terça-feira, 26 de abril de 2022

Memórias (no silêncio da tarde)

Monte do Maxial - Foto José Coelho

Viver numa aldeia como a minha raiana Beirã tem muitas limitações e inconvenientes, mas tem também algumas vantagens como por exemplo podermos colher e degustar frutos de época sem qualquer perigo de contaminação por químicos. Quando muito, haverá a possibilidade desses frutos conterem algum "marisco" hospedeiro que também precisa alimentar-se e tem direito à vida. E como dizia o meu avô Zé Lourenço "mal do bicho que vai para a barriga de outro".

Caminho frequentemente pelos campos em redor e sei exatamente onde ficam as hortas nas quais continuam ainda a lutar valentemente pela sua sobrevivência algumas das já bastante velhinhas árvores de fruto plantadas pelas mãos de gente boa que conheci e recordo com saudade.

Uma dessas pessoas foi o senhor meu pai, exímio hortelão que tudo o que plantava na terra crescia e se multiplicava sempre. As parreiras e oliveiras do nosso quintal foram plantadas por ele e a figueira pingo de mel foi obra do avô Faustino Coelho, seu pai, que a plantou onde ainda continua, tinha eu 16 anos.

Na horta do Cancho de Ruivo há pereiras e macieiras, parreiras moscatel e figueiras de várias raças que são mais velhas "ca mim". Aproveitando a frescura que lhes proporciona a velha fonte e o enorme tanque de granito – obra dos famosos canteiros de Gáfete que construíram também a lindíssima capela mortuária do nosso cemitério – continuam a sobreviver e a dar frutos ano após ano, mesmo parcialmente “abafadas” pelas silvas.

Nas vargens do ribeiro da Cavalinha desde a Beirã até ao Rio Sever já não se vislumbra sequer a terra de muitas dessas antigas e férteis hortas porque foram invadidas pelo mato, mas em alguns locais ainda se enxergam videiras já semibravas, pereiras, figueiras de várias raças, nogueiras, macieiras e romãzeiras.

Junto às “casetas” onde habitavam as famílias dos “assentadores” que meticulosa e diariamente tinham a seu cargo a manutenção do Ramal de Cáceres, como por exemplo a do Maxial que já nem telhado tem, mas a poucos metros de distância onde faziam a horta que os alimentava o ano inteiro, continuam teimosamente de pé algumas figueiras, cerejeiras, marmeleiros e pereiras. 

Mais admirável ainda é que consigam resistir às décadas de abandono, as flores plantadas pelas mãos daquelas donas de casa, esposas e mães d'outrora, pois até essas continuam a vencer o tempo e a florir ano após ano sem se deixarem morrer.

Nas ruínas da “caseta” do Maxial que referi num dos parágrafos anteriores, podem ver-se imensas roseiras de várias castas cobertas de botões e rosas, sendo uma delas a de Alexandria, que, diz quem sabe, dará a mais perfumada de todas as rosas, perpetuada numa quadra de cariz popular que reza assim:

A rosa para ser rosa/ tem de ser de Alexandria/ a mulher para ser formosa/ tem de chamar-se Maria.

No pico da primavera é admirável tão bucólico quadro a exibir em simultâneo as tristes ruínas da desventrada casa num contraste oposto à vida e beleza de todas aquelas roseiras floridas em seu redor e a exalarem o seu inigualável perfume. Ano após ano, década após década, indiferentes ao abandono a que estão condenadas. 

Mas não é só no Maxial que se desenrola este milagre da vida.

No antigo canteiro da casa da minha avó Amélia junto à passagem de nível da Cavalinha as roseiras e as açucenas que ela plantou há mais de 40 anos também continuam a renascer, a crescer e a florir em cada primavera. Vou lá visitá-las sempre e acaricio-as como se contivessem nelas as santas mãos que as plantaram e que eu amava tanto. A minha surpresa não tem fim por constatar como é possível os seus tubérculos não morrerem debaixo dos tórridos verões e no meio do matagal que cerca a casa. 

Sei que é uma fantasia nascida da minha inevitável saudade, mas aquelas flores simbolizam para o meu imaginário, a querida visita da avó Amélia ao seu jardim todos os anos. Tão perfumada e alva flor, também denominada de bordão de S. José, ali foi plantada pelas suas zelosas mãos. Foi ela quem as plantou e delas cuidou durante a sua vida. Não é por acaso que sou tão apegado àquele lugar. 

Mas...

Neste “escrito” em que apenas queria “ajuizar” as limitações, mas também as vantagens, de se viver longe da “civilização”, quase sem me dar conta acabei por me deixar envolver pelo melancólico silêncio da tarde.

Desculpem!

José Coelho