segunda-feira, 16 de maio de 2022

Memórias que nunca se apagam (2)

A camarata onde tomava duche e descansava depois dos turnos na Mina

Agosto de 1978. Sendo o mês das férias para todo o efetivo da Celtex, a fábrica de calçado onde a minha Maria trabalhava, mais uma vez ela e o nosso filho rumaram às Minas da Panasqueira para passarem comigo essas semanas na casa do meu chefe José Mouro, a cuja família nos afeiçoámos como se da nossa se tratasse. Como já vinha sendo hábito, em Setembro vinha eu com eles para casa também de férias, sendo essa a única maneira possível, desde que casáramos, de conseguirmos ficar dois meses inteiros juntos. E foi nesse ano que, não sei como nem por quem, a minha mãe e a minha cara-metade souberam que estava aberto concurso para admissão de praças à GNR.

 

Cada uma delas, à vez, foram-me azucrinando aos ouvidos que aquela sim era uma vida decente e que ser mineiro era andar como as toupeiras sempre debaixo do chão sem ver a luz do dia, e mais isto, e mais aquilo. Para deixar de as ouvir, mais do que por convicção, lá fui tratar da papelada necessária ao posto de Santo António das Areias onde fui primorosamente atendido pelo guarda Pouca Roupa – hoje já falecido – que era o comandante interino porquanto o cabo estava de baixa.

 

Preenchido e entregue o requerimento nunca mais me preocupei com aquilo, e, aqui para nós, sinceramente, nunca tencionei enveredar por tal carreira pois não me via de novo fardado e muito menos de polainas nas pernas e com uma feia espingarda às costas a patrulhar caminhos. Regressei por isso depois das férias às Minas e logo pus o meu chefe ao corrente do que tinha feito, confidenciando-lhe que fora mais para calar as mulheres do que pela intenção de mudar de profissão.

 

Para meu espanto ele ficou um grande bocado a pensar em silêncio, e, passado esse tempo de reflexão, respondeu-me num tom algo solene:

- Olha Zé Manel! Sinceramente tenho muita pena que te vás embora porque nos afeiçoámos a ti, não só eu e a minha família, mas também os teus camaradas mineiros e amigos, o teu primo João e a família, o Antero e a família, o Zé Maria, o Pinto e o pessoal das Preparações que muito te estimam todos. Mas acho que deves empenhar-te a sério e que deves tentar entrar. A mina não te leva a lado nenhum. Vais é apanhar silicose como todos nós. Andas para aqui desterrado longe da família, uma vez que a tua mulher não quer para cá vir viver. Por isso, pensa bem. É um futuro melhor, mais limpo e muito menos arriscado…

 

Entretanto, a Vida quis de novo surpreender-me. O requerimento para ingresso na GNR que preenchera em Setembro fora deferido em pouco mais de quinze dias e quando voltei a casa no fim de semana seguinte fui chamado ao posto de Santo António das Areias a fim de ser notificado para ir prestar provas de admissão em Novembro. Logo que regressei ao trabalho na segunda-feira seguinte, fui entregar cópia da notificação na Secção de Pessoal da Beralt Tin & Wolfram a solicitar rescisão do contrato de trabalho no prazo legal, para serem processados em tempo os honorários que me fossem devidos. Fi-lo com infinita pena pois sentia no meu íntimo que estava a encerrar um dos melhores capítulos da minha vida e que provavelmente nunca mais iria encontrar amigos tão leais e verdadeiros como os que ali tivera o privilégio de conhecer.

 

Era de facto uma mudança de rumo por mim decidida, mas que me entristecia bastante. Não pela qualidade do trabalho, muito pelo contrário, porque o serviço do mineiro seja em que mina for, é um serviço muito sujo e desempenhado nas profundezas da terra entre lama, humidade, poeiras suspensas, máquinas e escuridão. Porém, a forma como fora recebido pelos meus conterrâneos quando ali cheguei, a estabilidade financeira que se instalara na minha vida graças ao então muito bem remunerado trabalho, as sinceras amizades que se estabeleceram entre mim, a minha família e os mineiros, bem como a minha enorme gratidão pelo conjunto de todas essas circunstâncias, tinham tocado no mais profundo do meu ser.  Não foi por isso nada fácil dizer-lhes adeus.

 

Lá deixei, sem dúvida alguma e para sempre, um bocadinho do meu coração. Nunca havia sido tratado com tanto respeito e dignidade, nunca conhecera pessoas tão generosas, nunca me tinha adaptado tão bem em lugar algum. Mas tinha também a obrigação de refletir que havia mais vida para além das Minas da Panasqueira e a família de quem vivia longíssimo há quase cinco anos também tinha uma palavra a dizer. Depois aquele tão sensato como íntegro conselho do Zé Mouro calou fundo no meu íntimo e mexera comigo. Pensara maduramente em tudo quanto me dissera e compreendera que era chegado o momento de encerrar aquele capítulo da minha vida porque estavam destinadas novas páginas que precisavam ser escritas.

 

E assim foi.

 

Fui a Lisboa – Santa Bárbara prestar as provas de admissão exigidas para ingressar no quadro efetivo da Guarda Nacional Republicana. Sem dificuldades de maior – passe a imodéstia da afirmação – consegui passar todas as provas e fui notificado nesse mesmo dia para me ir apresentar a 22 de Janeiro de 1979 no Comando da Companhia Territorial de Portalegre onde ia ser ministrado o 1º Curso de Formação de Praças desse novo ano.

 

Continuava apesar de tudo sem motivação alguma para aquela profissão completamente desconhecida para mim. A alergia à farda mantinha-se viva pois o Maiombe ainda estava demasiado fresco na memória. Em contrapartida, a família estava feliz, muito feliz. Achavam que aquela sim era uma profissão segura e com futuro, por ser “Estado”. E porque tinham conseguido finalmente levar a melhor e tirar-me do buraco da Mina onde temiam que eu pudesse morrer entaipado algum dia, esquecendo aquele ditado popular que vaticina que “quem tem de morrer em palheiro, nunca erra a porta”.

 

Mas pronto. Venceram.

 

A euforia familiar era compreensível. Contudo, nunca, jamais, em tempo algum, eu imaginara que um dia iria ser guarda e muito menos da GNR, com quem nunca tivera qualquer afinidade. Para mim, fardas, quando muito, só civis. A de carteiro ou a de ferroviário, que essas sim, eram profissões que eu conhecia desde menino e com as quais me identificava e sonhava, sendo qualquer delas a principal motivação que me levara a oferecer-me voluntário para o serviço militar aos 17 anos.

 

Assim que regressei da guerra, logo enviei cartas para as respetivas chefias dos CTT e da CP, onde solicitava inscrição para emprego. Infelizmente, ambas me deram por resposta num lacónico ofício:

Com os melhores cumprimentos lamentamos informar V. Exª que não está presentemente aberto qualquer processo de admissão de pessoal aos quadros desta empresa...

 


José Coelho – Histórias do Cota