terça-feira, 19 de abril de 2022

Vergonha na (puta da) cara

19.04.2022

Sei que o tempo não volta. Oh como sei. Outra coisa eu não soubesse! E sim, corre agora em velocidade de cruzeiro quando eu queria que ele avançasse um pouco mais despacito. Longe vai o tempo em que ele me parecia uma eternidade. Porque nunca mais era sábado para ir outra vez para o baile na Sociedade Recreativa, ou domingo para ir namorar. As semanas já tinham sete dias, mas parecia terem catorze. Os dias também já tinham vinte e quatro horas, mas parecia terem trinta e seis. E os meses, esses, tinham para aí oitenta dias. Ainda assim as pessoas eram invariavelmente felizes e bem-humoradas. Quase sempre. E eu também.

Do Natal até à Páscoa demorava uma eternidade. Os Invernos duravam uns longos seis meses, de Outubro a Março quase sempre a chover e frios de rachar. Os Verões tinham apenas três: Junho, Julho e Agosto. Os outros três, Abril, Maio e Setembro, eram de tempo ameno sem ser inverno nem verão, sem estar frio, mas também sem estar demasiado calor. E toda a gente percebia os sinais dos astros. Das estrelas, do sol, da lua. Aos cinco ou seis anos já eu conhecia a estrela boieira ou da manhã, aquela que há milénios indica que o dia está prestes a romper a escuridão da noite, pois muitas vezes a aurora nos surpreendia, já de mão dada, a mim e à minha mãe, a caminho das tapadas para onde ela ia sachar milho e feijão preto, de sol a sol.

O astro avermelhado ao fim do dia no verão anunciava que o seguinte seria ainda mais quente. E no inverno a mesma cor rosada no céu poente dava como certo um dia seguinte também gélido. A lua e os seus quartos, guardavam alguns segredos. O minguante era o das sementeiras, o crescente o de fazer crescer e amadurecer os frutos, mas também de fazer crescer a sorte ou as dificuldades em que as pessoas se encontrassem naquele quarto de lua. Por sua vez a lua cheia tão romântica no verão para os namorados, era temida no inverno por causa dos lobisomens cujo uivar se confundia com o do vento.

O tempo! Ah! O tempo...

Às vezes nem parece o mesmo de quando nasci. Está tudo tão diferente! Para pior, acho eu. Naquela época não havia casa, casebre ou socha que não contivesse uma família lá dentro. Fosse uma pessoa para onde fosse, da Beirã ao Cabeço de Seixo, da Beirã à Atalaia, da Beirã às Amendoeiras, da Beirã à Retorta, por todos os lugares dos quatro pontos cardeais havia gente a morar, a trabalhar, a viver. Por toda a parte se ouviam vozes de gente a conversar, pastores a assobiar aos gados, searas a ondular nas tapadas, pomares e abundantes hortas a bordejarem os ribeiros e regatos. Chamava-se tudo isso... Vida. E tudo deixou de existir. Bastaram cinquenta anos. Tudo isso foi varrido destas paragens como se um vento ruim por aqui tivesse passado e com ele levado tudo.

E não sei se não foi mesmo.

Esse vento ruim, para mim, tem um nome fino e sonante. Apelidam-no de progresso. Eu não acho que ele nos tivesse trazido algo assim tão bom. Senão vejamos. Que progresso extingue tudo aquilo em que toca, desertifica freguesias, concelhos, regiões inteiras? Que progresso mata os usos e costumes de um povo maioritariamente rural de norte a sul, a sua agricultura, o seu comércio e serviços, obrigando ao êxodo em massa dessas populações para os grandes centros urbanos abandonando as suas raízes? Que progresso sobrecarrega o povo de impostos, taxas e sobretaxas para satisfazer os mercados, cujos responsáveis visam apenas o lucro e a ganância de outros, promovendo a corrupção e o compadrio numa total ausência de decoro? E como se isso não fosse por si só já suficientemente censurável, ter ainda como consequência direta a asfixia e morte de quase todos os pequenos negócios que serviam e facilitavam a vida às populações das vilas e aldeias que teimaram cá ficar e delas não quiseram arredar pé?

Que progresso extingue em vez de modernizar e tornar rentáveis, ramais ferroviários inteiros de norte a sul, com tudo o que deles dependia – postos de trabalho, economias locais e mobilidade das populações – desrespeitando sem contemplações esse património construído à custa do erário público que serviu o país durante décadas? Que progresso permite que se cometam tantos atropelos aos direitos mais elementares das pessoas, sucessivamente decididos nos gabinetes climatizados da capital por decisores políticos sem a mínima sensibilidade social, cada um mais hostil que o anterior? Progresso é só planear autoestradas, pontes e outras obras faraónicas? E nós provincianos refilamos, mas continuamos a metê-los nos seus confortáveis gabinetes, a cada quatro anos. 

Não sei se é triste sina nossa, ingenuidade ou conformismo, mas sei que passados cinquenta anos de democráticas decisões, mais de metade do nosso país está vazio e sem quaisquer perspetivas de futuro, mormente o "meu" Distrito de Portalegre que é campeão nacional da indiferença política coletiva, da desertificação e do envelhecimento populacional, onde nasci, cresci, trabalhei a vida toda e vivo ainda.

O tempo não volta!

Mas às vezes penso que muitas coisas o tempo repete. Por exemplo, no "tempo da outra senhora" dizia-se que a política vigente era a "dos três éfes". Fátima Futebol e Festas. Curiosamente, no tempo da "senhora atual", esse espírito mantém-se. Basta olhar as multidões que continuam a afluir à Cova da Iria, as paixões assoberbadas e sempre ao rubro no Futebol, e, como não, o quanto a malta continua a gostar de Festas. Sejam romarias, feiras medievais, ou campanhas eleitorais. 

Assumo sem qualquer hesitação que também vou a Fátima, ao Futebol já não tanto e às Festas menos ainda, mas do que gosto mesmo e pratico diariamente desde que meus pais e avós me os ensinaram, ensinei depois aos filhos e ensino agora às netas, são os valores e princípios fundamentais que ninguém deveria deixar de praticar nunca. O respeito, a dignidade no trato, a honestidade nas palavras e nas atitudes, a honradez nos compromissos, e, acima de todos eles, uma irrepreensível integridade de carácter.

Resumindo o sentir da minha gente do campo maioritariamente analfabeta, vou descrever o que inúmeras vezes ouvi das suas honradas bocas: Pode uma pessoa não ter mais nada na vida, mas há uma coisa que nunca, jamais ou em tempo algum, pode perder...  

-  A vergonha na (puta da) cara.

É infelizmente vulgar uma total ausência de valores e princípios em muitas pessoas à nossa volta, com particular gravidade em figuras públicas que deveriam ser exemplo para todos nós, mas que, pelo contrário, são com demasiada frequência, a nossa coletiva humilhação. Por isso me revejo muito mais naquele tempo em que fui moço apesar das tremendas dificuldades, do que no atual, com todas as facilidades existentes. 

Disse.

José Coelho