quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Vinte e seis anos


Desde 1958 que o Senhor do Sacrário e Sua Mãe me observam a cirandar por ali a seus pés. Tinha seis anos quando o já falecido reverendo padre Caetano me escolheu para o acolitar nesta igreja, embora naquele tempo os gaiatos fôssemos às dúzias na aldeia. Não sei porque reparou o ilustre clérigo na minha então insignificante figura, tendo em conta a farta possibilidade de escolha entre tão diferenciada oferta, muitos dos quais mais bem vestidos, calçados e luzidios do que eu, que andava de pés descalços e mais que humildes vestimentas.

Por tal motivo, a "promoção" a sacristão da paróquia foi por mim considerada uma coisa extraordinária. O sacristão que ia substituir e já começava a ser moço, queria deixar essas funções para se dedicar ao namorico com as moças da idade dele. Era o António "sapateiro" como a gente lhe chamava. Foi encarregado pelo pároco de me ensinar as regras e procedimentos no altar, desde acolitar a eucaristia com o sacerdote ainda de costas voltadas para os fiéis na nave do templo sempre repleta de gente, bem como as respostas em latim às suas locuções "et cum spiritu tuo" quando ele pronunciava o "dominus vobiscum" e muitas outras lenga-lengas das quais eu não percebia patavina mas aprendi a decorar na ponta da língua.

Importante também foi aprender os diversos toques dos sinos. Rara a missa, funerais, casamentos e batizados, procissões.
Tudo isso aprendi sem dificuldades de maior. De tal modo que ainda hoje me recordo de muitas partes da missa em latim, e até do Tantum Ergo Sacramentum na adoração do Santíssimo, bem como devo ser também o último tocador de sinos profissional nesta paróquia e arredores. Fui sacristão quatro anos seguidos até terminar a escolaridade obrigatória em 1962, ano em que fiz o exame da 4ª classe e o meu pai me arranjou logo no dia a seguir um patrão para começar a trabalhar.
Assim deixei de poder ir à missa e muito menos acolitá-la mas sempre que podia ia lá fazer uma visitinha porque sempre "senti" que "aqueles" dois me ajudavam bastante. E essa proteção foi mais visível e evidente quando fui à guerra e regressei a casa sem um arranhão, ao contrário de outros camaradas que comigo foram e não regressaram nem sãos, nem salvos.
Mas não só.
Todo o meu percurso de vida tem sido um espelho da bondade do Altíssimo e de Nossa Senhora do Carmo para comigo. Assim o creio e afirmo sem tiques de beatice, apenas e só pela mais inequívoca e determinante convicção. Eu é que sei os apertos por que passei, as aflições que me atormentaram e a forma como consegui ultrapassar ou vencer cada uma delas.
É muito fácil as pessoas opinarem sobre aquilo que não sabem, denegrirem o seu semelhante e darem palpites. Mas como diz o povo, "quem vive no convento é que sabe o que tem lá dentro". O resto são tretas, muitas vezes mal intencionadas, vindas de gente ruim. Por tudo isso e por muito mais assim que regressei e estabeleci residência definitiva na minha Beirã imediatamente regressei com carácter permanente aos meus desempenhos na igreja e paróquia, onde quer que eles sejam necessários e estejam dentro das minhas capacidades.
E assim passaram já... 26 anos!
Faço-o pelo sentimento do dever, gratidão e amor às minhas raízes cristãs, mas sobretudo por espírito de missão.
Somos hoje muito poucos os paroquianos que cruzamos a porta da igreja para nos aproximarmos do Santíssimo Sacramento que há 82 anos se tornou o mais ilustre habitante desta aldeia. Sei e tenho plena consciência que não andará muito longe o dia em que o Bispo da Diocese irá decidir dessacralizar a igreja da Beirã que ficará a ser, a partir daí, apenas mais uma capela sem a presença do Santíssimo, como há já por aí tantas. E vai doer-me muito se ainda cá estiver, como me dói de cada vez que mais uma casa fica vazia sem os vizinhos queridos, para se transformar num alojamento local a encher as ruas com turistas.
Para mim, uma igreja sem o Santíssimo Sacramento no Sacrário, passa a ser como um corpo sem coração, mesmo que esteja a abarrotar de gente.
Não sou apenas e como escrevi mais atrás o único tocador de sinos encartado destes arredores, como sou também o único salmista que se prepara em casa durante a semana para subir à Mesa da Palavra a entoar os Salmos que solenizam cada Eucaristia. Sei que não sou tenor nem o que faço é para exibir dotes que não possuo, mas faço-o por amor a Deus e à minha igreja para que, enquanto for possível, a nossa missa semanal continue a ter um mínimo de dignidade e também para ajudar à reflexão e paz interior para cada participante na sua aproximação a Cristo.
Até quando? Até que Deus queira.
Só a Ele cabe decidir.