terça-feira, 16 de novembro de 2021

Várzea das Amendoeiras - Ano 1960

Adelina Coelho - Luz Coelho - Zé Manel Coelho

Na ribeira que secou

Bebia o gado que eu tinha;

Quando chegava à noitinha,

A voz das águas chamava,

E o rebanho que pastava

Deixava os tojos e vinha.

 

Eu próprio molhava as mágoas

Na pureza da nascente;

Metia as mãos docemente

Na limpidez da frescura,

E as caricias da corrente

Davam-me paz e ternura.

 

O gado, farto, bebia;

E eu deixava-me correr

Naquele suave prazer

Que me levava consigo...

Eu não tinha que fazer,

E o gado tinha pescigo.

 

A noite, então, vinha mansa

Cobrir a lã das ovelhas;

Era um telhado de telhas

Furadas ou embutidas

De luzes muito vermelhas

Por todo o céu repartidas.

 

E aquela viva irmandade

Do rebanho e do zagal

Era ali tão natural

Que apagava dos sentidos

A saudade do curral

Feita de sono e balidos.

 

Mas a ribeira secou.

Não sei que praga lhe deu

Que no leito onde correu

Há pedras e maldição...

E o meu rebanho morreu

De sede e de mansidão.

 

Coimbra, 20 de Maio de 1943

Miguel Torga