Escola Prática de Infantaria em Mafra, nos volumosos calhamaços até altas horas da madrugada todos os dias, para conseguir decorar matérias infindáveis e complexas que tinha de debitar nos testes semanais.

Nunca equacionei a hipótese de chumbar por falta de aproveitamento apesar de o leque de matérias ser muitas vezes desanimador e consegui lá chegar, sem favores de ninguém. E cheguei onde queria, mas não me ficava tempo para mais nada. Lembro-me de, aos fins de semana, em casa, ter de levantar-me às seis da manhã para ir estudar matérias para a sala em silêncio, antes de os filhos – já então dois – acordarem.

Depois…

A responsabilidade de comandar o Posto misto de Infantaria/Cavalaria de Nisa, seguida da nomeação para chefiar a secretaria da CCS e simultaneamente ministrar instrução aos candidatos a Guardas no Centro de Instrução de Portalegre, onde permaneci os últimos dez anos de carreira e terminei o meu percurso, passando à situação de reforma.

Entretanto as décadas foram-se somando e passando. Perdi, na voragem dos dias, o contacto com o compadre Cavaleiro, mas tive o grato privilégio de comandar em Nisa outro digníssimo Cavaleiro do Maiombe que todos devem recordar porque foi o Condutor da ambulância da CCS e também militar de Cavalaria da GNR Joaquim Augusto Moreno Lopes, que infelizmente acompanhei à sua última morada já há alguns anos, mas de cujo filho João Gregório Faustino Lopes continuo amigo e em contacto.

O que se resume em meia dúzia de parágrafos contém quarenta e oito anos de ausência desta Família BCav3871 que nunca deixei de estimar. Cada camarada Cavaleiro teve obviamente o seu percurso de vida como eu, com mais ou menos dificuldades, mas que sempre terão comparecido à “chamada” anual de reunir. Não me sinto nem mais, nem menos que nenhum deles, porque estive de facto fisicamente ausente, mas nunca os esqueci. Nem poderia, mesmo que quisesse, porque ano após ano recebi sempre a Carta-convocatória para o Almoço-convívio, além de várias tentativas pessoais do digno camarada e amigo Adelino Magalhães Torres a quem sou grato.

Termino como comecei.

Vinte e oito de maio de dois mil e vinte e dois. Esta data ficará para o que restar da minha vida como um dos dias mais emotivos e felizes que vivi, porque em Peniche me senti de regresso a casa e à minha gente depois de uma longa ausência, exatamente o que em junho de setenta e quatro senti quando, a vir da guerra, cheguei à Beirã. Uma fraterna saudação para todos os Cavaleiros do Maiombe e suas Famílias que estiveram na 48ª Confraternização do BCav3871 em Peniche, outra ainda para todos os que não puderam ou não quiseram comparecer. Talvez a 27 de maio de 2023 possamos reencontrar-nos aqui pelo Alto Alentejo.

Bem hajam todos.

José Coelho