domingo, 25 de julho de 2021

Enquanto eu viver (2)

Toca dos Coelhos - Foto José Coelho

Passo a maior parte das minhas horas a desfrutar o silêncio deste lugar, o mais alto da aldeia, naquela que foi por decisão do meu pai há mais de setenta anos a primeira habitação a dar forma à rua que algumas décadas mais tarde haveria de ser batizada de Fernando Namora.

 

Foi também o meu pai quem sozinho rachou à força dos seus braços os canchos enormes e depois moldou a guilho e martelão na medida necessária cada um dos blocos de pedra que Mestre Caldeira dos Barretos – pedreiro de fama na época – haveria de utilizar para a construção da casa.

 

Quatro pequenas divisões apenas. Uma cozinha, uma sala e dois quartos, num dos quais nasci eu, depois as minhas duas irmãs mais novas, a Maria da Luz e a Joaquina Maria. A Adelina dos Santos, a mais velha dos quatro, nasceu ainda na outra casa onde moraram os nossos pais enquanto esta se construía.

 

Estar assim sossegado em casa é para mim um duplo aconchego. Pouca gente compreende isso mas o importante é o que eu sinto e não o que os outros possam julgar. O sossego que me rodeia é suavizado por de uma vida inteira de muitas e gratas memórias, qual quadro que o seu pintor enriquece com as cores que elege da sua paleta de tintas.

 

É tão fácil imaginar e quase ouvir o bulício da casa cheia de outrora. Aquele riso sempre pronto da minha mãe, o tom grave e sereno da voz do meu pai. O estalar do lume na lareira nas noites de inverno, o agradável aroma da sopa camponesa a borbulhar na sertã sobre a trempe, a chuva a tamborilar nas telhas mouriscas sobre as nossas cabeças, o vento a rugir lá fora e nós tão aconchegados, tão quentinhos, em volta do lume.

 

Já no verão, depois da ceia, era costume irmos para o fresco da rua à porta da casa acomodados em rústicos bancos de pinho e cadeirinhas de bunho em amena cavaqueira com a vizinhança nos fraternos convívios de quase família até à hora de deitar.

 

Depois…

 

Bem, depois, o tempo passou. Um a um, ordeiramente, tal como se deu na nossa vinda ao mundo, sem quase dar tempo à tia Florinda e ao tio Antónho Coelho de recomporem as suas poupanças – porque eles fizeram questão de pagar os respetivos banquetes – primeiro casou a mana Adelina, no ano seguinte casei eu, seguiu-se a Luz e por fim a Joaquina. Voámos deste acolhedor ninho para o outro que planeámos construir com quem connosco aceitou casar.

 

Mas nunca, nunca, nunca mesmo, dele ou dos nossos queridos patriarcas, nos afastámos muito. Aqui regressávamos amiúde, aqui nos juntávamos regularmente, tendo eles de providenciar uma cozinha mais ampla no quintal mas que em conjunto todos ajudámos a construir, além uma enorme mesa de refeições para em boa união e fraternos convívios, nos podermos todos acomodar. Saímos quatro, passámos a regressar oito, depois nove, dez, onze, e por aí fora...

 

Porque, naturalmente, foram chegando os nossos filhos que os avós adoravam e carinhosamente aconchegavam como nos tinham aconchegado a nós, quiçá até mais do que a nós. Os seus primeiros risos, os seus primeiros passos, o balbuciar das suas primeiras palavras tudo se repetiu sob o humilde tecto desta casinha tão pequenina no tamanho mas tão grande em afetos.

 

Mais tarde fui eleito seu novo proprietário por expresso empenho do meu pai. Foi ele quem decidiu que seria para mim. Jamais, em tempo algum, eu havia imaginado isso. Era impensável. Inconscientemente acreditamos que os nossos progenitores são eternos e nunca nos irão faltar. Andava, inclusivamente, a visitar casas para comprar uma, no bairro novo à entrada da Beirã.

 

Apercebendo-se disso, logo me informou, qual general a transmitir as suas ordens:

 

- Não procures casa para comprar porque eu quero que esta fique para ti.

 

Foi exatamente assim. Sem nunca termos falado em tal coisa. Ele já tinha até calculado o valor que eu teria de pagar a cada uma das minhas irmãs, descontada a parte que me caberia a mim. Apenas uma condição. Ele e a sua Florinda viveriam nesta casa connosco enquanto fossem vivos. Longe de ser um problema, tê-los connosco foi uma bênção.

 

E, sem nunca ter imaginado tal “negócio”, aceitei. Ou melhor, obedeci! As minhas irmãs e cunhados acataram sem qualquer reparo e sem a menor discordância a vontade do patriarca. Nesse tempo o respeito era prática corrente e comum. Em menos de um ai tratou-se da papelada, acertou-se o pagamento e a casa mudou do dono António Coelho para o dono José Coelho.

 

E nela passaram a habitar três ramos de uma só árvore. A matriarca Avó Amélia mãe da minha mãe que rodeada de amor e carinho connosco viveu os últimos 10 dos 93 anos com que nos deixou. Os patriarcas António Coelho e Florinda Lourenço, coproprietários perpétuos, e nós, os novos proprietários. Teve de ampliar-se o espaço de modo a ficarmos mais comodamente instalados mas no projecto de ampliação fiz questão de as quatro divisões da casa-mãe ficarem intactas, integradas na que cresceu para os lados e para cima.

 

Desse modo as paredes que me viram nascer, continuam no seu primitivo lugar. E as pedras que o meu pai moldou pela força dos seus braços, ficaram onde ele quis que elas ficassem. E foi entre elas que nos deixou e lhe cerrei as pálpebras ainda mornas numa triste madrugada de janeiro. No quarto que sempre foi o seu, na sua cama, na casa que construiu e nunca deixou de lhe pertencer.

 

Por essa e por muitas outras razões nutro pela Toca dos Coelhos e tudo em seu redor o carinho e reverência que qualquer devoto deve com certeza sentir quando chega ao santuário da divindade de sua devoção. Enquanto eu viver, aqui se manterão guardadas as ternas memórias dos meus pais, dos meus avós, das minhas irmãs, dos meus filhos, e, como não hei-de estar a ficar velho, agora também já as das minhas lindas netinhas…

 

José Coelho