Passei a adolescência sem quase dar por isso. Dos 10 aos 16 anos não tive grandes aventuras. Era um rapazola como todos os outros, trabalhava, namoriscava e lia calhamaços com centenas de páginas que me eram emprestados pela biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian. Os Miseráveis de Vitor Hugo, Guerra e Paz de Leão Tolstoi, O Monte dos Vendavais de Emily Bronte, a Ilha Misteriosa ou as Vinte Mil Léguas Submarinas de Júlio Verne… E muitos, muitos outros que trazia sempre comigo no bornal da merenda atrás das ovelhas e passava tardes inteiras a ler enquanto os animais pastoreavam. Ou então no meu quarto ao serão e à luz do candeeiro a petróleo, já depois de andar a trabalhar na equipa do meu pai. Entretanto ia sonhando – sempre fui sonhador – com um futuro mais risonho e promissor do que aquele havia tido até então, ciente sempre que a tropa era o obstáculo que tinha forçosamente de ser transposto primeiro, ou nada feito!
A
guerra colonial era uma ameaça muito séria à vida de todos os mancebos apurados
“nas sortes” desse tempo, pois só escapavam da mobilização um número ínfimo dos
incorporados em qualquer dos ramos das forças armadas desde 1961. No cemitério
da nossa aldeia como no de tantas outras por esse país fora repousam alguns
desses heróis e entre eles alguns amigos de infância. Não havia, porém, outra hipótese
de se conseguir um emprego estável, porque a regra de ouro para qualquer
concurso de admissão era obrigatoriamente o serviço militar resolvido.
Provinciano
ingénuo mas também aventureiro, nunca tive medo de enfrentar o que quer que
fosse. Mal completei 17 anos pedi aos meus pais autorização para me alistar
como voluntário no exército. Se aquele era um caminho que tinha de ser
percorrido, que o fosse o quanto antes! O meu pai não se opôs, mas a minha mãe
ficou logo lavada em lágrimas argumentando que eu teria muito tempo de ir para
lá padecer quando chegasse a minha vez. Porém a minha determinação – se calhar teimosia
pois sempre fui teimoso – conseguiu ser mais persuasiva e lá levei o meu pai comigo
à Câmara de Marvão para assinar com a sua impressão digital – por não saber
escrever – o consentimento paterno obrigatório por lei em virtude de eu ser de
menor idade uma vez que à época a maioridade só se atingia aos 21 anos.
A
necessidade de carne para canhão – como diziam – nas forças armadas era imensa
porque a guerra estava no auge. Em
todas as frentes se combatia e todas as armas eram por isso poucas. Entretanto e para
agravar ainda mais a necessidade de novos contingentes para rendição dos combatentes
nas frentes dos conflitos, muitos jovens fugiam para o estrangeiro, descartando-se
das suas obrigações para com o serviço militar obrigatório evitando dessa forma
irem parar àquele inferno.
Por
isso ou porque tinha de cumprir-se o meu destino fui pouco depois convocado para comparecer na
inspeção militar no hoje extinto Regimento de Infantaria Nº16 de Évora onde
fiquei apurado sem qualquer problema e me foi entregue logo uma guia de marcha já
preenchida para ir apresentar-me na incorporação seguinte no Batalhão de
Caçadores Nº 3 em Elvas a frequentar a recruta.
Completada
a recruta e selecionado para a especialidade de Transmissões de Infantaria,
rumei ao também hoje já extinto Batalhão de Caçadores Nº 5 que se situava em Lisboa
- Campolide por detrás do edifício da Penitenciária. Ali me especializei no
manuseamento daquelas velhas máquinas E/R Racal TR28B2, AN/GRC9, ANPRC10 e
outras velharias que emitiam tantos silvos de estática que se tornava um problema
sério conseguir perceber e receber mensagens fonéticas, tendo por isso que se
optar quase sempre pelas mensagens cripto. Ainda assim e em consequência da
minha excelente classificação nos testes, fui proposto para a promoção a cabo
de transmissões contando a antiguidade desde o dia em que o curso terminou.
Voltei
ao BC8 de Elvas já como especialista a prestar serviço na central rádio, mas do
final do curso até à mobilização para Angola, foi um passo. Já com quase um ano
“de tarimba” fui mobilizado e incorporado no Batalhão de Cavalaria 3871 que se
formou no RC3-Estremoz em Dezembro desse ano e onde fizemos a IAO (Instrução
para a Actividade Operacional) na Serra d’Ossa, debaixo de chuva, lama, gelo e
frio de rachar, finda a qual fomos recambiados para o Campo Militar de Santa
Margarida a aguardar embarque para Luanda, de onde só saímos quase três meses
depois.
Embarcámos
no Aeroporto da Portela num Boeing 747 – grande luxo para a época – na chuvosa
e fria noite de 7 de Março de 1972, agasalhados com aqueles fortes blusões de
lã verde que mais pareciam de serapilheira e recordo a figura que fizemos ao sairmos
do avião em Luanda oito horas depois, no meio de um calor tropical de 40 graus
celsius. Que ridículos parecíamos agasalhados naquelas vestes que tão bem nos haviam
aquecido oito horas antes na gelada Lisboa.
Logo
a seguir fomos carregados em camiões Berliet – como como se carrega aqui no
Alentejo o gado – e foram despejar-nos ao Campo Militar do Grafanil nos
subúrbios de Luanda onde permanecemos mais 4 dias. Assim se deu a casualidade
de cumprir o primeiro dos três aniversários que completei em África. Chegados
na manhã do dia 8 de Março e sendo o meu aniversário a 10, lá completei os 20
com apenas dois dias de comissão em 1972, depois os 21 em 10.03.1973 no Belize,
e ainda os 22 em 10.03.1974 já na cidade de Cabinda a aguardar evacuação para a
Fazenda Tentativa no Caxito até ao almejado regresso a casa.
Naquele
primeiro embate com o desconhecido a milhares de quilómetros de casa, porque,
querendo ou não, eu era ainda um gaiato além de nunca ter saído do meio das minhas
provincianas paisagens, valeu-me bastante o facto de ter tios e primos em
Luanda – a irmã mais nova do meu pai, a
tia Francisca Coelho que lá vivia com o marido e os filhos havia décadas – e me
ter sido permitido pelos meus superiores ir passar esse dia e essa noite em
casa deles.
Foi
um aniversário memorável. Primeiro, porque nunca tinha festejado nenhum pois os
meus pais não tinham dinheiro nem tempo para celebrações aniversarias que isso eram
coisas de ricos. Segundo, porque o Augusto, o mais novo dos primos, com a sua
esposa, a Fernanda Varela – ambos já falecidos – depois de jantarmos todos juntos
em casa dos tios, levaram-me com eles à Casa de Fados “O Campino” onde a prima
Fernanda era fadista e assim assisti à primeiríssima noite de fados da minha
vida, o que só por isso foi uma coisa de todo espetacular para mim. Nessa noite
provei também pela primeira vez na minha vida o uísque, bebida que só conhecia dos
saloons nos inúmeros livros de cowboys que lera desde os 10 anos.
Foi
porém sol de pouca dura porque o dia imediato trouxe-me o início do tempo mais duro
e complicado da minha vida. Numa “Ariete” marítima – espécie de plataforma
achatada que navega, também chamada LDG
– misturados com as nossas bagagens e por entre dezenas de caixotes de víveres
para o comércio de Cabinda, rumámos do porto de Luanda à foz do Rio Zaire numa viagem
de dois dias e uma noite com destino ao denso e traiçoeiro Maiombe onde nos
aguardavam os guerrilheiros – turras como vulgarmente lhes chamavam – da UPA –
União dos Povos de Angola, do MPLA – Movimento Para a Libertação de Angola, e da
FLEC – Frente de Libertação do Enclave de Cabinda, para nos fazerem a vida negra
nos 670 dias que se seguiriam...
José Coelho – Histórias do Cota