Estar em casa sossegado é para mim duplo aconchego. Pouca gente compreende isso mas o importante é o que eu sinto e não o que os outros entendem. A tranquilidade que me rodeia é suavizada por de uma vida inteira de muitas e gratas memórias.
É tão fácil imaginar e quase ouvir o bulício de outrora nesta casa cheia de gente boa.
O riso sempre pronto da minha mãe, o tom grave e sereno da voz do meu pai, o crepitar do lume na lareira nas noites de inverno, o agradável aroma da sopa camponesa a ferver na sertã sobre a trempe, a chuva a tamborilar nas telhas mouriscas sobre as nossas cabeças, o vento a rugir lá fora e nós quentinhos, em redor do lume.
Já no verão, depois da ceia, era costume irmos para o fresco da rua à porta da casa acomodados em rústicos bancos de pinho e cadeirinhas de bunho numa amena cavaqueira com a vizinhança e fraternos convívios de quase família até à hora de deitar.
Depois…
Bem, depois o tempo passou. Ordeiramente, tal como se deu na nossa chegada ao mundo e sem quase darmos tempo à tia Florinda e ao tio António Coelho de recomporem as suas poupanças – porque eles fizeram sempre questão de nos oferecerem os respetivos banquetes – primeiro casou a irmã Adelina, no ano seguinte casei eu, seguiu-se a Luz e por fim a Joaquina.
Respeitando essa ordem de chegada, pela mesma voámos um a um do nosso acolhedor ninho para o outro que planeámos construir com quem cada um de nós elegeu.
Mas nunca dele e dos nossos queridos patriarcas nos afastámos muito. Aqui regressávamos amiúde, aqui nos juntávamos regularmente, tendo eles de providenciar outra cozinha mais ampla no quintal que em conjunto os ajudámos a construir, além da enorme mesa das refeições para em boa união e fraternos convívios, nos podermos todos acomodar.
Porque saímos quatro e passámos a regressar oito, depois nove, dez, onze, e por aí fora...
Naturalmente foram chegando os nossos filhos que os avós adoravam e carinhosamente aconchegavam como nos tinham aconchegado a nós, quiçá até mais do que a nós. Os seus primeiros risos, os seus primeiros passos, o balbuciar das suas primeiras palavras tudo se repetiu sob o humilde teto desta casinha tão pequenina em tamanho mas tão grande em afetos.
Mais tarde fui eleito seu novo proprietário por exclusivo empenho do meu pai que decidiu que seria para mim. Jamais, em tempo algum eu o havia imaginado porque nunca havia sequer pensado que eles algum dia iriam morrer.
Inconscientemente acreditamos que são eternos e nunca nos irão faltar.
Andava a visitar uma casa afim de a adquirir no bairro novo à entrada da Beirã quando, percebendo-se disso e qual general a transmitir as suas ordens, ele me sentenciou:
- Não procures casa para comprar porque eu quero que "esta" seja para ti.
Foi exatamente assim. Sem nunca termos falado em tal coisa. Ele já tinha até calculado o valor que eu teria de pagar a cada uma das minhas irmãs, descontada a parte que me caberia a mim. Apenas uma condição. Ele e a sua Florinda viveriam nesta casa conosco enquanto fossem vivos.
Longe de ser um problema, tê-los comigo foi uma bênção.
Assim e sem nunca ter imaginado tal “negócio”, aceitei. Ou melhor, obedeci! As minhas irmãs e cunhados acataram sem o menor reparo e discordância a vontade do patriarca. Naquele tempo o respeito era ainda uma prática corrente e comum. Em menos de um ai tratou-se da papelada, acertou-se o pagamento e a casa mudou o nome do seu proprietário António Coelho para o de José Coelho.
E nela passaram a habitar três ramos da mesma árvore. A matriarca Avó Amélia mãe da senhora minha mãe que rodeada de amor e carinho aqui viveu os últimos 10 dos 93 anos com que nos deixou. Os patriarcas António Coelho e Florinda Lourenço, coproprietários perpétuos, e nós seus novos proprietários.
Tive naturalmente de ampliar o espaço de modo a ficarmos convenientemente instalados mas no projeto da ampliação fiz questão de as quatro divisões da casa-mãe ficarem intactas, integradas na que cresceu para os lados e para cima.
Desse modo as paredes que me viram nascer continuaram ali no seu lugar. E as pedras que o meu pai moldou pela força dos seus braços ficaram onde ele projetou que ficassem. Entre elas nos deixou e lhe cerrei as pálpebras ainda mornas numa triste madrugada de janeiro de 1994. No quarto que foi sempre o seu, na sua cama, na casa que construiu e nunca deixou de lhe pertencer.
Por essa e por muitas outras razões nutro pela Toca dos Coelhos e tudo em seu redor um carinho e reverência comparáveis ao de um devoto quando chega ao santuário da divindade da sua devoção. Enquanto eu puder aqui se manterão guardadas todas as memórias dos meus pais, dos meus avós, das minhas irmãs, dos meus filhos e agora também já das minhas queridas netinhas…
José Coelho