quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Herança que agradeço e quero honrar




Porque nasci no seio da humildade habituei-me a não dar grande importância ao dinheiro e a ser feliz com o que posso ter. A minha mãe nunca tinha a certeza do que iria ser o almoço no dia seguinte sendo a sua única certeza o pouco que teria para escolher. Uma sopa com produtos da horta e pão com algum conduto que muitas vezes se resumia a uma omelete, a um punhado de azeitonas ou toucinho frito porque os enchidos tinham de guardar-se para as merendas do dia seguinte. 

Muita gente achará que é treta e se possa ser feliz assim sem quase nada. Mas éramos mesmo. Nesta casa a única coisa que havia em abundância era a alegria e a boa disposição de manhã à noite. A minha mãe cantarolava facilmente fosse a migar as nabiças do jantar, fosse a lavar a roupa no tanque da aldeia ou mesmo sentada ao sol no quintal a remendar as nossas roupas mais surradas pelo uso. 

Um rádio Grundig a pilhas fazia as delícias dos nossos serões com aquele programa diário de discos pedidos da Radio Badajoz cujas músicas no acordeon da Maria Albertina davam imediatamente azo a sessões de baile na nossa cozinha, felizes e despreocupados como agora não sabemos ser, apesar de a vida ter evoluído para bastante melhor.

Ou, pelo menos, é isso que nós pensamos. Só não sei muito bem, não tenho hoje assim tanta certeza se "ist'agora" é realmente melhor do que era "d’antes"...

Já velhinha e completamente invisual, muitas vezes ouvia a tia Florinda trautear as modas dela comodamente sentadinha no sofá. E quando alguma música sua conhecida passava na televisão logo os seus pezinhos começavam a bater ritmadamente no chão ao compasso dos acordes. E eu ficava em silêncio, deliciado, a observá-la. 

Coisas tão simples que quase passavam despercebidas na altura mas que a saudade vai buscar hoje para me dizer que sim, que apesar de toda a sua vida humilde e de "o Senhor lhe ter levado os seus olhos" como ela dizia, a minha mãe foi uma criatura feliz. 

Tranquila, conformada com a sua sorte e feliz.

Herdei dela algum desse estado de espírito e estou-lhe muito grato por isso. Sou completamente desapegado do dinheiro e outros bens materiais que para muita gente que conheço são imprescindíveis. Visto qualquer trapinho que goste e sem me preocupar minimamente se é de marca ou da moda. 

Tanto sou capaz de comprar numa tenda do mercado como numa loja chique, desde que aquilo que quero se encontre numa ou noutra. Não troco um jantar em casa com a família por outro no restaurante ou com amigos e aprecio muito mais umas migas com sardinhas fritas do que qualquer mariscada. Em resumo, nasci e cresci no meio dessa simplicidade, sempre fui feliz no meio dela, por isso é assim que gosto de viver.

Vivemos tempos tão complicados e imprevisíveis, para que havemos de complicar e dificultar ainda mais o que já não é fácil?

Empoleiradas nas chaminés cá de casa, as rolas turcas cantam também como cantava a minha mãe, seja verão ou inverno. Ah valentes! Assim é que é. Continuem a ser alegres amigas, porque a vossa vida, tal como a nossa, é muito breve. Só que nós, os humanos, fazemos de conta que não sabemos isso e vivemos como se não fossemos morrer nunca, porque ansiamos mais ser ricos, do que felizes.

Felizmente - o diabo seja surdo e mudo - por aqui e por enquanto, a vida continua como sempre foi cercada de tranquilidade. Basta a gente olhar e ficar atento ao que nos rodeia que não é pouco...

José Coelho